Um gesto constrangedor se repete a cada quatro anos, em tempos de eleição. Políticos sem qualquer apreço ou noção de realidade vão ao Nordeste, a segunda região mais populosa do Brasil, e colocam na cabeça um objeto sagrado: o chapéu de couro dos vaqueiros do sertão.
O adereço tem um significado muito forte para a cultura dos nordestinos. Espécie de ex-libris da ancestralidade de uma civilização, o chapéu arredondando e pouco confortável, alguns com enfeites, torna-se um “passaporte” para que gente sem qualquer compromisso com a região mais problemática do país, do ponto de vista socioeconômico, faça teatro oportunista e tente criar uma atmosfera de interesse verdadeiro pela população do lugar.
Não é que só um nordestino possa colocá-lo na cabeça, mas quem o faz deve transparecer no mínimo uma admiração e um compromisso verdadeiro com esse Brasil tão peculiar, onde tudo começou.
Até o Jornal do Commercio, centenária e tradicional publicação conservadora do Recife (PE), se irritou com o ex-juiz da Lava Jato que jamais pronunciou qualquer coisa sobre o Nordeste e os nordestinos, mas que mal desembarcou no aeroporto dos Guararapes e já colocou a indumentária na cabeça.
A reportagem da Fórum foi ouvir a historiadora e professora Edna Maria Matos Antônio, docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que leciona na disciplina de História do Nordeste, para compreender melhor o que se espera de um candidato que resolva pôr os pés numa região que desde sempre é esquecida pelo eixo de poder político concentrado no Sul e Sudeste.
Antes de tudo, Edna explicou a simbologia do chapéu de couro dos vaqueiros do sertão nordestino e os significados embutidos no objeto que vira fetiche para os homens públicos do Brasil que chegam à região.
“Do ponto de vista tanto histórico como cultural, o chapéu de couro e demais vestimentas, objetos e utensílios feitos de couro são muito significativos pra cultura nordestina, simbolizam e sintetizam toda uma vivência e de uma experiência única nos sertões nordestinos. Isso tem a ver, é óbvio, com a colonização portuguesa e tem a ver também com a importância do gado para a sobrevivência dessas comunidades. Está relacionado também a questões que envolvem a utilização de tudo que pudesse ser aproveitado dos bois, das vacas, não só para a alimentação, fazendo com que esses grupos humanos fixados no interior da região que hoje chamamos de Nordeste encontrassem formas de sobreviver”, explanou.
Há razões totalmente explicáveis para o uso daquele acessório na cabeça, assim como para o material utilizado em sua confecção, o couro bovino.
“Há que se considerar também o meio geográfico, que por questões de vegetação, muito áspera, uma vegetação agressiva como a da caatinga, que muitas vezes as pessoas de outros lugares não levam isso em conta. Mas tudo isso tem uma lógica própria. Essa vegetação traz uma série de dificuldades de locomoção, são muitos espinhos, galhos cortantes, retorcidos. A roupa de couro é uma proteção para que o homem do sertão possa se locomover, junto com seus rebanhos, em busca de água nos açudes e nos córregos. Essa atividade, naquele local, demandou uma vestimenta mais resistente”, disse a professora.
Edna falou ainda de outros traços da cultura nordestina que mantêm laços estreitos com a realidade local de vida daquelas populações que formam ancestrais núcleos de povoamento de um país de dimensões continentais.
“Claro, não é só isso. A carne de sol, as buchadas, enfim, tudo isso traduz uma importante herança cultural muito forte dos ibéricos, mas denota também uma metamorfose cultural diante de uma realidade ambiental que foi um desafio para os primeiros colonizadores”, completou a historiadora.
Um outro assunto que sempre surge quando eleições presidenciais se avizinham é sobre um projeto de desenvolvimento para a região. Com raras exceções, quase sempre o Nordeste fica esquecido pelo governo federal.
“Nós vemos claramente que a região Nordeste nunca foi pensada como uma pauta para o desenvolvimento econômico. Podemos citar a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), lá nos anos 50 e 60, dentro de uma visão desenvolvimentista do governo JK, ainda que tudo isso tenho sido resultado de ações e planejamentos do Celso Furtado (economista paraibano que foi diretor do BNDE no governo JK e ministro do Planejamento na gestão de João Goulart), que entendeu a questão do desenvolvimento da região Nordeste como um aspecto importante para o desenvolvimento de todo o país, com uma visão mais ampla. O Brasil se acostumou a ver a seca como o grande problema do Nordeste, mas a seca é na verdade apenas um problema que deve ser resolvido. Não é algo como simplesmente se acabar com a seca e pronto. O que nós precisamos é de uma política que encontre projetos econômicos viáveis para que efetivamente se traga um desenvolvimento para a região. Um desenvolvimento que, se não pudesse igualar, que não colocasse o Nordeste numa posição tão subalterna economicamente em relação ao Sudeste e ao Sul”, argumentou a docente da UFS.
Mesmo diante de um histórico de esquecimento, a especialista em História do Nordeste lembra dos feitos dos governos progressistas do PT, mas lamenta que o ciclo tenha sido curto e desfeito pelas forças políticas que ascenderam ao poder.
“Somente agora, nos últimos anos, com os governos progressistas do PT, é que a gente consegue identificar um projeto de desenvolvimento bem direcionado à região. Um projeto bem pautado, que tenta pensar nas características do Nordeste. Nós vimos por muito tempo uma sucessão de governos que pensavam o Nordeste como uma região de “apoio”, seja fornecendo mão de obra barata, sendo mercado consumidor dos polos industriais localizados no Sul e no Sudeste. Mas nunca tivemos uma visão de que esse território poderia entrar num processo de desenvolvimento que o levasse à autonomia. Nunca vimos um projeto para o Nordeste que atacasse diretamente os problemas mais característicos da região. Com esses governos progressistas apareceram projetos para elevar e incrementar o nível educacional dos habitantes do Nordeste, um incentivo à criação de empregos e indústrias específicas, voltadas ao mercado consumidor daqui... Vislumbrou-se uma saída para a região, respeitando suas próprias características, para que assim se encontrasse um caminho de desenvolvimento, diminuindo as diferenças, por exemplo, em relação aos complexos industriais de outras regiões do Brasil. É uma pena que esse projeto tenha sido abortado. E isso ocorreu por questões, naturalmente, políticas. Quem mora no Nordeste conseguiu perceber o que foram os poucos anos de uma política voltada o desenvolvimento econômico, social e cultural da região. O aumento do poder aquisitivo, famílias inteiras saindo da linha da pobreza, indivíduos evitando a migração, gente se fixando em seu lugar de nascimento, nas suas origens, encontrando oportunidades de sobrevivência, de emprego, salário, enfim. Era um cenário bastante promissor, só que foi interrompido”, reclamou.
Sobre o uso do chapéu de couro por Sergio Moro e também por Jair Bolsonaro, que frequentemente coloca o acessório na cabeça em viagens ao Nordeste, embora já tenha se dirigido de forma insultuosa à região e seus moradores, Edna pensa que se trata de um fingimento com contornos de apropriação cultural.
“Isso é uma apropriação cultural com fins politiqueiros bem evidentes. Olhando a trajetória desses candidatos e até mesmo a forma que eles se comportam em relação à cultura nordestina e aos setores da sociedade brasileira que têm heranças nordestinas, a gente percebe que não há qualquer familiaridade, qualquer rotina, qualquer vivência, nada! Não há qualquer experiência que ligue esses candidatos a qualquer coisa relacionada ao Nordeste. Parecem turistas estrangeiros quando chegam a um país e saem colocando adereços e que eles não entendem o significado daquilo. É só para, de forma muito oportunista, criar, num fôlego só, de maneira muito rápida, de forma muito artificial, um vínculo que eles nunca tiveram e que nunca se interessaram em ter com a região Nordeste e sua cultura. É algo muito feio. É claramente uma estratégia. É começar a ser visto, ser pensado e ser lembrado pelos eleitores de uma região que para eles não significa nada, exceto o que representa pela quantidade de votos, até porque deve-se considerar o peso que o Nordeste tem, é um eleitorado importante”, esclareceu a historiadora.
Em sua visão da História, as atitudes desses presidenciáveis apenas denotam o que sempre ocorreu em relação ao Nordeste por parte dos poderosos.
“Se você pergunta a esses candidatos o que elas pensam da região, vão sair os estereótipos, vai sobressair uma falta de projeto específico para a região, e vai ficar aquilo com o que já nos acostumamos em tempos de eleição: uma simpatia força, uma tentativa de dizer que entende da região e que conhece os problemas. Só que nós sabemos perfeitamente que não é verdade. Como temos um número expressivo de votos, fica esse vale-tudo que beira essa coisa forçada”, reclamou.
Mas para quem acha que esse tipo comportamento não é percebido pelos nordestinos, Edna explica que os eleitores locais, em sua maior parte, estão atentos.
“A população nordestina é muito atenta a isso. Ninguém é bobo. Ficar forçando uma simpatia e uma empatia com a região Nordeste, com a qual na verdade eles não têm qualquer relação, de nenhuma natureza, não é o suficiente. Precisamos de gente que tenha noção do que é o Nordeste e que proponha soluções reais para cá, não soluções adaptadas do Sul e do Sudeste, como se o país fosse um só. Aliás, esse é o maior problema dos políticos do Sudeste, a visão homogeneizada do Brasil, propondo coisas como se esse Brasil fosse o mesmo”, concluiu.