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Presidente do órgão municipal divulgou nota contrária à proposta, afirmando que colegiado não foi consultado. Ministério Público quer prova científica e exame pericial sobre valor nutricional do produto
Por Rodrigo Gomes, na RBA
A presidenta do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan), Christiane Gasparini Araujo Costa, divulgou nota dizendo que o órgão não foi consultado pela gestão do prefeito da capital paulista, João Doria (PSDB), sobre a criação do programa Alimento Para Todos, que propõe receber doações de sobras de alimentos que seriam descartados pela indústria ou comércio e processá-los para produzir um "granulado nutricional" distribuído à população de baixa renda. Ela se manifestou contra o projeto.
“Diante da magnitude deste processo vivido, incluindo a sua repercussão internacional, venho esclarecer à população de São Paulo, na condição de presidente do Comusan, que a iniciativa de produção e distribuição de um granulado nutritivo a ser entregue às populações que enfrentam carências nutricionais no município não foi encaminhada para apreciação do Conselho e não se alinha às diretrizes que vimos construindo com vistas a facilitar o acesso de toda a população à ‘comida de verdade’”, afirmou Christiane, no documento.
A presidenta ressaltou que existe uma Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Decreto 57.007/2016) fixando as diretrizes que orientaram a elaboração posterior do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (2016-2020). “Tanto a fome como os índices de sobrepeso e obesidade, ao lado da epidemia de doenças crônicas em nossa cidade são problemas de saúde pública que devem ser tratados por meio das políticas públicas previstas no Plano e não por ações isoladas”, ressaltou.
O Conselho convocou uma reunião para o próximo dia 26 com o objetivo de debater a proposta. O órgão existe há 14 anos e tem como finalidade “contribuir para a concretização do direito constitucional de cada pessoa humana à alimentação e à Segurança Alimentar e Nutricional”. O colegiado é formado por 45 conselheiros, sendo 30 da sociedade civil.
A Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos foi estabelecida pela Lei 16.704/2017, sancionada no dia 8. A partir dela, a prefeitura elaborou o projeto Alimento para Todos, em parceria com a Plataforma Sinergia, que consiste em produzir “um granulado nutritivo” que pode ser adicionado às refeições ou utilizado na fabricação de outros alimentos.
O composto vai ser produzido pela Sinergia e, a princípio, seria distribuído nas cestas básicas entregues pelos Centros de Referência de Assistência (Cras). Em seu site, a Plataforma Sinergia informa ter desenvolvido “um sistema de beneficiamento de alimentos que não são comercializados pelas indústrias, supermercados e varejo em geral. São alimentos que estão em datas críticas de seu vencimento ou fora do padrão de comercialização, razões que não interferem em sua qualidade nutricional ou segurança”.
Com a repercussão do caso, Doria convocou uma entrevista coletiva na manhã de ontem, ao lado do cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer. E afirmou que “a Secretaria de Educação já foi autorizada a utilizar na merenda escolar, de forma complementar, o alimento solidário. Com todas as suas características de proteína, de vitamina, de sais minerais, para a complementação desta merenda”.
Da mesma forma que o Comusan, a Coordenadoria de Alimentação Escolar (Codae), órgão da Secretaria Municipal da Educação, não foi consultada antes de Doria mudar o discurso e dizer que vai incluir o produto na merenda das escolas municipais.
O órgão técnico é incumbido do gerenciamento técnico, administrativo e financeiro do Programa de Alimentação Escolar da cidade. Dentre suas atribuições estão a definição de cardápios, aquisição e controle dos alimentos e fiscalização do fornecimento da merenda. Além disso, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), ao qual o município de São Paulo está submetido, determina que todo alimento que se pretenda introduzir no cardápio das escolas deve ser avaliado por nutricionista e passar por teste de aceitação com os alunos.
Nesta quinta-feira (19), o Ministério Público (MP) paulista instaurou procedimento para apurar o uso da ração humana na merenda escolar e nos centros de acolhida para população em situação de rua, conforme anunciado pelo prefeito inicialmente. O MP quer prova científica e exame pericial que atestem o valor nutricional do produto. A prefeitura informou que “todas as informações solicitadas pelo Ministério Público ou qualquer outro órgão de controle acerca da política de combate ao desperdício de alimentos serão prontamente fornecidas”.
Ontem, o vereador Alfredo Alves, o Alfredinho (PT), conseguiu aprovar um requerimento para uma audiência pública sobre a ração humana na Comissão de Administração Pública da Câmara Municipal. Ainda não há data para a reunião. A vereadora Sâmia Bomfim está organizando um abaixo-assinado reivindicando uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o programa Alimento para Todos.
Serão convidados o secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará; a secretária municipal de Direitos Humanos, Eloisa Arruda; a presidenta do Conselho Municipal de Assistência Social, Fernanda Campana; o coordenador do Fórum de Assistência Social, Itamar Moreira; e a Nutricionista e pesquisadora Renata Levy (USP).
Nutricionistas contra
Especialistas ouvidas pela RBA se manifestaram contra a proposta por entender que ela contraria o direito humano a uma alimentação saudável. “É curioso São Paulo, a maior cidade do país, investir em uma política que é muito antiga, pelo menos 15 anos atrasada. É uma política que vai à contramão de tudo que a gente está produzindo para promover saúde”, afirmou Ana Carolina Feldenheimer, professora de Nutrição Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
Após a repercussão, o Conselho Regional de Nutricionistas (CRN-3) também se manifestou contra a proposta, por entender que contraria os princípios do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), bem como do Guia Alimentar para a População Brasileira. "Em total desrespeito aos avanços obtidos nas últimas décadas no campo da segurança alimentar e no que tange as políticas públicas sobre as ações de combate à fome e desnutrição", diz a nota publicada nas redes sociais do CRN-3.
As empresas doadoras de sobras de alimentos vão ter ganhos. Além de se livrar do custo de descarte, poderão receber incentivos econômicos da prefeitura de São Paulo. A proposta contempla possibilidades como concessão de empréstimos, “compreendendo a concessão de financiamentos em condições favorecidas, admitindo-se créditos a título não reembolsável”; criação de “programas de financiamento e incentivo à pesquisa e desenvolvimento de tecnologias” afeitos à proposta; e isenções do Imposto Sobre Serviços (ISS) e do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).