Resgatada no último dia 28 de julho após 17 anos de cárcere privado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, em Guaratiba, na zona oeste da capital fluminense, Maria [nome fictício], de 41 anos, se disse surpresa com a morte do cantor Michael Jackson, ocorrida treze anos atrás. Ela era fã do cantor e só tomou conhecido da sua morte nesses cinco meses em que tenta recuperar o tempo roubado, mediante violência macabra, pelo homem que deveria cumprir o papel de marido e pai dos seus filhos.
Maria e os dois filhos foram trancados em casa de 2005 a 2022, por Luiz Antonio Santos Silva, o “companheiro” dela, pai dos dois filhos, e carcereiro dos três. No ato do resgate da família meses atrás, Luiz Antonio foi preso em flagrante e só então Maria e os filhos puderam ter a noção exata do que havia mudado no mundo durante o tempo em que tiveram suas liberdades subtraídas.
As crianças, por exemplo, jamais foram à escola ou receberam atendimento médico nesses 17 anos. Foram encontradas subnutridas, com a pele já amarelada, assim como a mãe, cerca de cinco meses atrás. Com 20 e 22 anos, os jovens tinham 20kg e 27kg quando resgatados, e viveram apenas os seus primeiros anos de vida foram do cárcere privado - o que fez com que apresentassem características físicas e mentais de crianças pequenas.
A mais velha, segundo a mãe contou do jornal O Globo, aprendeu a andar com um ano e três meses e foi diagnosticada com autismo aos 3 anos. Ela teria regredido mentalmente após o cárcere. O pai, e posterior carcereiro, achava que o tratamento da menina seria uma “besteira” e boicotou um possível acompanhamento. O irmão mais novo, em cativeiro desde os 3 anos, sequer pôde ser examinado até o resgate.
História do casal
Maria e Luiz Antonio Santos Silva são primos de primeiro grau, mas se conheceram apenas na adolescência dela – e juventude dele. Santos Silva morava na Bahia e visitava um parente no Rio de Janeiro quando viu a futura vítima pela primeira vez. Após o rompimento de um relacionamento em terras baianas, Luiz Antonio mudou-se para o Rio, onde começou o romance com a prima de 17 anos, 9 a menos que ele.
Pouco antes de concluir o ensino médio, ela engravidou e, após o nascimento da filha, ele a proibiu de seguir estudando. Maria contou à imprensa que havia muito preconceito por ela haver engravidado do primo e que, por isso, e naquele momento, o homem começou a trancá-la em casa. Nem a própria mãe podia visitá-la.
Cinco após o nascimento da primeira filha e apenas três do segundo filho, a família se mudou para Guaratiba e o patriarca não contou a ninguém sobre o novo endereço. Ao entrar na casa nova, a mãe e os dois filhos só iriam sair novamente 17 anos depois.
A mãe conta que após o início do período, as crianças começaram a se agitar e gritar muito, com os problemas de natureza psicológica acentuando-se. Para driblar a situação Luiz Antonio comprou enormes caixas de som, que mantinha o dia inteiro ligadas, rendendo-lhe o apelido de “DJ” na vizinhança.
Ele então passou a amarrar as crianças na cama, muito apertadas, durante todo o tempo. Quando a mãe, após a hora de dormir, dava uma afrouxada nas cordas, e ele percebia, a agredia. Os relatos de estupros também se fizeram presentes. Mesmo contra sua vontade, Luiz Antonio amarrava as crianças na sala e forçava o ato sexual com a mulher no quarto. Também surrava as crianças com fio de cobre.
Além disso, a comida era fracionada e, quando começava a faltar, apenas o patriarca se alimentava. Maria contou ao Globo que chegou a passar mais de quatro dias sem comer nada. Quando disse que gostaria de se separar e levar embora as crianças, ouviu de Luiz Antonio que seria morta se o fizesse.
A vida após o resgate
Além de deixar a casa caindo aos pedaços, com chão de cimento cru e cama enferrujada para uma casa melhor acabada, a mãe e os dois filhos também puderam se alimentar, ganhar peso, receber atendimentos médicos e se inteirarem das mudanças que haviam ocorrido no mundo – no caso da mãe, e conhecer o mundo propriamente dito, no caso dos filhos.
Resgatada com apenas 27 kg, a jovem de 22 anos dobrou seu peso em apenas cinco meses. O irmão de 20 anos saiu dos 20 kg para os 52kg no mesmo intervalo. A mãe ganhou cerca de 20 kg. Familiares das vítimas juntaram R$ 90 mil em uma vaquinha para ajuda-los e, com a grana, a mãe pôde comprar um barraco em uma favela carioca e alguns móveis novos para o novo lar. Mas as coisas não são nada fáceis.
O tempo de cárcere privado e confinamento faz com que os filhos desenvolvessem o impulso libertador de sair correndo ‘para o infinito’ quando se veem na rua, ou até mesmo no quintal da nova casa. Será uma tarefa e tanto acalmar esses corações. De toda forma, a dupla apresenta grande capacidade de recuperação. Acostumados a comerem com as mãos e jogados no chão, os filhos puderam aprender a alimentar-se sentados à mesa e com talheres nos últimos meses.
O principal objetivo da mãe recém liberta é que em 2023 possa encaminhar a educação e o atendimento à saúde dos filhos. Fazê-los recuperar o tempo perdido é uma tarefa monumental e talvez jamais seja cumprida à risca, no entanto quanto mais se aproximar do objetivo, melhor pode ser a vida deles daqui em diante. Da parte da mãe, o principal desejo é voltar a estudar: terminar o ensino médio e em seguida entrar no curso de enfermagem.
* Maria é um nome fictício; o nome real da vítima foi preservado por questão de segurança.
**Com informações de O Globo.