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Por Glauco Faria, na RBA
A Associação Juízes para a Democracia (AJD), junto com entidades, emitiu uma nota pública nesta sexta-feira (10) repudiando a pena de censura imposta ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, na última quarta-feira (8), pelo órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Segundo o documento, a punição "viola o próprio Estado Democrático de Direito, fragilizado, em primeiro lugar, por ter um juiz punido por controlar, com rigor, a atividade punitiva do Estado Administração".
Corcioli foi alvo de uma representação, assinada por 23 promotores públicos, encaminhada pelo corregedor geral do Ministério Público paulista ao TJ-SP. O pedido de abertura de procedimento disciplinar sustentava que o magistrado agia "movido por ideologia contrária ao Sistema Penal vigente e favorável ao desencarceramento e absolvições".
Para a AJD, "não há como interpretar a sanção aplicada ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho senão como uma punição aos entendimentos jurídicos adotados pelo magistrado. Entendimentos, diga-se de passagem, que seguem o sentido contrário das atuais políticas públicas responsáveis pelo vigente aprisionamento em massa, que fazem o Brasil ocupar a vergonhosa posição de terceira maior população carcerária do mundo, formada basicamente pela população negra, pobre e periférica".
O texto destaca que as decisões citadas pelo promotores não contrariam a lei e têm fundamentos jurídicos. "Importante considerar que grande parcela das decisões judiciais em questão tem a característica de limitar a atividade punitiva estatal e de privilegiar a liberdade do ser humano sobre a custódia. Acrescente-se que tais atos decisórios foram devidamente fundamentados em dispositivos legais e constitucionais em vigor no Brasil e em sólidas doutrina e jurisprudência."
De acordo com Laura Rodrigues Benda, presidenta do Conselho Executivo da AJD, trata-se de um caso grave. "A nossa nota é justamente para chamar a atenção para a gravidade de um julgamento como este. O Tribunal de Justiça de São Paulo dá uma pena administrativa séria, que é a censura, por conta do juiz ter decidido de uma certa forma, pelo teor das decisões. Concordando-se ou não com as decisões de um juiz, a pessoa recorre, reforma-se a decisão, dentro do jogo do processo legal. Uma censura assim é um controle ideológico."
Laura destaca ainda o fato de a representação que resultou na pena de censura ter sido feita por representantes do Ministério Público. "Os promotores não têm esse papel nem essa competência, é um absurdo. E o motivo alegado é completamente descabido porque é o pensamento ideológico deles", pontua. "É uma espécie de controle para coibir esse juiz e todos os outros que pensem de forma mais progressista, digamos."
A representação tem como um de seus fundamentos ainda o fato de Corcioli ter assinado artigo e participado de audiência pública no Senado comentando a Lei de Drogas. "Todo mundo tem opinião, é importante lembrar que o juiz tem que ser imparcial, mas ninguém é neutro. A imparcialidade não se confunde com a neutralidade, todos nós temos opiniões, sobre os mais variados assuntos, inclusive alguns que podem tocar de alguma maneira o que vai ser apreciado em um julgamento", diz Laura. "Sendo imparcial no julgamento, os dois lados vão ser ouvidos e vai existir o devido processo legal. É uma argumento (da representação) completamente contraditório, se a opinião fosse outra isso não seria levantado."
Assinam a nota junto com a AJD o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Artigo 19, Conectas, JusDh, Terra de Direitos e Núcleo Especializado de situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Confira abaixo a íntegra do texto:
Nota Pública – A censura aplicada ao juiz Roberto Corcioli fragiliza o Estado Democrático de Direito
A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, nos quais se inserem a independência do Poder Judiciário, vem a público repudiar a condenação à penalidade administrativa imposta ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, pelos motivos que passa a expor.
1 – Conforme sessão realizada em 8 de agosto passado, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou, ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, a penalidade administrativa de censura.
2 – O problema, de demasiada gravidade, é que os fatos que ensejaram a sanção consistem em decisões proferidas pelo referido magistrado paulista na esfera de sua independência funcional e que poderiam ser objetos de impugnação pela via recursal adequada. Todavia, substituiu-se tal via para o intimidatório caminho correcional.
3 – Importante considerar que grande parcela das decisões judiciais em questão tem a característica de limitar a atividade punitiva estatal e de privilegiar a liberdade do ser humano sobre a custódia. Acrescente-se que tais atos decisórios foram devidamente fundamentados em dispositivos legais e constitucionais em vigor no Brasil e em sólidas doutrina e jurisprudência.
4 – Há, portanto, um componente ideológico na sanção aplicada. Puniu-se um juiz de direito em razão dos seus posicionamentos jurisdicionais que caminham no sentido de um Direito Penal limitado, tal como, aliás, vigora nos países em que prevalecem as liberdades públicas sobre um todo poderoso Estado-Leviatã.
5 – Cabe lembrar que a independência do Poder Judiciário consiste em importante conquista do Estado de Direito, sendo considerado um de seus requisitos essenciais. Tal garantia implica na atribuição a todos os que exercem a magistratura – de um Juiz Substituto recém-ingresso na carreira a um ministro do Supremo Tribunal Federal – da possibilidade de decidirem conforme sua convicção jurídica, livres de qualquer instrumento de pressão indevida por parte dos demais agentes oficiais.
6 - Não há como interpretar a sanção aplicada ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho senão como uma punição aos entendimentos jurídicos adotados pelo magistrado. Entendimentos, diga-se de passagem, que seguem o sentido contrário das atuais políticas públicas responsáveis pelo vigente aprisionamento em massa, que fazem o Brasil ocupar a vergonhosa posição de terceira maior população carcerária do mundo, formada basicamente pela população negra, pobre e periférica.
7 – O magistrado limitou-se a exercer seu poder – dever de controlar tais políticas, o que se amolda à função que se espera do próprio Poder Judiciário na esfera do sistema de freios e contrapesos que caracteriza a separação dos poderes em um Estado Democrático de Direito. O juiz punido mostrou, com suas decisões, que a atividade jurisdicional não é e nem pode ser um mero órgão chancelador da atividade policial da Administração Pública.
8 – Por tudo isso, a punição contra Roberto Luiz Corcioli Filho não viola apenas as prerrogativas do magistrado. Viola o próprio Estado Democrático de Direito, fragilizado, em primeiro lugar, por ter um juiz punido por controlar, com rigor, a atividade punitiva do Estado Administração; fragilizado, ainda, pelo fato de a punição em debate ter sério potencial de amedrontar os demais magistrados em exercer o poder-dever de realizar a mesma espécie de controle.
9 – Lembra-se, por fim, que em julgamento sucedido em 28 de agosto de 2017 acerca de caso semelhante (Kenarik Boujikian versus TJSP), o Conselho Nacional de Justiça, por intermédio do então conselheiro Gustavo Alkmim, entendeu que: “Punir um magistrado por sua compreensão implica na maior violência que se poderia conferir à sua atividade jurisdicional, essencial ao estado democrático de direito”.
10 – Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia sustenta o caráter de grave antijuridicidade da pena aplicada ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, clamando pelo decreto de invalidade do ato pelos órgãos competentes e para que os tribunais do país se atenham ao respeito à independência funcional como imperativo democrático.
São Paulo, 10 de agosto de 2018.
Co-assinam esta nota:
Artigo 19
Conectas
Ibccrim
JUSDH
Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Terra de Direitos