O Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (USP) aprovou, por unanimidade (97 votos), nesta terça-feira (29), a concessão do título de Doutor Honoris Causa póstumo ao líder abolicionista Luiz Gama.
Com isso, ele se transforma na segunda personalidade negra (primeira brasileira) a receber a comenda da universidade. Anteriormente, o ex-presidente sul-africano, Nelson Mandela, tinha sido agraciado.
“A gente espera que, com a concessão do título, se estude, reflita e debata a obra dele, sua produção jornalística, literária e jurídica. Que ele seja, de fato, reconhecido como intelectual brasileiro. É importante a questão simbólica. Ele, como grande herói do abolicionismo, foi, principalmente, um intelectual. Uma pessoa que fundamentou peças jurídicas que têm impacto até hoje, por exemplo”, avalia Dennis de Oliveira, jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP.
Luiz Gonzaga Pinto da Gama tem uma história impressionante, como relata Dennis. “Ele nasceu livre, em 1830, filho de mãe africana e pai português. Porém, foi vendido como escravizado por seu pai para pagar dívidas de jogos. Então, aos 10 anos, ele, que nasceu em Salvador, na Bahia, veio para São Paulo escravizado”.
Gama se alfabetizou somente aos 17 anos, o que é mais surpreendente, pois toda sua produção intelectual é autodidata. “Ele tentou cursar Direito no Largo São Francisco, mas foi impedido por racismo. Então, atuou como jurista autodidata, que, naquela época, era chamado de rábula. Nessa condição, ele libertou quase 500 escravizados, no momento em que a Justiça era aristocrática e elitista”, conta Dennis.
Outras áreas do conhecimento
O professor revela que, sabendo dos limites que havia nas ações jurídicas, Gama atuou em outras áreas do conhecimento, como no jornalismo, até para disputar a opinião pública contra a escravidão. Neste ofício, teve uma atuação militante.
Muito conhecido como jurista, ele, portanto, também foi jornalista. “Contribuiu para publicações de periódicos abolicionistas ilustrados no século XIX. Foi um dos fundadores do ‘Diabo Coxo’, junto com Angelo Agostini, e também do ‘Cabrião’, que faziam críticas duras à sociedade, à monarquia e, fundamentalmente, ao escravismo e à aristocracia. Colaborou, ainda, com o Correio Paulistano e com o jornal Província de São Paulo, que hoje é O Estado de S. Paulo”, destaca Dennis.
Além disso, foi um homem das letras. Escreveu “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, poesias críticas da sociedade daquela época. Em dois acervos bibliotecários, a USP detém as primeiras edições originais da sua obra poética.
“O processo e concessão do título começou em 2016, 2017, na Comissão de Direitos Humanos da ECA, onde a gente discutiu a importância do reconhecimento do Luiz Gama como honoris causa. Em 2016, houve a concessão do reconhecimento de Gama como advogado, em uma ação da Comissão de Negros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Depois, foi reconhecido como jornalista pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A partir disso, começamos a atuar pelo reconhecimento dele como intelectual. Ele foi um intelectual público, orgânico do abolicionismo, do movimento da população negra”.
Reparação tardia
O título concedido nesta terça também é uma reparação necessária e tardia da USP, já que a Faculdade de Direito do Largo São Francisco hoje pertence à universidade.
“Ele morreu em 1882 e a abolição da escravatura veio seis anos depois. O título de Doutor Honoris Causa, 139 anos após. O Brasil tem uma dívida com esta grande personalidade e, por isso, espera-se que a concessão do título abra uma janela para que sua obra seja divulgada e estudada por todos que se interessem em conhecer a história verdadeira do país”, completa Dennis.