O assassinato de Kathlen Romeu, de 24 anos, grávida de 14 semanas, em um dos acessos à comunidade Lins de Vasconcelos, Zona Norte do Rio de Janeiro, escancarou, mais uma vez, o genocídio da população negra pelo Estado.
Kathlen, que era designer de interiores e vendedora em uma loja de roupas, foi baleada no dia 8 de junho, mais uma vítima desse genocídio.
Um misto de sentimentos tomou conta do companheiro de Kathlen, Marcelo Ramos Silva, 26 anos, designer gráfico e tatuador.
“Eu me sinto completamente devastado, com medo, incrédulo, revoltado. É inadmissível esse tipo de ação policial acontecer, uma ação inapropriada e irregular. Eles são preparados para isso que fizeram, para chegar lá e dar tiro para cima dos bandidos e se pegar em um inocente, pegou. A polícia não tem medo de matar inocentes. Se matar, matou. Essa é a realidade”, afirma.
“É uma ação que não poderia ter acontecido de forma alguma. Não é assim que tem que ser feito. As pessoas que moram na favela merecem ter uma vida digna. Elas não podem sair, botar o pé na rua e achar que vão tomar tiro do nada, porque a polícia chegou e atirou. Não houve troca de tiros. O que houve foi um assassinato por parte da polícia”, relata Marcelo.
Ele conta que a ação policial mudou completamente sua vida. “Eu e a Kathlen não éramos casados oficialmente, porque, infelizmente, por culpa do Estado, não deu tempo. Nós tínhamos essa vontade, estávamos constituindo uma família, mas não deu tempo”.
A polícia alega que houve confronto com criminosos, versão desmontada por Marcelo. Ele tem certeza que Kathlen foi morta por um tiro da polícia. “Não há dúvida disso. Em primeiro lugar, porque não houve confronto. Os traficantes não atiraram nos policiais. Eles estavam sentados, a polícia veio e saiu atirando. Não houve muitos tiros, foram, se não me engano, uma ou duas rajadas rápidas. Eles já saíram correndo e a Kathlen foi atingida porque passava exatamente na hora, infelizmente”.
O designer conta que pelo local onde ocorreram os tiros transitam crianças e todos que moram nos arredores. “E a polícia vai e, à luz do dia, dá tiros e se pegar, pegou. Então, eu tenho certeza que o tiro partiu dos policiais. Em segundo lugar, se tivesse havido confronto, o que não houve, os bandidos não iriam atirar para trás, não tem lógica”.
Os 12 policiais que participaram da ação foram afastados das ruas e a Delegacia de Homicídios da Capital, que está apurando o caso, informou que, em paralelo às investigações da Polícia Civil, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) instaurou um procedimento de apuração.
Para Marcelo, o afastamento dos policiais não basta. “Isso é o mínimo do mínimo. Eles têm que ter uma pena rigorosa, sair da corporação. Eles não podem atuar desse jeito, têm que ser presos. O comandante foi transferido para uma comunidade vizinha. Isso não basta, isso não é nada. Ele tem que pagar pelo que fez. O Estado tem que ser responsabilizado. O governador tem que ser responsabilizado”, desabafa.
Estrutura racista
Na avaliação de Marcelo, o assassinato de Kathlen é resultado de um cenário caótico de violência no Rio de Janeiro. “É desumano, cruel, perverso. É uma estrutura racista, corrupta, que não foi feita para proteger quem mora na favela, quem é preto, quem é pobre. Pelo contrário”, diz.
“O símbolo da polícia são duas armas, um pé de cana e um pé de café. Foi criada para proteger a burguesia, quem tem dinheiro. Quem mora na favela não tem proteção. Se matar, matou. Eles vão falar que foi confronto, mas não é assim que funciona. Não pode funcionar assim. Tem que ter punição para quem faz isso. Eles não podem sair atirando na favela e matar inocentes. Tem que mudar essa estrutura racista. É difícil, mas tem que mudar, começando pela punição dos responsáveis. Isso não pode acontecer mais. Quem mora aqui está sobrevivendo”, completa Marcelo.
Missão urgente
A deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ) solicitou que o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) acolha o caso do assassinato de Kathlen como mais um assunto da missão urgente em curso neste momento no Rio de Janeiro, criada originalmente para o acompanhamento das investigações da Chacina do Jacarezinho.
O pedido de Renata foi feito em reunião com a pesquisadora Monique Cruz, da Justiça Global, entidade que é consultora do CNDH, da qual participaram a mãe de Kathlen, Jackllini Lopes, e Marcelo Ramos.
Segundo Renata, que também ingressou com representação no Ministério Público estadual para cobrar a investigação e a responsabilização dos autores e dos mandantes do assassinato de Kathlen, a expectativa é a de que o CNDH também acompanhe as investigações do caso e fortaleça as condições para a apuração isenta e rigorosa dos fatos.
“Na verdade, a Chacina do Jacarezinho e o assassinato da Kathlen não são casos desconectados. Ambos são expressões da mesma política racista e genocida de segurança pública que sempre eliminou as vidas negras e faveladas, mas que agora se mostra ainda mais grave porque toda essa barbárie tem tido aval público do governo estadual. O governador Cláudio Castro precisa, inclusive, ser responsabilizado por essa política e as suas violentas consequências para as vidas da população negra e pobre”, afirma a parlamentar.