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Informações desencontradas, narrativas óbvias, incoerências, jogada de timing político e reprodução de estereótipos são apenas alguns dos componentes da ação da Polícia Federal que prendeu suspeitos de planejarem atos terroristas nos Jogos Olímpicos. Afinal, até que ponto a midiatização dessas suspeitas está ligada apenas a medidas de prevenção?
Por Ivan Longo
Não é de surpreender que, diante dos fatos ocorridos pelo mundo nos últimos anos, governos e chefes de estado se preocupem com a segurança da população e dos turistas em megaeventos, como é o caso dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Talvez tenha sido essa a motivação do governo interino de Michel Temer, por meio de seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, ao deflagrar a operação que prendeu dez pessoas suspeitas de ligação com o grupo Estado Islâmico nesta quinta-feira (21). A maneira como a operação foi conduzida e as explicações dadas, no entanto, sugerem que há outros interesses por trás que vão além da simples prevenção.
De acordo com Moraes – que foi secretário de Segurança Pública de São Paulo e comandou uma série de operações questionáveis do ponto de vista dos direitos humanos –, os suspeitos já estão sendo investigados há algum tempo, mas a operação só foi divulgada nesta quinta-feira por “motivos de segurança”.
Na Europa e em países que costumam a ser alvo de ataques terroristas, quase todas as investigações relacionadas ao tema são mantidas em máximo sigilo para que as investigações não sejam atrapalhadas e também para não criar pânico na população. Ora, se era essa a linha de pensamento há até um dia atrás, por que resolveu-se midiatizar o episódio hoje?
A pergunta e torna mais relevante se levarmos em consideração uma outra colocação do ministro da Justiça. “São grupos amadores. Tudo leva a crer que eles jamais agiriam de maneira séria”. Se não são tão perigosos assim, como justificar as prisões e as conduções coercitivas, além da convocação de uma coletiva de imprensa para amplificar ainda mais as suspeitas? Investigações que envolvem a segurança nacional podem ser feitas dentro do mais absoluto sigilo. Não podem?
E mais: não é muita coincidência que um "assunto bomba" como esse repercuta justamente na semana em que está em evidência a fraude da pesquisa do Datafolha para beneficiar o presidente interino? Seria uma jogada de 'timing político'?
Todas as prisões e conduções foram feitas com base em uma única “evidência” que tornaram, para a Polícia Federal, essas pessoas suspeitas: conversas em aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram. Ora, esse não era o país em que juízes conseguem tirar o serviço desses aplicativos do ar como uma sanção por eles não fornecerem os registros de conversas dos usuários? A criptografia desses sistemas torna a recuperação do histórico praticamente impossível e nem mesmo agentes do FBI têm fácil acesso à essas informações.
Moraes, quando perguntado sobre isso, se enrolou e justificou dizendo que não pode explicitar os métodos de investigação e que há “outros meios” de se descobrir. A partir daí surgem ainda mais perguntas: temos na PF agentes mais qualificados ou tecnologia ainda mais avançada que as agências de inteligência mundiais para recuperar conversas criptografadas com tamanha facilidade? Estaria ele mentindo ou blefando? Se há “outros meios”, por que os juízes não acionam outras esferas da Justiça para dar seguimento às suas investigações e evitar a retirada desses serviços do ar como aconteceu essa semana?
As perguntas já são muitas, mas não param por aí. Por que as informações do ministro da Justiça e da Polícia Federal não batem? Na coletiva, Moraes afirmou que os dez presos eram um de cada estado. A PF, no entanto, informou que só em São Paulo foram presos quatro suspeitos.
À parte o desencontro de desinformações, há também no fato que tomou as manchetes dos jornais desta quinta-feira o uso e reforço de estereótipos e preconceitos alinhados a uma narrativa clássica e óbvia de “guerra ao terror”. Um dos suspeitos presos em São Paulo, conforme noticiado em matéria exclusiva da Fórum, era convertido ao islamismo e, de acordo com sua esposa, estava apenas em grupos de WhatsApp de aulas de árabe. Ele trabalha em uma funilaria com o pai para conseguir sustentar os dois filhos e ainda sugeriu que a polícia vasculhasse sua residência – já que foi apreendido na casa de sua sogra – para provar que não tem nada a dever. Brasileiro, convertido ao islamismo, “barbudo”, dá aulas de árabe: ingredientes perfeitos para criar o estereótipo de uma pessoa que teria ligações com grupos terroristas.
Mais curioso ainda é constatar que antes mesmo da prisão do jovem, na semana passada, a revista Veja já utilizava uma foto sua segurando o “estandarte negro”, uma das bandeiras do islamismo – que hoje foi apropriada pelo grupo terrorista – para associá-lo ao planejamento de atos criminosos.
E, claro, nessa história toda não podia faltar uma AK-47. Hoje esse tipo de armamento é facilmente encontrado para venda em favelas brasileiras e não é difícil se deparar com seu uso dentro do crime organizado. Associar um ataque terrorista ao uso de uma AK-47 soa um tanto quanto óbvio e cai como uma luva à narrativa do terror quando se noticia que os suspeitos estariam tentando comprar uma dessas no Paraguai – país que também tem tradição de ser, aqui no Brasil, associado ao crime. Até agora nem a tentativa e nem a compra foram confirmadas.
Cabe lembrar também da real possibilidade de o Brasil ser atacado pelo Estado Islâmico. O país não é signatário da coalizão internacional de combate ao grupo. Não somos, portanto, um alvo tão em potencial assim dos terroristas tendo em vista que seus ataques têm se limitado aos países quem compõem a coalizão.
Por fim, o efeito que essas narrativas todas causam também parece óbvio: o ódio e o preconceito. Não precisou de muito tempo para que veículos de imprensa começassem a chamar os suspeitos de terroristas, como se algo já estivesse comprovado. Um deles foi o G1, através do blog 'Segurança Digital', com a manchete: “Como o governo teria grampeado terroristas no WhatsApp?”.