Alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) divulgaram uma nota de repúdio nas redes sociais, nesta terça-feira (2), em que acusam uma professora de História da instituição de ter feito comentários racistas em sala de aula. A profissional, no entanto, nega as acusações.
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De acordo com a nota dos estudantes, que foi publicada no perfil do Centro Acadêmico de História da universidade, a professora Flávia de Sá Pedreira insinuou, durante uma aula de Historiografia Brasileira, que povos negros foram responsáveis pela própria escravidão em colônias americanas.
"Na aula de Historiografia Brasileira de hoje, a professora relativizou o modo de produção escravista no Brasil apontando a existência da escravidão dentro da África, dando a entender que há culpa dos povos negros pela sua própria escravidão nas colônias americanas", diz o comunicado.
Os alunos também relatam que, ao ser contestada por uma estudante, Flávia utilizou argumentos do chamado "racismo reverso" - quando pessoas brancas alegam também sofrer preconceitos por conta de sua cor de pele.
"Ao ser contestada, a professora acusou a estudante de persegui-la por ela ser 'branca, intelectual e de classe média', sugerindo que a estudante tranque a disciplina. Não obstante, a professora acusou Amanda de praticar o "racismo reverso", disse que não é racista, já que se casou com um homem negro e ambos tiveram uma filha juntos", completa a nota dos estudantes.
O caso foi comentado nas redes sociais pela vereadora Brisa Bracchi (PT-RN), que cobrou uma resposta da ouvidoria da UFRN.
A professora, no entanto, nega que tenha proferido comentários preconceituosos em sala de aula e alega que o caso tomou uma “dimensão desproporcional” nas redes sociais.
De acordo com ela, as explicações da disciplina giravam em torno da escravidão na África antes da chega dos europeus, algo que, segundo ela, “é notoriamente conhecido entre historiadores africanistas e demais especialistas no assunto”.
Ainda de acordo com a professora, alunos passaram a escrever “frases irônicas e ofensivas” sobre as aulas dela no chat da plataforma online onde a disciplina estava sendo ministrada.
"A dimensão desproporcional desse lamentável acontecimento levou-me a refletir sobre a espetacularização de qualquer assunto que se faz hoje pelas redes sociais. Acusações anônimas são registradas no Twitter, Instagram e afins, evitando com isso que seus autores possam ser processados judicialmente por calúnia e difamação", desabafou a profissional.
Por negar as acusações de racismo, Flávia de Sá Pedreira acionou a ouvidora da universidade e também aguarda um posicionamento em relação ao caso.
Confira a nota completa da professora:
“Todo branco é racista, assim como todo homem é machista” – é sério isso?
Em resposta à acusação de racismo que recebi ontem nas redes sociais e também na imprensa natalense, passo a relatar a minha versão dos fatos.
Há alguns anos, desde 2004, quando retornei do meu doutorado em História na Unicamp, o Colegiado do curso de História da UFRN incumbiu-me de ministrar a disciplina obrigatória “Historiografia Brasileira” aos alunos da graduação.
Neste ano, em meio à pandemia da Covid-19, estamos trabalhando online, sendo que o semestre letivo mal iniciou. Nas primeiras aulas da referida disciplina, tudo estava correndo dentro da normalidade de um ensino remoto, estávamos analisando e discutindo as cenas do cotidiano do Brasil oitocentista que foram pintadas por artistas como Debret e Rugendas, nas quais se vê aspectos da relação entre brancos e negros no período da escravidão. Discutíamos as imagens com base em textos de autores que defendem a sua utilização como fontes de pesquisa histórica.
Entretanto, na aula do dia 26/01, ao comentar que houve escravidão na África antes da chegada dos europeus – fato notoriamente conhecido entre historiadores africanistas e demais especialistas no assunto –, a aluna chamada Amanda manifestou a sua surpresa com essa afirmação, dizendo-me que eu devia “ter muito cuidado” com o que falava em sala de aula, pois o meu “lugar de fala é de uma mulher branca na universidade” e que ela era militante do Movimento Negro, pedindo que eu escrevesse “os nomes desses autores aí.”
Como eu estava ministrando aula no meu escritório, aqui em casa, onde ficam as estantes de livros, mostrei alguns deles sobre História da África, comentando o que diziam seus autores, tais como Alberto da Costa e Silva, John Thornton, Marina de Mello e Souza, entre outros. Nesse momento, o aluno Gabriel também ligou seu microfone e questionou se essa afirmação sobre a existência de negros escravizados por reinados negros na África, antes da chegada dos europeus brancos ao continente africano não acabaria por relativizar a tragédia que foi a escravidão colonial, numericamente superior. Ao responder, disse-lhe que não se deveria fazer essa comparação para dizer que “foi muito pior” pela quantificação, já que a escravidão em si já é um horror, li um trecho do livro África e Brasil africano, da historiadora Marina de Mello e Souza:
“Se considerarmos a escravidão como: situação na qual a pessoa não pode transitar livremente nem escolher o que vai fazer, tendo, pelo contrário, de fazer o que manda seu senhor; situação na qual a pessoa pode ser castigada fisicamente e vendida caso seu senhor assim ache necessário; situação na qual o escravo não é visto como membro completo da sociedade em que vive, mas como ser inferior e sem direitos, então a escravidão existiu em muitas sociedades africanas bem antes de os europeus começarem a traficar escravos pelo oceano Atlântico.” (MELLO E SOUZA, 2006, p. 47).
A ampliação do tráfico negreiro no processo de mercantilização capitalista ocorreu, com certeza, mas isso não pode apagar o fato histórico de que os reinados africanos negros também escravizassem por questões de dívidas, guerras etc, antes da chegada dos europeus. John Thornton menciona em seu livro A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, que em vários lugares do continente o que gerava renda era a comercialização de escravos, não a propriedade da terra: quem tivesse muitos deles, era considerado rico.
Após essa discussão, disse que escreveria as referências sobre o tema na página do SIGAA, para não interromper a análise das imagens de Debret e Rugendas. E foi o que eu fiz, voltando ao assunto na aula seguinte, mas notando a insatisfação da aluna com as minhas explicações, pelos seus comentários irônicos no chat.
Na aula do dia 02 de fevereiro, eu comentei com a turma que “escreveram no chat frases irônicas e ofensivas sobre minhas aulas” e que achava aquilo uma “babaquice” já que podíamos discutir a partir da própria produção historiográfica, sem comentários do tipo. Foi quando a aluna Amanda disse: “Fui eu que escrevi, você está me chamando de babaca?” Eu disse que não havia feito isso, pois nem identifiquei quem havia me ironizado no chat. Assim, teve início uma discussão em que a mesma teria falado algo como: “Todo branco é racista, assim como todo homem é machista, criatura!” – foi quando os ânimos se exaltaram, pois considerei desrespeitosa a sua fala, além de completamente equivocada. Também disse que esse tipo de situação nunca havia ocorrido comigo, que sou docente da UFRN desde 1994, e perguntei à aluna se por eu ser “branca, intelectual e de classe média” ela estaria criticando meu “lugar de fala” sobre temas como a escravidão negra – discussão trazida por autoras como Djamila Ribeiro, entre outras.
Foi quando ela avisou que “está tudo gravado, viu?” – sem ter nem ao menos pedido autorização para fazê-lo antes da aula – e eu disse que aquilo estava parecendo com o que defendem a “escola sem partido” e que ela mandasse a gravação para o Bolsonaro. Devido à crescente exaltação dos ânimos, outra aluna argumentou que seria melhor interromper a aula e retomar na seguinte, concordei com ela e pedi que todos registrassem suas presenças no chat.
Para meu espanto, no dia seguinte recebi de um amigo, pelo whatsapp, a “nota” que o Centro Acadêmico de História publicou no Instagram – rede social que não tenho, assim como não tenho o Twitter, apenas possuo uma conta no Facebook – acusando-me nominalmente de racismo, tendo ouvido apenas a versão da Amanda, sem terem entrado em contato comigo para ouvir também a minha versão, ignorando meu direito de defesa sobre uma acusação tão grave. Depois, recebi a matéria da jornalista Nathália, do “Agora RN” também acusando-me de racista, ao publicizar mais ainda a nota do CA, divulgada na rede social.
Por fim, até uma vereadora do PT manifestou-se contra o racismo na UFRN em seu Twitter, referindo-se à minha aula, e o CA de História divulgou uma chamada para plenária estudantil a acontecer hoje à tarde, sobre o “Antirracismo na UFRN”!
Sendo acusações graves, uma vez que o racismo é crime inafiançável, decidi consultar a minha advogada sobre como deveria proceder, ao que ela me orientou a não responder às publicações e sim fazer denúncia formal à Ouvidoria da UFRN. Foi o que fiz e estou aguardando a resposta da instituição.
A dimensão desproporcional desse lamentável acontecimento levou-me a refletir sobre a espetacularização de qualquer assunto que se faz hoje pelas redes sociais. Acusações anônimas são registradas no Twitter, Instagram e afins, evitando com isso que seus autores possam ser processados judicialmente por calúnia e difamação.
Também sou professora de História da Cultura, disciplina para a qual prestei concurso público nesta Universidade, e um dos autores que costumo adotar nas minhas aulas é Zygmunt Bauman, que em suas obras sobre a “sociedade líquida moderna” deixou registrada sua enorme inquietação com o despreparo dos internautas nas diversas redes sociais pelo mundo afora, ao se manifestarem anonimamente e de forma agressiva, alertando-nos aos prejuízos que causam à vida em sociedade.
Espero um posicionamento da Chefia do Departamento de História, que até o momento não o fez.