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Áureo Mafra de Moraes aponta que o período sob suspeição do programa de Ensino a Distância da UFSC se refere a episódios ocorridos em 2011 e 2015, antes de Cancellier assumir a reitoria.
Por Lucas Vasques
“Nossa maior angústia, ao longo dos vinte dias que durou o martírio dele, foi não termos podido vê-lo, abraçá-lo em solidariedade. Isso foi definitivo para consolidar o estado depressivo pelo qual ele passou até o limite de suas forças. Para quem, como ele, estudava e ensinava sobre justiça, promovia diálogos e defendia a tolerância, ser preso com requintes de crueldade e submetido às piores humilhações foi definitivo”. Este é o testemunho de Áureo Mafra de Moraes, chefe de gabinete da reitoria da UFSC e amigo pessoal de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ex-reitor da universidade, que se suicidou na última segunda-feira (2).
Moraes relembra que o comportamento de Cancellier foi mudando ao longo dos dias. “Vimo-nos pela última vez na quarta-feira (13-9), véspera da prisão. Ele estava motivado, disposto e despachamos várias questões importantes. Depois disso, sabíamos apenas por meio de poucos amigos que o viam que, a cada dia, ele estava mais abalado. Jamais imaginávamos que pudesse ocorrer o desfecho que ocorreu. Mas a atitude de colocar fim à vida foi um ato político, cujo sentido sabemos bem identificar”, reflete.
Cancellier assumiu a reitoria da UFSC em 2016 e o programa de Ensino a Distância, pivô do imbróglio, foi criado em 2006, ou seja, dez anos antes. Portanto, segundo o chefe de gabinete, se é que existiam irregularidades, o problema estaria fora do alcance da participação dele. “O próprio processo, até onde conseguimos ter acesso, já que nos foram institucionalmente negadas as informações completas, aponta que o período sob suspeição se refere a episódios ocorridos em 2011 e 2015. Não houve, em nenhum relatório recente da CGU, por exemplo, em auditorias regulares e frequentes, qualquer menção a fatos ocorridos a partir de maio de 2016, quando ele assumiu”.
Moraes atesta a eficácia do programa de Ensino a Distância, que, de acordo com ele, concretizou, nada menos, do que mais de 2.400 pessoas formadas e diplomadas pela UFSC. “Era mais do que eficiente, exemplar e inclusivo”. Questionado se acreditava que uma disputa política na universidade seria a causa principal do que ocorreu com Cancellier, ele diz que “não quero acreditar que esteja aí a motivação. Os fatos foram gerados por pessoas, insisto, mal-intencionadas, sem vivência ou envolvimento pleno com a UFSC. Gente sem compromisso com a instituição e somente preocupadas com suas próprias vaidades e delírios. Pessoas que desconhecem, ignoram e combatem a universidade. Que enxergam em uma instituição como a nossa um ambiente nocivo e contaminado. Levianas, irresponsáveis e ignorantes”.
Em relação à discrepância entre o valor divulgado como sendo supostamente alvo de desvios – R$ 80 milhões – já desmentido pela advogada do ex-reitor, Moraes diz que aí reside o maior absurdo de todos os episódios. “É quase inacreditável que qualquer pessoa – jornalistas em especial – não consiga dar-se conta disso. Sem contexto, levianamente, tomaram como verdade uma situação tão impressionantemente falsa”.
Na avaliação de Moraes, a corregedoria deveria ser apenas mais um mecanismo de controle dos vários que a universidade possui. “A citada autonomia dessa corregedoria não é plena. É relativa, na medida em que o órgão está vinculado ao gabinete do reitor. E a criação da corregedoria não tirou dele as atribuições e prerrogativas de ser quem detém a decisão final sobre processos. O problema, portanto, não está na corregedoria, mas na atitude e personalidade doentia do corregedor (Rodolfo Hickel do Prado)”.
Arbitrariedade
O chefe de gabinete da reitoria lembra da relação antiga que tinha com Cancellier: “Conheci o reitor há 30 anos, convivendo como jornalistas que somos. No ambiente da UFSC, nosso relacionamento ficou mais próximo há quatro anos, quando ele, como diretor do Centro de Ciências Jurídicas, articulou, com outros diretores, um grupo no sentido de construir um projeto para a eleição à reitoria em 2015. No caso dos fatos recentes e trágicos, o papel dele sempre foi exercido com a mesma honestidade e seriedade com que atuou a vida toda. Foi, na verdade, vítima de pessoas movidas pelas piores intenções, irresponsáveis e levianas. Todas as ações adotadas pelo reitor se deram no âmbito da mais estrita legalidade e com base nas prerrogativas do cargo”.
Por isso, ele considera a prisão do ex-reitor “arbitrária, injusta, abusiva, humilhante e motivada apenas pelo desejo de aparecer. No mínimo, uma atitude suspeita da juíza que decretou a prisão. Até onde julgo razoável, não cabe ao magistrado antecipar posições no curso de um inquérito”.
Moraes também critica a mídia tradicional nesses episódios. “O pecado mais capital é da mídia. Autoridades que antecipam juízos e agem de forma arbitrária são péssimas fontes. Dar crédito a elas e disseminar seus arbítrios deveriam ser combatidos pelos jornalistas. O que fazem, pelo contrário, é assumir o papel de assessores de imprensa, reproduzindo sem apurar, sem desconfiar, sem duvidar. Pode ser que esteja na hora da comunidade jurídica repensar os critérios de prisões preventivas. Mas admitir que precisávamos de uma tragédia é acreditar demais em setores que estão – estes sim – contaminados por valores contrários ao estado democrático de direito”.
Moraes completa lembrando as palavras de um dos grandes amigos do ex-reitor, o ex-senador Nelson Wedekin: “Mãos invisíveis o empurraram das alturas. Que mãos são essas que sabem o que é vingança, mas não o que é justiça? Não se passa, assim, o país a limpo”.
Surpresa
Casada durante 15 anos com Cancellier, entre 1986 e 2001, Cristiana Vieira ficou muito surpresa com o que estava ocorrendo em relação às investigações que atingiram o ex-reitor da UFSC. “Não é pelo fato de ser um próximo e, mais que isso, pai do meu filho mais velho. Mas o Cau (como era conhecido) sempre esteve à frente das lutas populares, sempre foi um homem simples, nunca saiu da casa onde morávamos, mantinha há anos os mesmos hábitos, extremamente simples. Não sabia dirigir, não tinha carro. Não tinha vaidades e detestava viajar. Sempre, sempre viveu para o trabalho e para nosso filho (Mikhail Cancelier, professor de Direito na UFSC, que nasceu em Brasília, em 1987, quando ambos trabalhavam na Constituinte)”, revela Cristiana, graduada em Letras pela UFSC, com mestrado na USP, doutorado na Unicamp e pós-doutorado na universidade de Estrasburgo, na França, em Teoria e História da Literatura.
Ela percebeu que algo estava errado. “Ele era um homem público, com residência fixa, reitor da universidade, sem antecedentes. Foi preso em casa, levado para a PF e, em seguida, transferido para a Penitenciária do Estado onde, algemado, sofreu revista íntima e foi vestido com o uniforme laranja dos presos. Tudo isso em menos de 24 horas, sem que soubesse o motivo. Ele e mais cinco professores. Ficou incomunicável. Toda a ação baseada em denúncias não apuradas sobre o Programa de Ensino a Distância na UFSC. Pelo que conhecia do Cau, sabia que, naquele dia, a vida dele estava ameaçada. Era demais para o que podia suportar. Ele conversava com poucas pessoas, nunca gostou de incomodar ninguém. Eu continuei sempre muito próxima dele, construímos uma amizade sólida com os anos, era meu irmão. Ele cuidava sempre dos mínimos detalhes, chamava minha atenção quando eu precisava assinar algum contrato ou algo assim. Sempre muito preocupado para fazer tudo corretamente. Ele não tinha estrutura para suportar tanta arbitrariedade. Entrou em depressão e num sofrimento profundo. Sabia que sua imagem estava indelevelmente manchada e que tudo isso era apenas o começo. Quando foi solto, estava impedido de voltar à universidade. Ele começou a morrer”, conta Cristiana, sem esconder e emoção.
Ela define a prisão do ex-marido como “totalmente injusta e arbitrária, desmedida. Minha impressão é que, atualmente, procuramos mais por pão, circo e sangue do que pelo exercício da justiça e da verdade. Queremos nos divertir com as tragédias alheias. Um palco de horrores, no qual a apuração séria e justa dos fatos ganha o papel adjuvante. Importa menos”.
Cristiana acredita que os métodos atuais que definem as prisões preventivas precisam ser revistos pela comunidade jurídica. “Essa não é minha área exatamente. No entanto, acredito que as prisões preventivas deveriam passar por uma junta de magistrados de mais de uma instância, como ocorre em outros países. Não pode estar nas mãos de uma juíza somente enviar pessoas, ainda presumidamente inocentes, para a prisão, sem qualquer fato comprovado. Ela poderia tê-los proibido de sair da cidade, buscar depoimentos, mas não enviar, sozinha e arbitrariamente, todos para a prisão. Para o Cau foi a sentença de morte”, destaca.
Afinal, prossegue, para a honra maculada não há reparação possível. Está feito. “No entanto, depois de assistir à homenagem no Centro de Eventos da UFSC, o velório no hall da reitoria, magistrados, professores, alunos e o governador do estado emocionados, chorando ao proferir seus discursos, me restou uma pequena esperança de ver a justiça cumprida. Acho que a reputação do Cau foi honrada novamente e que ele passará para a história da UFSC e da educação pública brasileira como um batalhador, um homem de bem que pagou com a vida a injustiça e a arbitrariedade e que nunca abandonou a luta pelo ensino público, gratuito e de excelência. Acredito que o suicídio dele dará novos rumos ao processo. É apenas o que posso esperar, sobretudo pela nossa dor e a mais pungente, do nosso filho Mikhail”, completa Cristiana, atualmente professora adjunta da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA, em Foz do Iguaçu, onde reside.
Distorções
Prisões espetaculares, com ampla cobertura da mídia, que muitas vezes acabam em absolvição ou em casos sem denúncias, estão distorcendo o papel real da Polícia Federal e do Ministério Público. A avaliação é de Paulo Marcondes Brincas, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB-SC), em referência ao caso do reitor. "O que seu viu foi muito grave", resume.
Cancellier, desde que foi preso e afastado da UFSC, vinha passando por tratamento psicológico. Em uma carta escrita no mês passado, ele havia denunciado os “métodos” do MP e da Polícia Federal ao julgá-lo, sem apresentar provas ou dar chances de defesa, e a humilhação a que fui submetido. "Ele não foi ouvido, não teve chance de se defender. O reitor de uma das principais universidades do país ser preso nessas circunstâncias, com uma exposição pública dessa intensidade, é muito sério. A consequência disso agora está aí. O que fazer agora? O que dizer para a família? O sentimento que fica, após essa tragédia, é o de destruição de uma reputação, o que preocupa muito".
Questionado se a OAB-SC vinha acompanhando o caso desde o início, seu presidente destacou: "À época da prisão de Cancellier, emitimos uma nota pública condenando a ação. E, agora, divulgamos outra, pois nossa entidade, historicamente, sempre defendeu a tese de que todos são inocentes até que se prove o contrário". Segundo Brincas, o que aconteceu com o ex-reitor, infelizmente, não se trata de um fato isolado. "Estamos observando, no geral, uma flexibilização dos critérios que levam a prisões provisórias. Em minha avaliação, está na hora da comunidade jurídica repensar se esse é o caminho correto. Tenho conversado muito, especialmente com advogados criminalistas, e a queixa é quase unânime de que há uma disseminação impressionante dessas prisões espetaculares, com muita mídia, que, frequentemente, acabam em absolvição ou em casos nos quais, sequer, são feitas denúncias. No entanto, o julgamento social é implacável, não tem volta, pois a pessoa acaba sendo julgada e condenada publicamente. O estrago está feito".
Foto: Divulgação/UFSC