O mundo inteiro, assim como quase todas as categorias de trabalho, sofreu com a chegada da mortal pandemia da Covid-19, no começo de 2020. Para alguns trabalhadores, a realidade profissional converteu-se num torturante e interminável sofrimento por conta do isolamento rigoroso e das chances aumentadas de contaminação. Foi o caso dos petroleiros.
No Brasil, independentemente de serem contratados pela gigante estatal Petrobras ou por empresas privadas que atuam no setor, em que pese as diferenças nos regimes distintos de contratação, os petroleiros passaram a conviver com uma tensão acima daquela que se abateu sobre a população em geral. Suas atividades, em grande parte dos casos, envolvem o convívio prolongado com muitas pessoas em espaços reduzidos.
Quando as primeiras informações científicas deram conta de que determinados perfis humanos eram mais propícios a contaminações graves e mortes pelo Sars-Cov-2, formando os chamados “grupos de risco”, empresas terceirizadas que prestam serviços à Petrobras começaram a demitir trabalhadores. Dados do Sindipetro-LP, por exemplo, mostraram que só nos primeiros seis meses de pandemia, ainda em 2020, mais de 56 mil trabalhadores de plataformas de empresas terceirizadas que prestam serviços para a subsidiária de transporte e logística da estatal, a Transpetro, foram dispensados.
Também não foram poucos os casos de atraso nos salários, de aumento de jornadas de trabalho, diminuição dos períodos de folga e de endurecimento das normas de quarentena. Num cenário assim, como é defender os direitos dessa categoria tão importante para o funcionamento do Brasil?
O advogado Marco Aurélio Parodi de Andrade trabalha há mais de 20 anos nessa função. Formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), de Niterói, é especializado em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, atuando tanto em ações que envolvem empregados da Petrobras quanto das firmas terceirizadas. Ele integra o escritório Normando Rodrigues Advogados, que dá assessoria para a Federação Única dos Petroleiros (FUP).
Fórum – Como foi a chegada da pandemia para os petroleiros no geral?
Marco Aurélio Andrade – “A pandemia pegou a categoria de surpresa no mundo inteiro. Na verdade, eles formam uma categoria só, são petroleiros, seja na Petrobras, uma estatal de economia mista, ou nas empresas terceirizadas. Nessas empresas, logo que começou a pandemia, os acordos coletivos que estavam brecados, que estavam ainda em negociação, passaram por mudanças. Teve empresa, por exemplo, que por causa das medidas provisórias (para alterar regimes de trabalho e salários) que foram instauradas por esse governo, ou melhor, desgoverno, por questões como redução de salários, seja na questão da estabilidade, ou demais aspectos, algumas empresas tentaram negociar a manutenção dos empregos.”
Fórum – As MP’s foram abraçadas por empresas do setor do petróleo?
Marco Aurélio Andrade – “O que houve foi o seguinte: a maioria dessas empresas não aderiu à MP 927 e principalmente à MP 936, que fala sobre a manutenção de emprego e renda. Nós conseguimos nas empresas com as quais negociamos a manutenção do emprego e do salário dos trabalhadores, no caso dos petroleiros da Bacia de Campos. Já outros sindicatos, como o SINDITOB, não sabemos como as coisas se deram… O que sabemos é que eles flexibilizaram direitos, inclusive impondo escalas aos trabalhadores de 21 dias por 21, de 28 dias por 28, e esse é um grande problema que a gente tem enfrentado. Os tomadores de serviço têm imposto essas escalas que colocam os trabalhadores mais tempo nas plataformas expondo todos eles por mais tempo aos espaços confinados, a uma eventual contaminação, caso algum trabalhador embarque com o vírus. O que nós fizemos foi encaminhar propostas de 14 dias trabalhados por 28 de descanso.”
Fórum – Essas mudanças nas jornadas e no isolamento trouxeram problemas, obviamente?
Marco Aurélio Andrade – “Para esses trabalhadores, infelizmente, as empresas têm burlado isso, alegando que havia uma recomendação do Ministério Público Trabalho de que num primeiro momento, no início da pandemia, mantê-los lá diminuiria a circulação de pessoas, mas no nosso entendimento, no entendimento da FUP, dos órgãos de saúde e de segurança, a coisa deveria ser no sentido contrário, uma vez que confinando esses trabalhadores por mais tempo haveria um risco maior de proliferação da doença. Ou seja, além de colocar os trabalhadores em escalas maiores, esses trabalhadores eram ainda colocados em hotéis para ficarem de quarentena, eles eram alijados de qualquer convivência com seus familiares durante vários dias. Nós temos inúmeros casos de casamentos que acabaram, problemas de saúde mental que se agravaram. A partir daí, o sindicato entrou com várias ações na Justiça pela Petrobras para ela reconsiderar essas escalas que jamais foram negociadas em acordos coletivos, enquanto que no setor privado nós estamos oficiando as empresas, iniciando campanhas para mudar isso e, em última instância, talvez, os trabalhadores terão que fazer algum tipo de mobilização. No caso de nem as mobilizações trazerem resultados, nós entraremos com medidas administrativas e judiciais.”
Fórum – O problema das escalas, ainda assim, permanece?
Marco Aurélio Andrade – “De fato, nós estamos em contato contínuo com essas empresas. O problema é que para essas empresas prestadoras de serviço é imposto pela Petrobras e por outras empresas operadoras de sonda, diante do programa de privatização, ou de descapitalização, como eles gostam de chamar, a implantação dessas escalas, que são escalas internacionais, escalas que segundo eles seriam melhores para a saúde e para a segurança do trabalhador, mas que na nossa opinião não é e me parece lógico que, após a pandemia, elas vão querer implantar permanentemente. Claro que algumas afirmam que não usam mais essas escalas, e realmente não usam, mas esses longos períodos em quarentena nos hotéis impedem a convivência dos trabalhadores com suas famílias e eles poderiam fazer essa quarentena em casa. Se você fosse a um hotel, fizesse a testagem e em caso negativo fosse mandado para casa, ok. Mas ficar três, quatro dias isolado é desumano.”
Fórum – Quais outros problemas também são vistos para a categoria nesse período pandêmico?
Marco Aurélio Andrade – “O que nós temos visto é que há muitos trabalhadores que foram deslocados de seu local de trabalho por questões de saúde e segurança, sendo mandados para casa, por terem comorbidades ou por terem ficado doentes, e que são prejudicados por medidas que a empresa chama de “queimar a folga”. Na indústria do petróleo existe uma política de supressão de folgas dos trabalhadores, principalmente dos terceirizados, que é muito comum. E essas empresas afirmam que têm dificuldades de contratar mais gente por culpa das tomadoras de serviço, uma vez que os contratos não permitem renegociação e, ao não conseguirem contratar mais trabalhadores, impõem àqueles que já estão trabalhando jornadas extremamente extenuantes. Pra piorar, essas folgas suprimidas são queimadas no período que o trabalhador fica em casa, o que é um absurdo, e que já vinha acontecendo antes da pandemia. Em cima disso, nós estamos denunciando esta situação. Algumas empresas estão tendo a sensibilidade de remover essas práticas, mas outras, infelizmente fingem que não veem, ou que não está acontecendo, e então nós ficamos apenas no aguardo da documentação fornecida pelos trabalhadores para dar entrada nas providências administrativas e judiciais, ainda que a negociação siga e nós sigamos tentando demovê-las de realizar essas práticas.”
Fórum – Os trabalhadores com as chamadas comorbidades, aquelas doenças que podem piorar um quadro de infecção pelo Sars-COV-2, têm tido mais dificuldades na relação com as empresas, como ocorre com outras categorias?
Marco Aurélio Andrade – “Quando os trabalhadores procuram a gente nesse tipo de situação, de terem comorbidades e terem sido desligados, ou punidos, ou perdido folgas, ou até redução de salário, sem base legal, até porque a maioria dessas empreses não aderiu às medidas provisórias, e que também já caducaram, enfim, quando nos procuram, a gente atua, sobretudo quando ocorre em cima desse fato da comorbidade, porque fica claro que ele foi discriminado. Nós já conseguimos evitar demissões renegociando acordos coletivos e sem perder direitos, negociando reajuste, evitando retroatividade, sempre para manter empregos. No caso da Petrobras, ainda que atuemos em mais casos no setor privado, quando isso acontece, existe o programa de desinvestimento, de demissões voluntárias, enfim. O fato é que, nas empresas sobre as quais atuamos, no setor privado, temos visto poucas demissões nesse sentido.”
Fórum – Isso vale para todas as subcategorias e empresas ligadas ao petróleo?
Marco Aurélio Andrade – "Em relação a essas empresas, cujos trabalhadores são representados por outros sindicatos quando ocorrem casos assim e somos procurados pelos trabalhadores e atuamos com os órgãos públicos, lutando o máximo para repelir essas práticas empresariais que atente contra a saúde e dignidade desses trabalhadores.”
Fórum – Quem resiste contra isso pode ser perseguido, às vezes. Como fica a condição desses trabalhadores que eventualmente sejam retaliados pelas empresas contratantes?
Marco Aurélio Andrade – “Se for uma demissão retaliatória, discriminatória, diante da condição de estar doente, ou por ter uma comorbidade, quando nós tomamos conhecimento do fato já comunicamos imediatamente essas empresas que representamos ou então entramos diretamente na Justiça alegando que aquele trabalhador foi discriminado, coagido, atentando para o fato de que a contratante não aderiu à Medida Provisória, ou ainda que não atentou para os requisitos da lei, para então usarmos da lei trabalhista para preservar e resguardar o emprego daquele trabalhador.”