A polêmica do "kit gay", gerada em 2011 a fim de destruir as políticas públicas de combate à homofobia nas escolas, forjou as armas que hoje inflamam público contra as artes. Leia mais no artigo de Jorge Luiz Miguel
Por Jorge Luiz Miguel*
A polêmica do "kit gay", gerada em 2011 a fim de destruir as políticas públicas de combate à homofobia nas escolas, forjou as armas que hoje inflamam público contra as artes. Injúria, difamação, distorção de imagens, desqualificação moral dos adversários como "pervertidos" foram usados para atacar militantes LGBTs e especialistas em educação. Se hoje essas armas se voltam para museus e instituições de arte, atingindo artistas que usam o corpo ou cujas obras têm conteúdo sexual mais explícito, sua origem pode ser encontrada na reação homofóbica que se instalou no país nos últimos anos.
Deslocadas de seu usos iniciais, aprimoradas e ampliadas, as acusações de “pedofilia” e a defesa da “inocência das crianças” hoje tomaram outra proporção. O crescimento do discurso moral assusta aqueles que não foram seus primeiros alvos. Para entender esse fenômeno, uma breve recapitulação do episódio do “kit gay” pode ser útil.
Sessão ordinária da Câmara dos Deputados, 30 de novembro de 2010. Um deputado vai à tribuna anunciar “o maior escândalo que eu tomei conhecimento até hoje”, segundo suas palavras. Alerta os pais, a quem se dirige repetidas vezes, contra um Kit de Combate a Homofobia, segundo ele seria recebido por crianças de 7 a 10 anos, e esclarece: “essa história de homofobia, é uma história de cobertura, para aliciar a garotada”. O deputado em questão é Jair Bolsonaro. Num primeiro golpe de inteligência retórica, Bolsonaro rebatiza o kit, que passa a se chamar “kit gay”.1
Programa do Ratinho, 13 de dezembro de 2010. Bolsonaro e Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), são os convidados. Com toques de suspense, o apresentador anuncia a exibição de um vídeo: a personagem é a travesti Bianca, que fala de sua dificuldade de continuar a estudar, dadas as violências que sofria: “tem dias em que vir para a escola é um castigo (...) às vezes eu acho que não vou conseguir terminar a escola”, fala a personagem. Bolsonaro comenta: “é uma porta aberta para a pedofilia a exibição desse vídeo nas escolas”.
Segue o programa. Ratinho pede para soltar um vídeo. Um trecho de uma fala de André Lázaro, então secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC) é exibido no programa. O secretário fala de um beijo lésbico. Acaba o vídeo. Música de terror. Ratinho comenta o vídeo. Quando ele fala a palavra “lésbico”, a platéia grita, como se corressem assustados de um monstro. Quando Toni Reis pede para explicar, voltam os gritos aterrorizados da platéia2.
No limite das insinuações de Bolsonaro sempre esteve a equiparação entre homossexualidade e pedofilia. Assim, no plenário da Câmara, em 17 de março de 2011, Bolsonaro chama os vídeos do kit de “filmete pornográfico infantil” , e prossegue: “Tão atacando, fazendo um escândalo com nossa criançada nas escolas, nossos filhos, nossos netos: enquanto os pais tão trabalhando, o filho tá lá sendo aliciado pra ser homossexual (...) estão escancarando as portas da pedofilia em nossas escolas”.3
Tomemos outro exemplo desse procedimento na fala do senador Magno Malta, em 16 de maio de 2011: "Estão preparando um kitzinho para meninos a partir de seis anos de idade. Um filmete ensinando a beijar na boca, ensinando as crianças a se relacionar sexualmente"
De que tratava exatamente o projeto Escola Sem Homofobia, contra o qual estes políticos se insurgiram? Sabia-se naquela época - e a situação não mudou - que a homofobia faz vítimas nas escolas, por meio de agressões verbais e físicas, que culminam em evasão escolar, principalmente das travestis, depressão e também suicídios de jovens. A partir disso, criou-se um projeto para, entre outras coisas, fornecer material didático a professores que, orientando contra o preconceito, melhora-se a difícil situação de crianças e adolescentes LGBTs. Esse material didático foi construído numa trabalho conjunto entre ativistas de movimentos sociais LGBTs e técnicos do ministério da Educação.4
A confusão deliberada quanto ao conteúdo e o sentido de imagens e fatos também sempre foi grande arma de homofóbicos. Parlamentares e líderes religiosos da campanha do “kit gay” espalhavam desinformação (a hoje chamada “fake news”) quanto à idade dos estudantes com os quais o kit seria trabalhado, quanto à natureza do material e a forma do seu emprego5. Confundiam de propósito, como hoje.
O sucesso da campanha completou-se em maio de 2011. No dia 17 de maio, parlamentares da bancada evangélica, da bancada católica e da bancada “da família” anunciaram sua intenção de obstruir o andamento da pauta na Câmara até que o assunto do kit fosse resolvido. Depois de uma semana de recuos sucessivos, o governo de Dilma Rousseff suspendeu todo o material. A presidenta Dilma declarou publicamente que “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”, impondo uma censura moral à pauta LGBT em seu governo.
O recuo do governo não encerrou a questão do “kit gay”. Ao contrário: os homofóbicos fizeram uma bela descoberta retórica, e nunca mais pararam de falar no assunto. Nunca mais. A ideia de que algum estranho militante estava à espreita para aliciar crianças era demasiado sedutora, mexia de forma demasiado eficaz com as ansiedades de um certo público, para ser jogada fora. Bolsonaro se referiu ao “kit gay” de forma ininterrupta ao longo dos anos - seja alertando contra a ameaça de sua volta, seja reafirmando a indignidade dos que o geraram.
Assim, em 2012, um vídeo apresentado por Jair Bolsonaro ( “é a volta do kit gay”, diz ele na apresentação), contendo trechos muito editados da fala da psicóloga Tatiana Lionço no IX Seminário LGBT, deu início a uma campanha de linchamento moral. Como narrou posteriormente a própria Tatiana: “Após esta atividade profissional, tive que retornar inúmeras vezes à Câmara para buscar reagir à violação moral que me acometeu por atuação deliberada do Deputado Federal Jair Bolsonaro na edição de um video em que ele alerta a sociedade brasileira sobre os riscos psíquicos e sociais que pessoas como eu representam para as crianças nas escolas. Imediatamente após, blogs de fundamentalistas cristãos ou mesmo de conservadores assumidos se lançaram fervorosamente na violação de minha imagem e honra pública. (...) Eu, pessoalmente, sequer me apresento como lésbica. Tenho uma trajetória heterossexual e sou mãe de crianças. Mas isso não me exime de ser desqualificada moralmente ou mesmo desumanizada, posto que sendo uma ativista que luta contra a homofobia e pelos direitos de homossexuais, eu mesma, heterossexual, seria nas palavras do pastor engendrada por satanás.6
Essa satanização do adversário, extremamente destrutiva para os LGBTs e seus aliados, agora se volta a outras searas. Imagino que os primeiros ativistas LGBT e gestores MEC que, na polêmica do “kit gay”, tiveram vídeos com falas suas tiradas de contexto e demonizadas, ficaram tão espantados quanto hoje estão aqueles que presenciaram a performance de Wagner Schwarz no Panorama do MAM.
Como é possível tal distorção dos fatos? Em parte, ela é possível porque alguns dos que abraçaram a campanha contra a exposição “Queermuseu” e contra o Museu de Arte Moderna de São Paulo têm o conhecimento acumulado de anos de difamação homofóbica. Essa “expertise” está sendo aplicada agora. Nesse sentido, é muito significativo que o Movimento Brasil Livre, por meio do seu jornal virtual, se use da psicóloga “cristã” Marisa Lobo para explicar o sentido de seus ataques à liberdade artística. Com longa ficha corrida de serviços prestados à homofobia, Marisa Lobo é a principal defensora da chamada “cura gay” no Brasil. Seu discurso sobre um “movimento internacional para naturalizar a pedofilia”, que por anos serviu para difamar militantes LGBTs, hoje recai sobre as instituições de arte7.
Também não é à toa que no centro da discussão sobre o “Queermuseu” esteja a “criança viada”. A pintura da artista Bia Leite, em que aparecem as agora famosas inscrições “criança viada – travesti da lambada” se baseia nas fotografias disponíveis na internet no Tumblr (espécie de blog de fotos) de mesmo nome, “criança viada”. Nesse Tumblr, gays, lésbica, travestis e transexuais adultos exercem o direito de contar suas histórias de vida, nelas identificando, desde a infância, a presença da “viadagem”, da “sapatonice”, a alma “travesti” ou a “pinta” em geral. Que essas representações de vidas LGBTs sejam nomeadas como estímulo à pedofilia e “erotização infantil” mostra o quanto os vitoriosos da campanha do “kit gay” foram mesmo vitoriosos8.
Lembrando o primeiro grande pânico sexual do Brasil dos anos 2000 - a polêmica do “kit gay” - esperei contribuir para esclarecer algumas das fontes da reação presente. Hoje talvez possamos começar a entender que ceder aos homofóbicos foi um grave erro estratégico dos governos petistas. O que parecia então uma concessão tática numa “pauta menor”, deu energia para um movimento conservador que não parou de crescer. Como afirmou uma antropóloga americana, “disputas sobre o comportamento sexual muitas vezes se tornam o veículo para deslocar ansiedades sociais, e descarregar a concomitante intensidade emocional.”9 Precisamos integrar à nossa visão social e política uma análise anti-homofóbica. Só assim compreenderemos as raízes desse conservadorismo.
*Jorge Luiz Miguel é militante do movimento LGBT do Rio de Janeiro 1 Fonte. Página do youtube de Jair Bolsonaro. Publicado em 30 de novembro de 2010. Link: https://www.youtube.com/watch?v=ONfPCxKdGT4 2 “Kit Gay - Programa do Ratinho c/ jair bolsonaro e 1/2 - 13 12 2010.flv”Fonte. Youtube. Publicado em 12 de abril de 2011. Link: https://www.youtube.com/watch?v=K25h1jRilQU&t=635s 3 “O PT E A FAMÍLIA” Fonte. Página do youtube de Jair Bolsonaro. Publicado em 17 de março de 2011. Link: https://www.youtube.com/watch?v=EAP_oCoXnMI 4 Fonte: Felipe Bruno Martins Fernandes. “A Agenda anti-homofobia na educação brasileira (2003-2010)”. Disponível em: http://www.tede.ufsc.br/teses/PICH0100-T.pdf 5 Lembrando que o material nunca foi destinado às crianças, não incluía a distribuição de cartilhas e não seria de uso obrigatório nas escolas. Era voltado para o ensino médio (a partir de 14 anos), e seria entregue não aos estudantes, mas aos professores. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2011/05/920763-kit-gay-era-optativo-e-so-para-escolas-que-lidavam-com-bullying.shtml 6 Tatiana Lionço, Por que comecei a gritar na Câmara dos Deputados? É tempo de guerra moral no Brasil. Texto de 7 de março de 2013 Fonte: http://cebes.org.br/2013/03/por-que-comecei-a-gritar-na-camara-dos-deputados-e-tempo-de-guerra-moral-no-brasil/ 7 Entrevista acessível em: https://jornalivre.com/2017/10/06/em-entrevista-exclusiva-psicologa-afirma-que-existe-um-movimento-para-naturalizar-a-pedofilia/ 8 Que o prefeito Marcelo Crivella, em vídeo do dia 1 de outubro, tenha referendado essa acusação de pedofilia, chega a ser mais grave que as acusações iniciais. Conforme vídeo disponível no link abaixo: https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/em-video-crivella-diz-que-nao-quer-no-rio-mostra-de-pedofilia-zoofilia-21895151 9 Gayle Rubin, “Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade”. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1582