Morreu na noite desta segunda-feira (16), às 20h, no Hospital Sírio Libanês, o economista Paul Singer, um dos mais brilhantes intelectuais do seu tempo.
Professor universitário, Singer foi fundador do PT e contribuiu com a construção do programa econômico do partido em várias eleições, sendo secretário de Planejamento da Prefeitura de São Paulo, na época de Luíza Erundina, e Secretário Nacional de Economia Solidária de Lula e Dilma.
Nos últimos anos ele dedicou seus estudos e energias para formular projetos e encubar iniciativas na área da economia solidária. De tanto semear ideias, Singer deixou centenas de discípulos intelectuais que atualmente divulgar e constroem projetos nesta área.
Recentemente um crowfouding foi organizando com o objetivo de produzir um filme sobre a sua história, o que deve ocorrer, já que a meta foi alcançada.
Para conhecer um pouco mais do pensamento de Singer, vale a pena ler esta entrevista histórica feita por
Fórum na sua residência pelos jornalistas Anselmo Massad e Renato Rovai.
O novo pensamento econômico socialista
Por Renato Rovai e Anselmo Massad
Nos anos 80 o que o professor Paul Singer falava era entendido de alguma maneira como a palavra do PT sobre economia. De convicções socialistas declaradas, foi um dos primeiros militantes intelectuais do partido. Até por isso tornou-se secretário de Planejamento na gestão Luiza Erundina, que se iniciou em 89. Se Lula tivesse vencido Collor, naquele ano dificilmente seu principal ministro da Economia não seria Singer. Havia Mercadante, Suplicy e outros, mas Singer estaria no centro. Lula venceu em 2002, numa outra conjuntura. O PT já tinha mudado, a esquerda mundial idem e Singer ibidem.
No momento da vitória de Lula, a militância-intelectual do professor se realizava na economia solidária. Ele já trabalhava há anos com gente de todos os cantos do Brasil para construir um sistema cooperativo justo e distributivo. E hoje está no governo por isso.
Esta entrevista de Singer não é só um debate sobre o atual momento econômico ou os rumos do movimento de que ele participa. Ela é o estudo de um dos intelectuais mais preparados do Brasil sobre a condição da esquerda, as possibilidades de realizações socialistas, a inserção do Brasil no mundo, a condição do PT, o que é o governo Lula e tantas outras desafiadoras discussões. Para que o leitor entenda o porquê da primeira pergunta, ao chegarmos para a entrevista, entregamos a edição de Fórum, que estava nas bancas, cuja capa trazia o líder sul-africano Nelson Mandela. E o professor registrou: “é um dos maiores homens do nosso tempo”.
Além do Mandela, há alguém vivo que o senhor considere um ícone do nosso tempo?
Ao lado de Mandela, há um sujeito, chamado (Muhammad) Yunus, de Bangladesh, que fez uma revolução social e cultural sem tomar o poder, pela linha da economia solidária. A grande diferença é que Yunus tomou uma decisão revolucionária ao dar crédito exclusivamente a mulheres. Na cultura do país, profundamente muçulmano, elas são particularmente submissas e subordinadas. Como a maior parte do crédito oferecido era destinado a comprar ou construir casas em aldeias – o banco está presente em dezenas de milhares delas, com 2,8 milhões de sócios – ele instituiu que a propriedade precisava ser da mulher para ser favorecida pelo crédito. O dono era sempre o marido. Por querer o crédito, os homens começaram a passar o terreno para o nome das esposas. Como o divórcio entre muçulmanos é algo muito simples, basta ao homem dizer por três vezes “eu te divorcio” para que a mulher tenha de pegar as crianças e ir para a casa dos pais; hoje isso ficou mais complicado. Hoje, quem tem de sair é o homem, porque a casa está no nome da mulher. Yunus e as mulheres também tomaram a decisão no Grameem Bank de que os associados não devem dar nem receber o dote. O dote é uma tradição mulçumana. É uma propriedade que se transfere da família da noiva para a do noivo e era uma das razões porque as famílias odiavam quando nascia uma mulher. Era um ônus. E adoravam quando nascia um homem, porque ele trazia um bem. Entre gente muito pobre, o dote é uma vaca, o que leva vários anos de trabalho para economizar. Essa prática também está desaparecendo em Bangladesh, o que é uma tremenda revolução social e cultural.
Então o senhor considera que a economia solidária tem um caráter revolucionário?
Tem, porque é uma economia completamente oposta à capitalista em todos os aspectos importantes. Une-se capital ao trabalho, que é o que o capitalismo separa. E isso dá ao trabalhador uma situação totalmente diferente. O assalariado é um trabalhador sem poder nem responsabilidade, por definição legal. Se a empresa vai mal, ele não sofre nada. Se vai bem, tampouco. Tem direito ao salário. Na economia solidária é ao revés, o trabalhador tem responsabilidade total, não individual, mas coletiva, pela empresa. Ele é, por todos os pontos de vista, um participante ativo, com poder e responsabilidade. Há uma emancipação, uma desalienação. Não se pode ser parte de um todo e ficar alheio ao que acontece. Ao falar com um trabalhador cooperado de empresas grandes e antigas que passaram por crises e falências, todos dão este depoimento: “Antes era tão bom, podia ir para casa e esquecer a firma; hoje a levo comigo, sonho com ela”. É uma baita mudança.
Lideranças do movimento no Brasil defendem que a aplicação de programas sociais de transferência de renda seja adotada por meio da economia solidária, o senhor acredita que isso é possível?
Isso ocorre no Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do Patrus (Ananias), para citar um exemplo. Entre vários programas, há um de inclusão social, que é de economia solidária – projeto que entrou no PPA (Plano Pluri-Anual), com a cooperação da Senaes, apesar de a execução ser deles. No Bolsa-Família, um desdobramento do Fome Zero que já atinge 5 milhões de famílias, a idéia é que, na porta de saída, se estimule e ensine modos de trabalho de economia solidária. Temos quase 500 mil famílias assentadas e praticamente todas praticam algum tipo de cooperativismo. Um dos objetivos fundamentais do governo é dar viabilidade econômica aos assentamentos, o que não é fácil. Uma grande parte deles não conseguiu ainda – por problemas de localização ou da qualidade da terra. Não é uma operação comercial, é uma ocupação política das terras. Depois que conquistam a terra e vão ver como está, muitos acabam restritos à economia de subsistência. Isso não é miséria, mas é pobreza. E é preciso ajudá-los, levar educação, saúde, desenvolver tecnologias para o que pretendem fazer. E realizar isso tudo coletivamente é bem melhor. Até por uma opção ideológica dos movimentos – da Contag, do MST.
Chico de Oliveira, seu amigo, diz que a economia solidária mantém a lógica da estrutura capitalista, já que o dinheiro circula, por exemplo, pelas bolsas de valores. O senhor já discutiu sobre isso com ele?
Em geral falamos do PT, do governo, da situação da economia. Não que o tema da economia solidária seja tabu, mas os outros nos envolvem bastante. Mas antes de responder, quero contar uma particularidade. O filho mais velho dele, que também se chama Francisco, o Chiquinho, é secretário de Planejamento da prefeitura do Recife. E está na economia solidária há muitos anos. De vez em quando o encontro e ele me diz: “O velho tá começando a perceber” (risos). Mas a inserção da economia solidária na capitalista não é uma crítica, é uma constatação inegável que eu subscrevo. A tendência é tentar estruturar a economia solidária para que ela funcione em forma de redes. No Brasil ainda estamos muito distantes disso. Mas os assentamentos de terra, por exemplo, até o fim do governo Lula devem dobrar. A meta acertada com o movimento é de 500 mil famílias até o fim do mandato. Se conseguirmos transformá-los em redes, a economia solidária funcionará melhor.
Formar redes seria encadear, da produção à comercialização, empreendimentos autogestionados?
Exato. Para dar um exemplo: quase todo o movimento da reforma agrária é também verde. O MST fez a opção pela agricultura orgânica, sem o uso de agrotóxicos, que está ganhando espaço. Há um processo de comercialização solidária, que se chama comércio justo, que começa na Europa e se estende para cá. É bem provável que os produtos dos assentamentos sejam comercializados em comum por entidades também de economia solidária, de maneira associada aos assentamentos. Isso já acontece em São Paulo, onde algumas lojas já vendem os produtos. Em poucos anos poderemos ter algo nesse sentido, porque a velocidade da mudança é espantosa, o que evidentemente me deixa muito feliz. A situação da economia solidária hoje e a de cinco ou seis anos atrás é muito diferente. As iniciativas eram várias, mas sem ligação umas com as outras. Meu mérito – e me desculpem pela falta de modéstia – foi começar a unir esses empreendimentos. Quando a Unitrabalho, uma grande organização universitária, me convidou para liderar um programa na área dentro das universidades, comecei a reunir o pessoal do MST, das incubadoras. Na PUC, em 1997, fizemos as primeiras reuniões, sem dinheiro para nada. As pessoas vinham de várias partes do país por conta própria. Não eram muitas, algo como 50. Mas na época já foi um espanto haver tanta gente. E começamos a descobrir iniciativas no Amazonas, no Nordeste. Este ano, o encontro nacional reuniu 2 mil pessoas, o que mostra a velocidade do crescimento.
O senhor falou da economia solidária de cinco anos para trás. E para frente, qual sua expectativa?
Você me pede um chute. Não sou muito utopista e, sobretudo, tendo a ser modesto. Acho que estamos caminhando para uma ou duas redes de empresas cooperadas. Uma é a Anteag (Associação Nacional de Empresas em Autogestão) que reúne 300 ou 400 empreendimentos. A Unisol, da ADS-CUT está começando, mas já congrega umas 80 cooperativas. E vai crescer muito. Há uma nova lei de falência em discussão no Congresso, que saiu do Senado em julho e voltou para a Câmara. Nela está previsto explicitamente o arrendamento da massa falida pelos trabalhadores organizados em cooperativas ou associações. Trata-se de uma das formas de se recuperar uma empresa quebrada. Mas, queremos mais. A intenção é haver uma política para incentivar esse tipo de iniciativa, para gerar ou, no mínimo, evitar o desaparecimento de trabalho e renda. Se conseguirmos isso, as cooperativas serão milhares, o que só não ocorre hoje porque a maioria dos trabalhadores não sabe que isso é possível. No momento, a massa falida não pode receber crédito, é uma das coisas mais idiotas, que só descobri em Brasília. Se uma empresa está inadimplente, não pode receber crédito, quer dizer, se tem uma dívida que não consegue pagar, nunca mais poderá pagá-la. É algo que também se pretende alterar. E no caso das empresas recuperadas, no momento da compra, que no caso das cooperativas é feita pelos trabalhadores, as dívidas tanto com o fisco quanto com os demais credores desaparecem. É uma medida muito inteligente, porque o valor negociado aumenta estupidamente. Quem vai querer pagar por uma empresa cheia de dívidas? Só os trabalhadores, que já estão lá e farão isso para preservar seu próprio trabalho, seu ganho. Assim, são muito poucos os interessados nos leilões. Ao limpar a empresa que já está funcionando na mão dos trabalhadores, o preço vai lá para cima e o dinheiro arrecadado nos leilões paga os credores, de modo que o cancelamento das dívidas pagaria antecipadamente os credores.
Dessa forma o senhor crê que a economia solidária pode transformar o conjunto da economia.
Parto de um princípio diferente do do Chico de Oliveira: acho que a economia brasileira não é capitalista por inteiro. Do ponto de vista social, é menos da metade da população economicamente ativa que vive na lógica capitalista, basta olhar as estatísticas. Dos que trabalham, menos da metade está em empresas capitalistas. Uma enorme quantidade trabalha por conta própria e outros em produção de mercadorias – camponeses, pescadores, artesãos, donos de bar, feirantes. Não é capitalista, é outra coisa. Não acredito que daqui a 50 anos a economia solidária será a única economia do país. Não é nem desejável, porque é sadio para ela própria que haja alternativas, inclusive o capitalismo.
Mas o senhor é um socialista convicto, ou mudou de opinião?
Não mudou nada. Exceto que, até os anos 80, acreditava que a sociedade teria de ter apenas um modo de produção. No Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) comecei a perceber isso. Era uma postura do Marx que se revelou falsa. Ele dizia que o capitalismo era um pedaço da economia no século XIX, mas em pouco tempo, seria uniforme, uma sociedade de capitalistas e trabalhadores e um punhadinho de burocratas. Isso é literal. Como os trabalhadores serão pobres, explorados etc. e os donos cada vez menos numerosos, chegará um momento em que a maioria expropriará os expropriadores etc. Essa era a visão de que nós todos compartilhávamos. Hoje, uma parte dos trabalhadores quer ser assalariada, e não levar uma empresa para casa. Quando uma empresa entra em crise e os trabalhadores decidem tomar a empresa, parcelas grandes optam por não integrar a cooperativa. O que eles ganham com isso? Todas as suas dívidas trabalhistas serão pagas – pelos colegas. Na Uniforja, a maior forjaria da América Latina, uma das lideranças tinha objeções ideológicas e 40% dos trabalhadores não entraram para a cooperativa. Os outros levaram o projeto e estão indo bem. E pagam gradativamente todas as dívidas como os companheiros que preferiram se colocar novamente no mercado de trabalho. Isso é fruto de um acordo firmado no sindicato. Imagine se não pudesse? Seria uma forma de restrição às liberdades individuais. Sonho com o socialismo em que as pessoas tenham mais chances de escolha, não menos. No fundo, estou apreciando cada vez mais a diversidade. O mundo é mais interessante com várias lógicas e opções.
Esse novo processo também poderia ser chamado de socialismo?
Claro. O socialismo é uma proposta, a meu ver, maravilhosa e por isso sou socialista. Mas que tem ônus. Não é o paraíso na terra. Ao estudar economia solidária passei a ter um conhecimento que não tinha. Há conflitos, não de classes, porque todos são iguais, mas de outras ordens. Um muito interessante, e que eu nunca sonhara, ocorre entre jovens e velhos. Enquanto os primeiros querem que a empresa cresça, porque vão ficar ali pelos próximos 30 anos, os outros, já começando a pensar na aposentadoria, querem usufruir do que ganharam. Não é de classe, é humano, depende do ciclo da vida em que você se encontra.
Se uma dessas opções, no caso o capitalismo, tem uma característica monopolista e de competição selvagem, não pode ser um risco à diversidade?
Sim, a distopia de Marx sempre é possível, mas não vem acontecendo. O futuro é imprevisível. A história passada é exatamente esta: o capitalismo teve um êxito fantástico e suscitou uma oposição enorme. Eticamente, a maior parte das pessoas é anticapitalista, muitas vezes sem saber. Um mundo desigual, em que o equilíbrio da economia se baseia no desemprego – e é só olhar o Banco Central. Não é o mundo que se deseja. A história dos últimos dois séculos diz que a economia não está ficando inteiramente capitalista, mas ele também não está desaparecendo de jeito nenhum (risos).
O senhor tem alguma referência de um país onde a economia esteja mais perto desse socialismo?
Por acaso sim, a Islândia. É uma pequena ilha perdida no oceano Atlântico. Pelo que leio é uma economia agropecuária, em que 80% de tudo está organizado em cooperativas. São basicamente camponeses que se juntam para industrializar a produção, comprar o que precisam. Na agricultura, é um fenômeno complexo, a indústria é capitalista, mas os fornecedores camponeses. Santa Catarina é isso. A aliança cooperativa internacional reúne representações políticas de cooperativas do mundo inteiro, não todas, mas muitas. Ela contabiliza 600 milhões de membros, 10% da população mundial.
Santa Catarina é um exemplo interessante, porque foi um dos Estados que mais progrediu na distribuição de renda nos últimos anos mesmo sem ter crescido.
Não tinha esse dado, mas não me espanta. Santa Catarina é uma espécie de Islândia (risos). No sentido de que o cooperativismo é muito forte. Mas existem várias empresas por lá, como a Sadia. O Furlan é o exemplo típico do novo capitalista, que explora, mas precisa manter uma vasta base de fornecedores. E esses fornecedores se organizam em cooperativas para se defender do capitalista. Uma cooperativa para alguém como o Furlan é o normal, mesmo que ele não esteja em uma. O cooperativismo está tradicionalmente sob as asas do Ministério da Agricultura, porque há 30 anos praticamente só havia cooperativas nesse setor. Mas eram cooperativas capitalistas. Os sócios são grandes fazendeiros empregando mão-de-obra assalariada. O Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura, é ex-presidente da Aliança Cooperativa Internacional, um cooperativista de segunda geração. O pai dele foi quem fez a lei atual do cooperativismo brasileiro (5764/1971). Soube disso depois que cheguei a Brasília. O Denacoop (Departamento de Cooperativismo e Associativismo Rural) está no Ministério da Agricultura, com uma estrutura grande, com tradição há 30 ou 40 anos.
O senhor publicou um artigo na Folha de S.Paulo classificando o aumento dos juros como lastimável…
Para falar a verdade, escrevi o artigo antes do aumento, com intuito de evitá-lo. Mas como a Folha não teve como publicá-lo a tempo, autorizei o editor a alterar os tempos verbais e reproduzi-lo depois da reunião do Copom. Eu tentava contribuir para que o Copom não fizesse aquela besteira.
Parece que o presidente da República tem menos poder do que a autoridade monetária.
A autoridade monetária existe em todo o mundo há algum tempo, mas nunca se imaginou que ela seria aquilo que os mais à direita chamariam de independente, como é nos EUA, como o Palocci e uma parte da opinião pública querem – o Estadão, a Veja. Felizmente, hoje não é independente. Não tenho estado com o presidente ultimamente, por isso não posso dizer o que ele pensa. Não posso fazer ilações…
Há outras lideranças e visões dentro do próprio governo que têm manifestado posições contrárias à política de juros. Há debate interno?
O quanto sei, não há o debate. O que o governo quer é que o debate fique restrito à equipe econômica, que é basicamente a diretoria do Banco Central e a cúpula do ministério da Fazenda. Aí ele não existe, exceto se o aumento será de um quarto ou de meio ponto percentual. É pouco, porque o governo está cheio de economistas que não estão na equipe econômica, assim como no governo Fernando Henrique. No governo Lula, nós economistas não pertencentes à equipe econômica não temos espaço para discussão.
Mas é possível manter uma linha diferente da praticada hoje?
Todas as economias têm inflação positiva hoje. Inflação zero é um acaso estatístico que ocorre pouquíssimas vezes, quando todos os preços que sobem equivalem-se aos que descem, só aí dá zero na média. A questão é entre inflação e deflação. A última, todos aceitam, é um desastre. É uma das contribuições keynesianas que nem os neoliberais negam. Se houver uma baixa de preços de 5% ao ano, a economia pára. Se você vai comprar uma casa, mas sabe que no próximo ano vai pagar 5% menos, você adia, a não ser que esteja morando na rua. Se muita gente adiar, não se constroem casas. O mesmo vale para qualquer setor. Uma pequena inflação é indispensável para estimular o crescimento da demanda. E conseqüentemente do consumo, do emprego, da produção. Definir qual é essa pequena inflação é o problema. Mas com um dígito, é possível lidar. Existe uma inflação que não somente é necessária, mas controlável, até por subsídios de preços estratégicos, como se fez sempre no Brasil. Subsídios a alimentos básicos podem segurar preços e reajustes de salários. Ir para a recessão e para o desemprego em massa é uma opção muito ruim. Não é necessário. É possível ter inflação controlada e ao mesmo tempo crescimento firme para se chegar a um pleno emprego. É o que eu preferiria. Pelo modelo praticado hoje, parece haver duas opções, aumentar juros ou aumentar o superávit primário para reduzir a proporção dívida/PIB. Ou os dois. As duas medidas que você citou são recessivas e se reforçam mutuamente. Se não se aumentasse o superávit, o dinheiro seria devolvido à economia, em obras de saneamento, habitação e outras áreas prioritárias. A opção é por pagar juros, não amortizar a dívida, mas com isso, o país se poupa de aumentar a dívida. Diminuir a dívida pública é desejável por uns 20 pontos de vista. Para começar, porque é um baita concentrador de renda, na medida em que se tira dinheiro da população para pagar a classe média, dona da dívida pública e todos os que têm investimentos. Se a dívida pública fosse metade do que é, haveria mais distribuição de renda. Há vários caminhos, um deles é crescer a um ritmo maior do que o crescimento da dívida. E com isso a dívida vai diminuindo em relação ao PIB. Minha preocupação atual é a de que o crescimento seja muito frágil, e um dado revelado em setembro mostra-se especialmente preocupante. A taxa de desemprego aumentou e a renda do trabalhador diminuiu, depois de três meses de queda. Pode ser um acidente, mas eu ficaria preocupado, já que o dado foi divulgado poucos dias depois de a taxa de juros e do superávit primário terem sido elevadas. São medidas que podem desacelerar a economia.
Como o senhor avalia os caminhos escolhidos pela equipe econômica?
Do ponto de vista do Copom o risco maior é o da inflação. Na minha avaliação, o risco maior é a não-queda do desemprego e o crescimento abortado. Em 2003, o governo fez uma política expansiva. Não teve um grande resultado, mas praticamente conseguiu evitar a recessão. O resultado começou a ser positivo em março de 2004. O desemprego só começou a cair em maio, o que é natural, mas quatro meses depois a queda começa a claudicar. Um crescimento insuficiente é mais preocupante do que a inflação. O movimento do aumento dos juros e do superávit primário pode comprometer o crescimento, mas foi uma modificação moderada, a conta-gotas, em aumentos marginais. O problema é as expectativas que essas alterações criam. Fiz parte da equipe econômica do PT por muitos anos, promovendo estudos, análises etc e hoje estou no governo, por isso não me sinto à vontade para responder essa pergunta. Mantenho uma posição crítica, como falei. Uma vez, em um encontro do PT, fiz um discurso com críticas ao que o ministro Palocci acredita. Ao final do debate ele veio me cumprimentar e me disse que as críticas ajudam. Tenho convicção de que ele não falou isso só por educação. Gostaria que se apostasse mais no crescimento econômico, mas não me cabe ir além na análise.
Mesmo com uma política macroeconômica ortodoxa, imagino que o senhor acredite que esse governo tem programas transformadores e emancipatórios e por isso continua nele?
Essa era a pergunta por que eu estava torcendo para você fazer. Macroeconomia não é tudo. Há, sim, um esforço pela construção de alternativas e políticas em outras áreas, e é por isso que estou no governo. E esses caminhos não estão apenas na economia solidária, mas em mudanças na estruturas do Estado e da sociedade que se busca promover. Isso se percebe com muita nitidez, para citar um exemplo, na política externa, com relações com a China, a Índia, a África do Sul, que têm semelhanças incríveis com o Brasil. Lula aparece hoje, principalmente depois da reunião na ONU, como a grande liderança anti-Bush, não no sentido da Guerra Fria, mas como alternativa. E é por isso que ele tem o apoio do Chirac, do Schroeder. Isso acontece porque esse é um governo de esquerda. A maioria das pessoas que o compõe é de esquerda, não porque tenham migrado para ela para chegar ao poder, mas por terem biografia de esquerda. Há políticas de educação, saúde e meio ambiente importantes. Não se pode julgar o governo pelo Palocci e pelo Meirelles. É verdade que nessa área, a linha é tão ou mais conservadora do que no governo anterior, mas isso não é o governo todo. Ontem (dia 23 de setembro), tivemos uma reunião de ministérios e cada um tinha cinco minutos para falar. Foi empolgante. O mais surpreendente foi o Ministério das Relações Exteriores, com uma política para regiões fronteiriças, que ocupam 27% do território. Fronteira é sempre uma coisa complicada, é uma linha jurídica e os moradores acabam ficando perdidos, porque moram na mesma cidade, mas têm nacionalidades diferentes e não são atendidos pela estrutura do outro país – de saúde, educação etc. Um acordo com o Uruguai foi realizado para que os moradores de até 25 quilômetros recebam binacionalidade para fins de serviços públicos. Acordo semelhante deve ser firmado com a Argentina.
Estou convencido de que o país vai mudar, porque o movimento social está no governo. O caso mais escrachado disso sou eu, já que foi o movimento da economia solidária que me indicou. Devo o cargo ao movimento. Da mesma forma que o MST e o movimento da reforma agrária estão no governo com o ministro Miguel Rosseto.O governo atual, se tiver tempo, pode mudar de fato a distribuição social. Há gente boa pensando. O PT entrou prontinho para governar. Conheci muita gente no tempo do governo da Erundina que hoje está em Brasília. São pessoas que já tinham o diagnóstico e estão realizando seus projetos. O sonho do PT sempre foi o crescimento distributivista. A política macroeconômica atrapalha um bocado, mas o Fome Zero já é um baita sucesso. A im prensa passou um ano e meio falando que o programa era um fracasso. De repente, quando se anuncia 5 milhões de famílias atendidas, o escândalo passa a ser a verificação das crianças na escola. Claro que é preciso verificar, mas o programa existe e funciona.
Um outro muito importante é o da compra de produtos antecipada, para a agricultura familiar. O agricultor vende para o governo. Se o preço cair, ele não paga nada, mas se subir, recebe a diferença. É um subsídio para a agricultura familiar, com 540 milhões de reais, no máximo 2.500 por família, o que dá mais de 200 mil pequenas propriedades atendidas.
As mudanças estruturais e de política externa podem puxar a política econômica mais para a esquerda?
Adoraria que isso acontecesse, mas não estou certo de que vá ser assim. O pronunciamento de Lula na ONU criticando o FMI, afirmando que o novo colonialismo é o endividamento perpétuo das economias pobres é uma posição de esquerda da qual não posso discordar. Ao mesmo tempo, ele avalia que é importante manter o apoio do Fundo no país, ao firmar um acordo que, na minha avaliação, era desnecessário. Tanto o governo de Fernando Henrique quanto o de Lula são de composição, com conflitos interessantes. A diferença é que neste o peso da esquerda é maior que o da direita, ou talvez do centro seja mais adequado dizer, era predominante no tempo de FHC. Ou seja, são de composições diferentes.