SER NEGRO NO BRASIL

Dia da Abolição: Um diálogo com três professores negros de História

Marcelo, Bruno e Abel falam de racismo, das evoluções testemunhadas, dos retrocessos amargados e da constante luta de vidas negras que ensinam a História do Brasil

O professores Marcelo (à esquerda), Bruno (ao centro) e Abel..Créditos: Arquivo pessoal
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Daquela tarde de 13 de maio de 1888, com a multidão se aglomerando na frente do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, às milhares de favelas que se espalham por todo o território nacional, são 134 anos de desemparo, desalento, estigma e preconceito. A pena empunhada pela princesa Isabel ao assinar a Lei Áurea libertou de jure, mas não de facto.

A presença dos negros na sociedade é notada no Brasil desde sempre, assim que o primeiro navio de traficantes humanos aportou por aqui. No entanto, mesmo após o fim formal da escravidão, que durou mais de três séculos, a integração total e absoluta, e sobretudo igualitária, nunca ocorreu e imaginar que negros pudessem ocupar cargos de destaque, relevo e prestígio num país marcadamente racista então...

Claro que os poucos casos em que isso ocorreu servem de exemplo e argumento aos setores que juram de pés juntos que somos uma democracia racial e que por essas bandas tudo corre na mais tranquila harmonia. Mas são esses mesmos setores que se apressam em cometer toda sorte de ação racista e discriminatória contra brasileiros negros, que segundo o IBGE são 56,1% da população.

Como ensinar tudo isso aos jovens e às novas gerações? Conseguiria um professor branco transmitir com o mesmo critério de realidade e experiência essas agruras aos alunos? Na intenção de esclarecer justamente esses pontos, a reportagem da Fórum traçou os perfis de três professores de História negros, e com carreiras consolidadas, para mostrar como é o dia a dia desses profissionais, quais são suas percepções, angústias, expectativas e, especialmente, como eles entendem que podem mudar esse cenário.

Marcelo Cardoso da Silva, 24 anos em sala de aula

“Há uma diferença gritante na composição étnica dos professores, principalmente em relação às disciplinas. O número de professores pretos nas áreas de exatas e biológicas é muito pequeno, se comparado com as humanidades. Se notarmos o número de professores pretos, ele é muito reduzido em comparação com os brancos, principalmente nas escolas particulares. É sem dúvida um desafio trabalhar com jovens negro, sendo eu um professor negro. A grande maioria não entende o seu papel na escola e muito menos na sociedade. Muitas vezes isso se reflete numa falta de perspectiva com relação ao futuro acadêmico como um todo e de ingressar em cursos mais concorridos por não acreditar fazer parte deste universo que ele não consegue se enxergar, tendo em vista que ele pouco vê ou não vê, usando como exemplo o baixíssimo número de médicos, engenheiros, advogados pretos. Isso pode parecer bobagem, mas a sociedade acadêmica não consegue espelhar o aluno preto, que não se sente pertencente àquele ambiente, ao menos em sua grande maioria. E é fácil perceber que, na maior parte dos casos, os alunos são a sua primeira ou segunda gerações com acesso à educação formal, o que restringe e muito as suas possibilidades de ingresso e permanência nos cursos superiores. Sobre a resistência exercidas por esses jovens em instituições públicas ou privadas, pessoalmente eu nunca senti diferença no comportamento. Mas não posso afirmar que eu seja uma maioria. No entanto, os alunos de escolas particulares, notadamente as mais elitizadas, tendem a não ter contato com pretos em cargos ou exercendo funções bem remuneradas ou de destaque, e isso causa por certo um estranhamento neles. Não podemos jamais esquecer que, mesmo não parecendo, atualmente, o magistério é algo que se sobressai e é digno de um certo status, o que causa muitas vezes um estranhamento junto aos alunos. Posso até citar um episódio de estranhamento... Em passeio com meus alunos eu já fui confundido com o segurança deles, não só por ter 1,90m, pois acredito que se fosse branco não achariam que estava ali para garantir a segurança das crianças. Eu procuro ter uma participação ativa e reflexiva junto aos meus alunos. Situações em que o racismo é relativizado por um aluno branco ocorre, e com frequência. Então, quando acontece esse tipo de situação, eu peço para que o aluno se explique e exponha as suas ideias, e assim eu noto que não sobra muito espaço para esse tipo de comportamento agressivo disfarçado de opinião isenta. Não sou exemplo para ninguém, mas nesse momento devemos agir com assertividade e não permitir que os alunos ganhem espaço com essas frases feitas para nos tirar do prumo. Temos que mostrar que ele vai ter que se expor ao dar a sua opinião. O racismo dentro da sala de aula sempre tem aquela aparência de brincadeira infantil e entre amigos. Como se fosse tolerada a presença de um preto ali, mas volta e meia ele precisa ser lembrado de quem ele é. Acredito sempre que isso é um comportamento que ele vê em casa e passa toda a infância repetindo e se justificando. Assim como os mais antigos justificam que antes é que era bom, porque o Didi “tirava onda” com o Mussum e ele não ligava, ou melhor os pretos não reclamavam. Esquecendo que não havia canal para a reclamação nas emissoras e muito menos transparência na opinião dos espectadores nas redes.”

Bruno Alves da Conceição, 12 anos em sala de aula

"Recentemente eu falava durante uma aula do 7º ano sobre o perfil racial dos brasileiros. Conversávamos sobre a composição étnica do Brasil e as diferenças socioeconômicas, quando indaguei quantos outros professores pretos ou pardos eles tinham na escola. Percebi que nunca haviam pensado no assunto e com surpresa me questionaram se isso era um exemplo de racismo. Com muita atenção, uma aluna deste grupo, muito observadora por sinal, comentou comigo algo que nem mesmo eu havia reparado: na escola em que leciono somos apenas dois ou três professores negros em um universo de quarenta ou mais. No entanto, absolutamente todos os funcionários do setor de serviços gerais e faxina são pretos e pardos. Afirmo com total certeza que a realidade escolar reflete o racismo estrutural no Brasil. Como professor nunca passei por um episódio de racismo ou sofri uma injúria racial, mas como professor já presenciei inúmeros episódios de injúria racial. Como professor de escola pública, eu sempre percebi uma identificação muito grande dos alunos com a figura do professor negro, porque isso dialoga com a realidade dos jovens, que em sua maioria são periféricos. Sobre o papel de resistência dos negros na sociedade, quando isso é tratado com os jovens, o que posso notar é uma reação dos alunos quando abordamos temas sociais que vão até mesmo além do racismo. Falar de racismo estrutural, favelização, saneamento básico e outras questões sociais gera discussões bem desenvolvidas entre os jovens que vivenciam tais problemas, enquanto que em escolas particulares existem alunos que parecem não acreditar, por exemplo, que a Região Metropolitana da Baixada Santista abriga uma das maiores favelas de palafitas do mundo, a poucos quilômetros da escola superestruturada que eles frequentam. A discussão é orgânica para o grupo da escola pública e para o outro é quase uma ficção. Hoje está na moda alegar o tal “mimimi”, que é o discurso padrão de muitos e reflete o desconhecimento sobre temas relacionados a direitos e preconceitos, como o racismo. O problema não é um aluno que chega à escola acreditando no “mimimi” e sim o aluno que passa por todo o processo educacional, frequenta aulas de História e ainda continua com tal discurso. Alunos que aprendem a História do Brasil tendem a não acreditar no discurso vazio do racismo espontâneo, sem causas e sem efeitos. A liberdade que existia há alguns anos, hoje, já não existe mais. A vertente escolar do bolsonarismo, também conhecida como Escola Sem Partido, tentou cercear discussões que são essenciais para a formação do cidadão. Apesar de movimentações absurdas por parte de pessoas ligadas ao obscurantismo da sociedade, a grande maioria dos professores que conheço se manteve fiel à sua missão de educar, mesmo sob ameaça de demissão, punições e processos. Como abordei anteriormente, eles podem observar que sou um dos poucos negros trabalhando na escola. Pergunto a eles, por exemplo, quantas vezes foram atendidos por médicos negros, ou então se já foram abordados pela polícia. As experiências falam por si só. Eu tenho a oportunidade de dizer a eles que leciono na mesma escola particular onde tive o prazer de estudar, aí, explico que, em 2001, éramos apenas dois alunos negros na sala e uns poucos na escola. Hoje, a mesma escola, há uma composição étnica extremamente plural e isso reflete as políticas de inclusão implantadas desde os anos 2000. No entanto, o tamanho do retrocesso causado pelo atual governo, em vários aspectos em relação à educação, é algo sentiremos bem mais à frente, daqui a uns 20 anos.”

Abel Robson Barbosa Soares, 22 anos em sala de aula

“Há 20 anos, quando comecei a lecionar, era mais gritante a diferença na composição étnica na sala dos professores, principalmente em escolas particulares. Hoje, devido às políticas públicas de acesso à universidade e a quantidade de faculdades EAD com preços relativamente acessíveis, o número de professores negros tem aumentado. Um professor negro lecionando História é sempre visto por parte dos alunos como alguém que enfatiza as questões relacionadas à escravidão mais do que deveria. Parte dos alunos e da sociedade enxerga que a escravidão já passou e é uma página virada da História. Porém, para alguém formado em uma ciência humana, não tem como ignorar os impactos da escravidão na sociedade atual. Acredito que na escola particular fica mais acentuado o preconceito com o professor negro. Quanto maior o poder econômico dos alunos, maior será o preconceito. Para uma parte da sociedade é difícil aceitar um negro como responsável e mediador de um espaço. O que eles chamam de “mimimi” é cotidiano na vida de um professor negro, sobretudo quando aborda questões relacionadas ao racismo e ao preconceito. Boa parte dos alunos acredita que o 13 de Maio fez com que todos os problemas de mais de 300 anos de escravidão tivessem acabado. Por isso, para esses alunos é sempre “mimimi” questões ligadas ao racismo. A chegada do bolsonarismo simplesmente travou o debate sobre qualquer pauta progressista e humana. A perversidade de um ambiente policialesco sobre os professores se pautando na chave da doutrinação piorou muito a relação professor-aluno. O racista, acima de tudo, é um covarde, e por isso não me recordo de um ato racista frontal que tenha ocorrido comigo. Mas a gente sempre fica sabendo de ofensas racistas pelas costas. Agora, em relação aos alunos negros é escancarado. Um aluno negro, tanto em escola pública ou particular, sofre todo tipo de ataque racista no seu cotidiano. Mostrar que o racismo é estrutural representa o maior desafio dos professores de humanas. É importante mostrar e discutir com os alunos os vários exemplos que a sociedade nos impõe deixando claro que o racismo é estrutural. Diferente da perversidade que a doutrinação prega, é necessário discutir o racismo sim. Políticas de inclusão representam um sucesso em todos aspectos, e isso não é uma expectativa, é uma realidade. A política de cotas se revelou muito importante. Quanto mais negros ocuparem espaços representativos na sociedade, mais acentuada fica a discussão.”