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"Passaremos por um dos carnavais mais politizados dos últimos anos. Blocos e marchinhas tocam, incessantemente, no tema. Mas nesse emaranhado, há os covardes que cultuam a tortura, o sangue derramado injustamente, o dilacerar da carne rebelde, exatamente como os açougueiros que esfolavam animais nos “desfiles” carnavalescos dos finais da Idade Média". Leia mais no artigo do professor Raphael Silva Fagundes
Por Raphael Silva Fagundes*
Aristóteles descrevia o caráter do jovem como sendo dotado de irritação e esperança. Já em relação ao caráter dos velhos, o filósofo grego acreditava que se compõe pelo apreço a experiência, de modo a desprezar o novo. O conflito entre esses dois “horizontes de expectativa” e “espaços de experiências”, “revive”, hoje, um espírito que quer cultuar uma memória turva (como toda memória o faz): a ditadura militar.
Na cultura popular, os velhos descrevem saudosamente o tempo dos quartéis, principalmente, a suposta moralidade que existia. Os jovens sem ter acesso a descrição científica (ou, em muitos casos, desafiando-a, já que é parte do pulsar da pós-modernidade criticar os especialistas), encontram um caminho para a sua esperança, ou melhor, uma solução para a sua irritação endêmica no saudosismo dos avós. Parece, em um primeiro momento, que o que deveria provocar um choque se fundiu, mas em termos de memória, a relação entre avós e netos é muito intensa, como explica o sociólogo Maurice Halbwachs: "Os avós se aproximam das crianças, talvez porque, por diversas razões, uns e outros se desinteressam dos acontecimentos contemporâneos sobre os quais se fixa a atenção dos pais."1
Por outro lado, há também uma movimentação de pseudo-intelectuais que acreditam estar derrubando um modelo tradicional de se escrever a História. Leandro Narloch, Lobão e companhia, são os que têm direito à fala no capcioso programa da rede de televisão americana, History Channel. Segundo eles, os guerrilheiros do período da ditadura não lutavam pela democracia, mas por uma ditadura comunista. Narloch ainda diz que a Ditadura Militar foi ruim, mas seria pior ainda uma ditadura comunista.
Sem dúvida, seria anacronismo pensar que os guerrilheiros defendiam a democracia nos anos 60. A ideia estava voltada para os EUA, por isso a rejeitavam. O sociólogo Marcelo Redenti destaca que esse discurso (iguais ao defendido por Narloch) tem o interesse de dizer que o golpe foi dado para garantir a democracia, pois os comunistas iriam pôr fim a ela, quando, na verdade, “quem interrompeu a democracia foram os militares, e seus aliados civis”.2
Deixa-se, então, sobressair a conclusão: “a violência das esquerdas e das Forças Armadas nos anos 60/70 teriam sido as duas faces da mesma moeda imprestável que jogamos na lata do lixo da História com a redemocratização, que a pacífica sociedade civil sempre almejava”.3 O objetivo é reconstituir uma memória que legitime os interesses “do agora”.
Que democracia defender?
Vivemos em um tempo confuso, onde é necessário escolher entre ir para frente ou retroceder. Um ponto de inflexão. Os foliões do bloco “Porões do Dops”, organizado por membros da Direita São Paulo, escolheram voltar 50 anos, onde muitos dos seus membros nem mesmo haviam nascidos. Retroceder a dezembro de 1968, quando o ato máximo da ditadura, o AI-5, foi decretado, não é uma afronta ao avanço da esquerda, como muitos preferem entender, mas uma afronta à democracia.
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O golpe nunca foi uma ação contra o caráter violento do socialismo, mas contra a democracia que possibilitou a chegada de certo “progressismo” ao poder. João Goulart, que se tornou presidente de forma democrática (cabe lembrar que as eleições para vice-presidente eram feitas de forma direta), foi deposto por uma junta militar. E, hoje, assim como antes, não se é contra o socialismo, mas contra o perigo que a democracia pode gerar aos interesses capitalistas.
A democracia é muito mais atrativa quando se vive sob um regime militar. A burguesia que deu o golpe e pôs fim a ele apresentou um modelo de democracia que hipnotizou a todos por ser, sem dúvida, melhor que um governo de chumbo. Mas agora essa democracia se desgastou e a geração atual a contesta de duas maneiras: ou quer o progresso da liberdade, ou seja, mais democracia, reivindicando onde ela falha, principalmente, em termos sociais e econômicos; ou quer o retorno a ditadura, de um Leviatã que toque a política firmemente. De uma forma ou de outra, o modelo atual de democracia está por um fio.
2018 comemorar-se-á os 50 anos dos movimentos estudantis que abalaram o mundo. Contudo, é fato que a liberdade que pregavam está cada vez mais visível, o que nos leva a exigir algomais. Para além das causas liberais progressistas. Pois, ao privilegiarmos, ao longo desses anos, um modelo específico de liberdade (do corpo e do espírito), esquecemos de pensar na exploração, na maquinação política que modela uma ordem livre que não altera o modelo de exclusão econômica e social tradicional. A realidade baseada no fato de se ter ou não dinheiro deve ser combatida.
A tortura não pode servir de alívio
Passaremos por um dos carnavais mais politizados dos últimos anos. Blocos e marchinhas tocam, incessantemente, no tema. Mas nesse emaranhado, há os covardes que cultuam a tortura, o sangue derramado injustamente, o dilacerar da carne rebelde, exatamente como os açougueiros que esfolavam animais nos “desfiles” carnavalescos dos finais da Idade Média. Um culto simbólico a abundância em um período de penúria, mas também uma forma de lembrar o homem primitivo que sacrificava animais em seus rituais de proteção a comunidade.
O desejo de voltar a um tempo em que a violência era cultuada, ou, talvez, onde a sensibilidade perante ela era menor, é um culto ao retrocesso. O culto a torturadores é pura burrice. É uma manifestação de acovardados que se escondem por trás de um líder que representa uma figura paterna ríspida, que descarrega broncas, pois se encontram incapazes de assumir riscos e de conduzir o próprio destino. Esses covardes que veneram a opressão contra os mais vulneráveis, não podem se vingar na folia, num momento de alegria, pois, caso contrário, o que virá depois que as risadas cessarem e a situação exigir seriedade? Muitos vivem lembrando e esperando os períodos de festa para aliviar a dor diária que os oprime entre os dias descontraídos. Definitivamente, a tortura não pode servir de alívio...
1 HALBWACHS, Maurice (1877-1945). A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. p. 65.
2 REDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas para os pesquisadores. REIS, Daniel Aarão et. al. (orgs.) O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 63.
3 Id.
*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí