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O líder dos Racionais MCs fez um show histórico, com direito a discurso político, no berço do rap e da cultura negra em São Paulo: a periferia. Confira mais no novo artigo da coluna de Joselicio Junior
Por Joselicio Junior
O dia 9 de julho de 2017 ficará marcado na história da Zona Sul de São Paulo, em especial na Praça do Campo Limpo, com a realização de mais um Festival Percurso, organizado pela Agência Solano Trindade - movimentando a economia solidária e criativa das periferias. O festival foi encerrado com o belíssimo show do Mano Brown com o espetáculo "Boogie Naipe".
A atmosfera do festival é incrível. Diversos coletivos e empreendedores se reúnem em torno de uma proposta de pensar e exercer alternativas econômicas, fazendo os recursos circularem dentro e para as comunidades. Além disso, o encontro é um espaço de valorização dos artistas do circuito cultural periférico e uma opção de lazer para comunidade. Neste sentido, reúne famílias e uma gama de jovens com uma afirmação estética, com uma forte identidade negra e periférica.
Toda essa construção foi coroada com um grande show do Mano Brown e seu projeto de funk soul denominado Boogie Naipe, que contou com presença de Seu Jorge. Brown falou diversas vezes, durante a apresentação, da satisfação de tocar na sua quebrada, no seu quintal, e chegou a dizer para Seu Jorge que o Campo Limpo era como o Bairro de Madureira no Rio, tão cantado por diversos artistas pela sua importância cultural no subúrbio carioca.
Ao assistir Mano Brown na Praça Campo Limpo foi inevitável resgatar na memória uma lembrança muito forte da minha infância, quando assisti o show dos Racionais MCs naquela mesma praça. Foi no ano de 1992, eu tinha 6 anos de idade, e fui acompanhar a minha mãe em um showmício da candidatura do Eduardo Suplicy para prefeito de São Paulo. Me lembro, como se fosse hoje, que no auge do show saiu um tiroteio que acabou com atividade. Um momento de muita tensão. Na época entendi muito pouco o que estava acontecendo, mas as cenas ficaram marcadas.
Olhando para 1992, o Brasil vivia um momento muito conturbado desde impeachment do Collor, crise econômica, aumento do desemprego, explosão da violência urbana, chacina do Carandiru. Neste contexto, os Racionais eram uma expressão de uma juventude que gritava para ser ouvida, que denunciava a violência, a desigualdade, o racismo. Essa autenticidade, essa verdade, fez tanto sentido para aquela geração que fez desse grupo o maior do rap brasileiro e um dos maiores do mundo, e colocou Mano Brown como uma referência, como um líder com suas qualidades, defeitos e contradições, com verbo afiado e sem papas na língua, incomodando o sistema com letras como Racistas Otários, Voz Ativa e tantas outras que sucederam.
Passados 25 anos foi incrível voltar a mesma Praça do Campo Limpo para assistir um big show, com uma super banda de funk soul, Mano Brown e Lino Krizz brilhando no palco com a mesma postura de mestres da black music como James Brown e Marvin Gaye, com músicas românticas, dançantes, mais sem abrir mão de mandar o recado sobre o contexto político do país, dialogando com a quebrada.
Antes de subir no palco, quando questionado por Flávia Martinelli, dos Jornalistas Livres, sobre o que mudou, Brown dispara: “Esse Mano Brown é aquele Mano Brown, estamos em um momento delicado, momento caótico, onde é preciso sensibilidade, não podemos agir só no calor das emoções, precisamos pensar, precisamos analisar, questionar, precisamos agir dentro de um tempo de raciocínio e cálculo, não no susto e nem no medo”.
Assim como em 1992, estamos vivendo um momento muito conturbado em nosso país. Sofremos um golpe institucional das elites, que derrubou a Dilma para impor mudanças nas leis do mundo do trabalho que ataca os mais pobres. O presidente ilegítimo está por um fio graças ao seu envolvimento em escândalos de corrupção. Mais de 14 milhões de desempregados, aproximadamente 40 milhões de trabalhadoras(es) informais (sem registro em carteira e renda fixa)... A cada 23 minutos um jovem negro e periférico é assassinado no país.
De fato, é um contexto caótico, como afirmou Brown. Instabilidade política, econômica e social. Não haverá saídas fáceis e nem, muito menos, repentinas. Mas, sem sombra de dúvida, a periferia está em movimento. Há muitas movimentações, articulações e construções. Sem dúvida, a cultura jogará um papel importante. Assim como o rap nos anos 90 foi o grito de uma juventude violentada, hoje a cultura periférica vem se afirmando como uma expressão de resistência e organização popular.
Esse processo de resistência está acontecendo em um contexto complexo onde a pressão social tem deixado as pessoas doentes, deprimidas. Neste sentido, concordo mais uma vez com Mano Brown: precisamos de sensibilidade. Vou além, precisamos fortalecer as relações, as identidades, a cultura, as formas de organização e, sobretudo, construir um projeto de nação.
*Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho é Jornalista, Presidente Estadual do PSOL – SP e militante do Círculo Palmarino, entidade do movimento negro