Acabo de assistir, com lágrimas, ao vídeo de duas horas e doze minutos sobre a sessão solene fúnebre do Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina em homenagem ao reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo.
É um dos eventos que entrarão para a história como o culto ecumênico que se realizou em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, em 1975, no começo do fim da ditadura militar.
O representante dos alunos Leonardo Moraes, orientando de Cancellier no curso de mestrado, foi aplaudido de pé quando disse:
“A tragédia de ontem não foi um acidente. Um desafeto político, uma denúncia deturpada, um processo arbitrário conduzido por uma delegada, possivelmente inconformada por ter sido afastada da Lava Jato, uma decisão inconsequente da juíza da 1a. Vara da Justiça Federal de Florianópolis mudaram, do dia para a noite, a vida do reitor Luiz Carlos Cancellier. Depoimentos que o absolviam foram ignorados, provas foram colhidas sem qualquer contraditório, uma prisão duramente criticada por toda comunidade jurídica catarinense. Uma decisão assinada no conforto de um gabinete, que transformou a história da nossa universidade. Elementos que convergiram para uma desfecho que não condiz com o homem que nós conhecíamos. Cancellier jamais foi acusado de desvio de recursos. Não havia fundamentos para uma medida tão agressiva como a prisão temporária. Um homem que lutou contra a ditadura militar se viu condenado sem contraditório, julgado pela mídia, pela sociedade, sem direito de defesa. O homem do diálogo foi preso sem poder falar. Entretanto Cancellier não voltaria pela porta dos fundos. Ontem, Cancellier retornou para a Universidade Federal de Santa Catarina pela porta da frente, sem ordem judicial, carregado nos braços dos seus alunos, colegas, amigos e familiares”.
O ex-senador Nelson Wedekin, de quem Cancellier foi assessor e era amigo, lembrou que a morte dele será contada, nas estatísticas oficiais, como suicídio.
“Mas ninguém se iluda. Mãos visíveis (…) e muitas mãos invisíveis o empurraram das alturas”, disse.
“Que mãos são estas?”, pergunta, para ele mesmo responder:
“Mãos de quem talvez saiba o que é vingança, mas certamente não sabe o que é justiça. Mãos de quem só têm a si mesmos como virtuosos e honestos, senhores do bem e do mal, da reputação de quem mal conhecem e não têm nenhuma curiosidade para conhecer. Mãos de quem têm o poder de prender e ignoram a gravidade do delito suposto e para quem tanto faz o cidadão ter ficha limpa ou antecedentes criminais. Mãos de quem, sempre ciosos da imagem de suas respectivas organizações desprezam, entretanto, a imagem das demais, como deuses de um Alcorão ou de um Bíblia fundamentalista. Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante e de começar uma investigação pela coerção, constrangimento e prisão dos suspeitos, não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacidade de cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação”.
“Mãos de quem, ciosos de seu poder e autoridade, ao invés de exercê-los com critério, partindo do pressuposto inalienável de que o cidadão pode ser culpado, pode ter uma parte da culpa ou pode ter culpa nenhuma, pensando que sua intuição e seu juízo são infalíveis, só têm olhos para as evidências que confirmem as suas suspeições.”
“Mãos de quem, ainda ontem, frequentavam os bancos da faculdade, mas, para quem, a presunção da inocência, pináculo do estado de direito, pilar da democracia, conquista da civilização, é um inútil ornamento na lei. Mãos de quem não abrigam em seus corações nenhum sinal de bondade, de compreensão pelo outro e não abrigam em suas cabeças nenhum raciocínio da proporção de seus atos, nenhuma projeção dos seus efeitos e das suas consequências no ser humano, na instituição, na comunidade. Mãos que em nada parecem saber que a prisão, em toda circunstância, é desonrosa, à exceção das prisões nas ditaduras, dos presos políticos. Em nada parecem saber que abate, constrange e humilha aprisionar, examinar alguém em corpo nu, vesti-lo em roupa de prisioneiro e que tudo isso adentra pelo terreno da barbárie. Ainda mais quando se está sem flagrante, sem sentença e antes mesmo de ser réu. Mãos de quem se aproveita de uma época inglória e insana, de uma sociedade exaurida pelos escândalos públicos e que, em boa parte de sociedade, tem espuma e sangue nos lábios. Para quem tudo é joio e só eles são o trigo. Para quem, tendo na ponta da língua os chavões da época, de condenação geral aos bandidos de verdade que existem, mas levando junto os que passarem perto e os inocentes que têm o azar de passar pelo caminho. Um pouco de humanidade não lhes faria mal. Não conheço nenhum desses agentes da lei e não desejo conhecê-los porque tenho medo deles”, continuou.
“Que autoridades são estas que, ao invés de nos proteger, nos causam medo e terror?”
”Mãos não só de autoridade, mas de uma imprensa que primeiro atira e depois pergunta quem vem lá… isso QUANDO e SE pergunta”.
Enquanto ele falava, sem citar nomes, me vinham à mente imagens da delegada Erika Marena, que vi no vídeo de uma das audiências conduzidas por Sergio Moro.
Erika, a quem se atribui a maternidade do nome Lava Jato, acompanhava o depoimento do agente Dalmey Werlang, que havia denunciado a instalação de escutas ambientais clandestinas nas celas dos presos da operação.
Um advogado informa ao juiz da presença da delegada, que poderia constranger Dalmey. Erika está sentada de frente para Sergio Moro, mas, quando o advogado informa sobre a presença de Erika, o juiz diz, demonstrando surpresa:
— A Erika está aqui?
Sim, ela estava, segurando algo que parece um bloco de anotação.
Moro, então, pede que os delegados envolvidos no caso se retirem, já que “podem ser arrolados como testemunhas no futuro” — ou como indicados.
Erika coloca o bloco na bolsa e sai. O áudio capta seus passos duros.
Na sessão solene fúnebre do Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, as manifestações se sucedem. Falando em nome de todos os reitores que passaram pela universidade, o decano Ernani Bayer cita uma frase em latim, imortalizada pelo senador Cícero, numa contenda com o inescrupuloso senador Catilina, no Imperio Romano:
“Quo usque tandem abutere patietia nostra?”
Ernani mesmo traduz:
“Até quando abusará da paciência nossa?”
Me vem a imagem da delegada Erika sorridente, na foto com a também sorridente atriz Flávia Alessandra, que a interpretou no filme sobre a Lava Jato.
Que autoridade precisa apresentar provas quando se tem uma mídia que a apresenta como herói acima do bem e do mal?
Na sessão solene fúnebre, no palco onde está o caixão com o corpo do reitor Concellier, uma faixa é aberta:
“Democracia de Luto em Luta. Aqui mais uma vítima do estado de exceção e sua mídia”.
O desembargador Lédio Rosa de Andrade, amigo de infância do reitor, seu colega no Centro de Ciências Jurídicas, sobe ao palco. Ele manca de uma perna e segura na mão de uma jovem, talvez aluna.
Um gigante na tribuna. Ele chama o reitor pelo apelido de infância, Cal. Transcrevo toda a fala, pela força da mensagem:
“Tentarei, num esforço muito grande, manter o mínimo de racionalidade, porque, confesso, que, neste momento, o sentimento, a emoção me toma. Uma tristeza profunda me corrói por dentro. Uma raiva forte. Uma indignação maior ainda diz que nós temos que ir adiante, que não podemos parar, porque o momento por que o nosso país passa é grave, é perigoso e precisa de ação.
Acioly, Julinho, que saudade da rua Santos Dumont, onde morávamos como crianças, onde passamos nossa juventude, onde jogávamos bola na rua e xadrez dentro de casa, tênis de mesa nos dias de chuva, onde cometemos nossos primeiros crimes, temos que confessar, pois ali furtamos umas goiabas, também rosas para nossas namoradas. Todos nós juntos, você era pequeno, Julinho, Acioly um pouco mais adulto, eu e o Cal da mesma idade.
Frequentamos o Colégio Deon (grafia pode não estar correta), brincamos, brigamos, estudamos, porque éramos de famílias humildes. Só tínhamos a nós e a nossa capacidade. E assim seguimos adiante.
Chegamos a esta universidade como alunos. Alunos de direito. E enfrentamos a ditadura militar, a arma no governo. O reitor Ernani, que há pouco falou, administrava tendo que aturar, na marra, um sala para os agentes da polícia que fotografavam, que nos espionavam, que poderiam nos prender se escutássemos o Chico Buarque ou o Vandré.
E que ironia da história e do destino, porque foi naquele hall da reitoria que eu, o Cal e tantos outros líderes estudantis, como o Adolfo, já falecido, o Jailson Lima, que jantamos juntos, e o Julinho, esta semana lá em casa com o Cal. Ali, naquele hall, nós fizemos as maiores assembleia do tempo da ditadura. Milhares e milhares de alunos sentamos no chão e nós usávamos a escada como palanque para denunciar a prepotência e para defender a autonomia e a liberdade da universidade pública e gratuita.
Nós sabíamos que nós não estávamos no estado democrático de direito. Nós sabíamos que poderíamos ser presos. Nós sabíamos que tivemos colegas e amigos presos, torturados e alguns assassinados, porque aquele era o regime que nos administrava.
Mas não esmorecemos, fizemos a nossa luta. E ganhamos, porque acabamos com a ditadura. Ela terminou. A vida seguiu.
O Cal foi para Brasília acompanhar o combatente senador Wedekin. Voltou e terminou seu curso de direito. Fez metrado, fez doutorado, e eu tive a honra de estar nas duas bancas dele. Discutíamos, conversávamos, estudávamos, pesquisávamos, porque sempre fomos contra o fundamentalismo, sempre fomos contra os argumentos fáceis, néscios, cheios de verdade, mas ocos, vazios, fórmulas vazias.
Trocamos de lado. De estudantes passamos a professores desta casa. E como Cal se orgulhava disso. Como ele gostava disso. Como ele tinha nisso a sua vida. E da vida humilde da rua Santos Dumont, do nosso querido Tubarão, construiu outra vida, típica de professor aqui em Florianópolis. Apartamento de professor. Nem carro tinha. Vida de professor, prática de professor.
E foi nestas condições que chegou a seu maior sonho, a reitoria desta universidade. Claro que todos nós temos vaidade, todos nós temos um ego e precisamos dele para viver o dia a dia. É claro que chegar a reitor tem um pouco de ambição, de todos que lá chegaram. Mas, acima de tudo, Cal tinha vocação, tinha o desejo pelo ensino, tinha a vontade de fazer da UFSC o que estava fazendo, com sua equipe, uma das maiores universidades deste país.
E vejam que coisa: a ditadura não nos prendeu. E nós achávamos que tínhamos derrubado. Cometemos um erro porque os ditadores de espírito nunca morrem. Estão sempre aí, estão aqui, neste momento, alguns deles, esperando a hora de voltar. Sempre.
Esta luta não acaba. Nunca acaba esta luta. E se nós descansarmos, eles voltam. Eles voltam. Quando se fala em estado democrático de direito, nós estamos falando de muito sangue, de muita guerra, de conquistas feitas com suor e com esforço de nosso antepassados.
Quando se fala em ampla defesa, estado democrático de direito, contraditório, isso não é brincadeira.
Esse néscios que estão por aí dizendo bobagem não sabem o que é uma ditadura. Não sabem que eles serão os primeiros a clamar por estado democrático de direito daqui a pouco.
E foi dentro dessas condições que o Cal se deparou com a mais perfeita ditadura, que é a ditadura feita em nome da moral, a ditadura feita em nome da justiça, a ditadura feita em nome da democracia.
É claro que estado democrático de direito precisa de imprensa livre, é claro que estado democrático de direito precisa de independência do Judiciário, para que o Judiciários e os juízes julguem livremente, sem pressão. Só que também é claro que essas instituições, absolutamente importantes para a democracia, a cada dia, a cada momento, são deturpadas.
Em nome da liberdade de imprensa, se exerce a liberdade de empresa, privada, para impor desejos privados à coletividade.
Em nome da liberdade de julgar, neofascistas humilham, destroem, matam.
Como professor de criminologia, eu levei meus alunos para a penitenciária. E me levaram no setor de segurança máxima, onde o Cal passou uma noite. Eu tive uma crise de pânico pela opressão arquitetônica. Não entrei. Saí correndo lá de dentro.
E fique a imaginar — eu estava por livre e espontânea vontade, com meus alunos —: e se tivessem tirado minha roupa? E se tivessem me feito uma revista íntima? E se tivessem me acorrentado nos pés e nas mãos? Eu morreria lá naquela noite. Eu não sairia de lá vivo. E o Cal saiu.
O Cal, que sempre lutou com flores na mão contra canhões, que sempre usou a palavra contra a insensatez, que sempre conversou e que nunca causou mal a ninguém, acabou encontrando a pior das ditaduras e oprimido. Acabou encontrando aquilo por que nenhum de nós quer passar.
E eu termino falando: o Cal sempre foi um professor e morreu como professor, nos dando a última lição. A última lição do nosso mestre foi de que contra a mais absoluta injustiça, que contra o terrorismo de estado, só a tragédia pode chamar a atenção de uma população que vive uma histeria coletiva. Só a tragédia… só a tragédia…
Esta noite, com dificuldade de dormir, eu fiquei a pensar: quando a humanidade errou e não parou Hitler no momento certo? Quando a humanidade errou e não parou Mussolini no tempo certo? E fiquei pensando: eles estão de volta. Será que nós vamos errar de novo e deixá-los tomar o poder, para nós termos que trocar as flores e pegar de novo em armas para fazer outra guerra e derrubá-los?
Será que já não basta? Será que não é hora de nos unirmos e exigirmos consequências, se a família assim quiser? De irmos até as últimas consequências pedindo que sejam apurados esses atos de arbitrariedade?
Já não é hora?
Bertold Brecht já nos disse. Já prenderam não só nossos vizinhos. Já estão levando nossos amigos próximos e vão nos levar.
A vida é isso, companheiros. É luta permanente. E a democracia não permite descanso. Não permite descanso.
Eu hoje, como professor da UFSC, sou uma pessoa que tem orgulho e alegria. Como desembargador, tenho vergonha.
Porcos e homens se confundem. Fascistas e democratas usam as mesmas togas. Eles estão de volta. Temos que pará-los. Vamos derrubá-los novamente.”
Outra imagem me vem à mente. O homem alto Marcelo Bretas com a mulher, ao lado de Sergio Moro com a mulher, andando sobre o tapete vermelho da estréia do filme sobre a Lava Jato.
Eles estão de volta.
Usam toga e são incensados pelas empresas de jornalismo e de entretenimento, numa aliança que destrói reputações e mói ossos, com gritos de dor e desespero que começam a se tornar audíveis.
A imagem que agora me vem à mente é de outra natureza. Elis Regina cantando:
“Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente.” Foto: UFSC