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Diante da procura, o espetáculo foi transferido para um teatro quase quatro vezes maior. Os integrantes da equipe do festival receberam o público maquiados com brilhos nas bochechas. A peça foi aclamada durante vários minutos.
Da Redação*
O efeito foi o avesso. A burrice e intransigência dos fundamentalistas acabou incensando o espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. A sua apresentação no 24º Porto Alegre Em Cena, na noite desta quinta-feira (21), se transformou em um ato triunfal de desagravo à peça, à liberdade de expressão e à diversidade.
Devido à grande procura por ingressos, as apresentações foram transferidas da Pinacoteca Ruben Berta, onde caberiam apenas 50 espectadores por sessão, para o Teatro Bruno Kiefer, com capacidade para 188 lugares.
Ao final da apresentação, o público que lotou o Teatro Bruno Kiefer, na Casa de Cultura Mario Quintana, aplaudiu demorada e efusivamente a atriz Renata Carvalho e a diretora Natalia Mallo (As duas na foto).
A organização do Porto Alegre Em Cena reforçou a Casa de Cultura com oito seguranças, o que deverá ser repetido na sessão desta sexta (22), também com ingressos esgotados.
A montagem, que se vale da figura de Jesus para falar de compaixão à população trans e outras comunidades marginalizadas, foi objeto de polêmica nos últimos dias devido ao cancelamento de uma sessão em Jundiaí (SP) na sexta-feira (15) por determinação judicial.
Em Porto Alegre, um advogado chegou a acionar a Justiça nesta segunda (18), pedindo a proibição das exibições, mas a liminar foi indeferida pelo juiz José Antônio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública. Então, o advogado interpôs recurso, mas a Justiça entendeu, em segundo grau, que o caso é da alçada do Juizado Especial da Fazenda Pública. De volta à primeira instância, o juiz Ângelo Furlanetto Ponzoni também indeferiu o pedido, autorizando a apresentação.
Cerca de uma hora antes da sessão, marcada para as 22h, os espectadores começaram a chegar, incluindo artistas e intelectuais de relevo, reunindo-se no térreo do centro cultural. Para entrar no prédio, era preciso apresentar ingresso ou crachá. Já os integrantes da equipe do festival adotaram um visual festivo, em apoio ao espetáculo, maquiados com brilhos nas bochechas.
A educadora Esther Pillar Grossi, que foi escolhida a madrinha desta edição do festival e chegou a acionar a Justiça em defesa da exibição da peça, recebeu o público no térreo do espaço cultural com os tradicionais merengues que ela mesma prepara. A cesta mais bonita estava reservada para Renata Carvalho, a atriz do espetáculo.
— É com açúcar e com afeto que a gente vive — declarou Esther. — Os franceses dizem que, enquanto preparamos algo para oferecer, estamos também pensando, curtindo, lembrando.
Na entrada do teatro, que fica no sexto andar da Casa de Cultura, o público recebeu um pequeno cálice ou um copinho de vinho e uma vela artificial, que seriam utilizados para uma espécie de brinde em determinado momento da ação. Monólogo escrito pela dramaturga trans escocesa Jo Clifford, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu resgata ensinamentos bíblicos para defender o fim da intolerância e do preconceito de gênero, mas durante o espetáculo fica claro que seu tema vai além: é uma denúncia contra qualquer tipo de violência na sociedade.
Evocando a figura de Jesus, a atriz travesti Renata Carvalho assume o papel de narradora de parábolas bíblicas atualizadas. Sua performance é séria na maior parte do tempo, mas por vezes bem-humorada, sem jamais zombar da religião. Trata-se de uma denúncia contra falsos moralistas que se valem da fé para pregar o ódio.
Renata, que em momentos de emoção parecia ter sua voz embargada, defendeu no palco que todos possam ser abençoados, sem distinção. Foi recompensada, ao final, com aplausos de quase dois minutos. A diretora Natalia Mallo, então, subiu ao palco para fazer os agradecimentos com a atriz. Renata encerrou:
— Vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transexual e da atriz travesti. Pelo mais simples e verdadeiro motivo: somos todos iguais.
Na saída da peça, a diretora teatral Jezebel de Carli, que estava entre os espectadores, observou:
— Queria muito ver esse espetáculo, até porque trabalhei com o Silvero (Pereira, ator) e o Coletivo As Travestidas. Achei delicado mesmo tratando de uma temática dura, difícil, dolorosa. Mas acho que ela (Renata Carvalho) consegue essa congregação com as pessoas. Transcende a questão política ou religiosa. Ela está falando da humanidade, de aceitação.
Já a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô, que esteve envolvida com a criação de dois espetáculos da programação do 24º Porto Alegre Em Cena, destacou:
— Fiquei muito feliz de ver esse espetáculo. Primeiro, porque é uma obra de arte. Em segundo, porque cumpre a função básica de um trabalho teatral, que é reunir as pessoas em torno de um pensamento dentro do contexto histórico que vivemos no Brasil. Achei lindo ver uma atriz com uma técnica que vem de lugares marginalizados da nossa sociedade, como a cultura travesti.
Leia outros depoimentos de artistas que assistiram ao espetáculo:
"Fiquei muito emocionada com o desfecho do espetáculo. É até de chorar. Não é um espetáculo apenas de palco italiano, porque ela (a atriz) tem que ir e voltar, subir de descer do palco, mas ela chega lá."
Adriane Mottola, diretora teatral
"Evidentemente, vim com a expectativa de algo que poderia ser agressivo, por toda a polêmica que se gerou em torno do espetáculo, mas a gente observa em todo o trabalho uma delicadeza da atriz na forma de tratar o tema."
Gabriela Grecco, atriz
"A gente tem que tentar entender esse movimento transexual e os travestis. O espetáculo nos aproxima disso para nos fazer entender melhor. Venho trabalhando isso há muito tempo e acho cada vez que a gente tem que colocar os atores em cena mostrando sua vivência."
Lauro Ramalho, ator