O Brasil, como estado nacional, foi condenado por feminicídio pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O caso que levou o país ao banco dos réus, ocorrido em 1998, foi o do assassinato de Márcia Barbosa de Souza, à época com 20 anos, cometido pelo então deputado estadual paraibano Aércio Pereira de Lima, do extinto PFL, hoje DEM. A sentença, proferida em 7 de setembro, só foi divulgada nesta quinta-feira (25).
De acordo com os autos do processo judicial instaurado pela Justiça há 23 anos, Márcia teria chegado havia pouco tempo em João Pessoa e já teria ido se encontrar com Aércio num motel da capital paraibana. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado em um córrego da cidade, com sinais de esganadura.
A polícia chegou ao autor do crime, só que, por ser parlamentar estadual, Aércio tinha foro privilegiado e precisaria da anuência da Assembleia Legislativa da Paraíba para poder ser processado e levado a júri. Mesmo com toda a pressão popular e da imprensa ocorrida à época, os colegas de mandato jamais permitiram que o suspeito do crime fosse levado ao tribunal.
Só em 2003, quando Aércio não conseguiu se reeleger após quatro mandatos consecutivos, é que a ação penal pôde ser instaurada contra ele, que ainda protelou o julgamento até 2007, quando finalmente foi condenado. No entanto, os advogados recorreram da sentença e o assassino permaneceu em liberdade até sua morte, no ano seguinte, em 2008.
Foi essa rede de proteção institucional dada pela legislação brasileira ao então parlamentar que foi alvo de análise no julgamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, considerando que os parâmetros e proteções legais dados ao acusado garantiram o atraso em seu julgamento e a posterior impunidade do réu, que morreu sem ir para a cadeia.
A CIDH recebeu o caso em 2019 e desde então iniciou a análise da responsabilidade do Estado brasileiro na flagrante falta de punição ao executor da jovem Márcia. A corte concluiu também que o Judiciário do Brasil teve papel fundamental na construção de uma imagem negativa da vítima, que durante todo o processo foi retratada com menções à sua moral e sexualidade, sem que promotores ou o magistrado fizessem cessar esse tipo insinuação descabida.
A decisão do tribunal internacional, que será remetida ao governo brasileiro, exige reparação material e imaterial à família de Márcia, assim como a publicação da sentença da CIDH, na íntegra, no Diário Oficial da União, nos diários oficiais do governo da Paraíba e do poder Judiciário daquele estado, assim como uma cópia em um jornal de grande circulação.
Da mesma maneira, o resultado do julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos impõe ao Brasil que o Estado promova um ato de reconhecimento público e oficial da decisão e dê melhor treinamento ao seu corpo de agentes de segurança, no sentido de promover políticas de combate à violência contra a mulher.
"Foram anos e anos de luta. Márcia era uma jovem sonhadora de apenas 20 anos, assassinada por um ex-deputado, em que a imunidade prejudicou todo o processo. A família dela merece justiça", disse Maria Elza Gomes, integrante da Marcha Mundial das Mulheres e do Centro de Defesa da Mulher Márcia Barbosa, que acompanha o caso há décadas.