A história como exercício democrático

Em sua coluna na Folha de S. Paulo, Demétrio Magnoli partiu para cima do grupo Historiadores pela Democracia, qualificado por ele como uma quadrilha. Em réplica, os historiadores Clóvis Gruner e Murilo Cleto corrigem-no dos equívocos ao conceituar a disciplina para praticar o seu ódio à democracia.

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Em sua coluna na Folha de S. Paulo, Demétrio Magnoli partiu para cima do grupo Historiadores pela Democracia, qualificado por ele como uma quadrilha. Em réplica, os historiadores Clóvis Gruner e Murilo Cleto corrigem-no dos equívocos ao conceituar a disciplina para praticar o seu ódio à democracia Por Clóvis Gruner e Murilo Cleto Em sua coluna do último sábado (25) na Folha de S. Paulo, Demétrio Magnoli resolveu partir para cima do grupo Historiadores pela Democracia, que ele denominou, já no título, como uma “quadrilha”. “Quadrilha” cujo crime, como denunciou, foi ter prestado solidariedade à presidenta afastada Dilma Rousseff no Alvorada, e anunciado um livro, provisoriamente intitulado “A força do passado”, sobre o que entende como um golpe. No texto, Magnoli sugere que o grupo não foi capaz de formular, sozinho, a hipótese de golpe, mas tão somente adotou o discurso do Partido, assim, com “P” maiúsculo mesmo. Para Magnoli, a aspiração do movimento é totalitária e viola os princípios da atividade de historiador que, segundo ele, não pode tecer a narrativa “em bando”, mas “indagar o passado, formulando hipóteses que orientam a investigação e reconstrução da trama dos eventos”. Também por isso, sustenta que seria um absurdo classificar como golpe um acontecimento que ainda não teve o desfecho decretado pelo Senado. Mas não para por aí. Num exercício interessante de analogia criativa, Magnoli recorre à Associação dos Magistrados do Paraná, que armou um modelo de ações por danos morais contra jornalistas que divulgaram os salários de juízes estaduais, como exemplo de atuação corporativa de efeito nocivo e persecutório. Ele tem razão no posicionamento em favor dos jornalistas. O que os historiadores que denunciam o golpe têm com isso, no entanto, só o geógrafo deve ser capaz de entender. O malabarismo retórico encontrou transição na citação à Associação dos Juízes pela Democracia, que tem em comum com o grupo de historiadores, além do nome, a defesa do mandato de Dilma. A natureza político-partidária do movimento é desmascarada, segundo Magnoli, pela adoção do termo “presidenta”, que Dilma teria tornado compulsório – ainda que ele o utilize somente como identificador de alinhamento ideológico e não como linguagem. O que tem esta associação com a outra, também só Magnoli saberia dizer. Ainda que soe intencionalmente agressivo o uso do termo “bando” para classificar a produção da narrativa histórica, Magnoli – ele próprio organizador de duas obras coletivas e coautor de uma terceira – ignora que algumas das mais profundas transformações na historiografia e nas ciências humanas, em geral, tenham sido capitaneadas por coletivos. Foi o caso, no Brasil, da renovação historiográfica sobre a escravidão e a cultura operária, no alvorecer da democratização, na década de 1980. Fora daqui, há inúmeros exemplos de como “bandos” promoveram intensas e significativas mudanças no campo historiográfico, como a micro-história italiana, nos anos de 1970, e, na França, os Annales, ainda no começo do século XX. Se tivesse estudado as diferentes gerações do movimento francês com um pouco mais de cuidado, Magnoli saberia que já não é mais moderno, desde pelo menos Hegel, que o historiador precise ver um ciclo histórico se encerrar para encontrar o verdadeiro sentido dos fatos. Isso porque o “verdadeiro sentido” sequer existe num universo aberto a diferentes orientações e leituras. Quando Marc Bloch – citado por Magnoli na ocasião em que rejeitou a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – concluiu que o ofício do historiador era “compreender” e não “julgar”, não quis anulá-lo de suas subjetividades. Mas, pelo contrário, reconhecê-las como parte da sua narrativa, jamais neutra e objetiva. Além disso, e distintamente do que afirma o articulista, historiadores não “reconstroem a trama dos eventos”. Primeiro, porque historiadores não reconstroem nada: selecionam, recolhem, organizam e interpretam o passado; tecem narrativas, tramas, a partir de indícios que chegam de tempos pretéritos, sempre fragmentados e dispersos. A história se escreve em um campo de forças, porque o passado é sempre conflituoso e em constante disputa. No início do texto, Magnoli diz que “todos os cidadãos têm o direito de se manifestar sobre a cena nacional” para, logo depois, rejeitar a legitimidade dos profissionais que o fazem a partir de motivações político-partidárias. Essa tentativa de despersonalizar o historiador explora, numa ponta, o crescente sentimento de horror à política no Brasil, e, noutra, objetiva a sua anulação no presente. O próprio Magnoli é uma das maiores referências intelectuais contrárias à instituição das cotas raciais no país. Chegou a escrever um livro a respeito, intitulado “Uma gota de sangue: história do pensamento racial”. A tese de Magnoli, sabe-se, está equivocada, mas não pode ser anulada de antemão pela condição de quem diz. Sua formação como geógrafo e suas motivações políticas atravessam a sua identidade e influenciam a sua escrita. Reconhecê-las é também se admitir como sujeito do conhecimento, que não é portador da verdade absoluta. Ou só é “político” o pensamento daquele que está do lado errado? Mais do que isso: como pode alguém classificar como “totalitária” uma organização cuja maior síntese desta vocação seria defender o mandato de uma presidenta eleita e derrubada por uma quadrilha, essa sim, de ladrões? Uma quadrilha que agiu com o claro propósito de barrar as investigações contra a corrupção e assegurar a impunidade dos que sempre se souberam impunes. Ninguém é obrigado a concordar com a tese de golpe. E ninguém está proibido de exercer a atividade de historiador se dela divergir. O próprio movimento está sujeito a críticas, mas não a acusações que beiram o macarthismo e que exalam a intolerância. Em uma passagem significativa de seu texto, Magnoli acusa, em dado momento: “Democracia, abusa-se da palavra”. Sim, estamos a abusar dela. E isso é pouco, porque precisamos abusar também da própria democracia, e não praticá-la como aqueles que a usam justamente para fragilizá-la ou, como é o caso de Magnoli, cerceá-la e diminuí-la, porque no fundo a odeiam. Na mesma Folha de S. Paulo, nesta segunda (27), a professora e historiadora Hebe Mattos, uma das citadas por Magnoli em seu texto, respondeu à coluna com uma gentileza invejável e convidou o autor para dançar, junto ao grupo, a quadrilha da democracia. Se não aceitar e insistir no discurso rançoso contra os desafetos, é capaz que a verdadeira explicação sobre o incômodo com a tese do golpe não venha mesmo da história, mas da psicanálise. * Clóvis Gruner é historiador e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. Murilo Cleto é historiador e professor das Faculdades Integradas Itararé (FAFIT). Foto: Roberto Stuckert Filho/PR