Clóvis Gruner: O excepcional normal

Escrito en BRASIL el
Aqui nossa esfera pública é atravessada pela vontade religiosa e privada: nas escolas, estamos proibidos de discutir gênero; psicologias cristãs defendem a “cura gay”; e o Estado ameaça com um Estatuto que não reconhece como família outra que não a formada pela união entre um homem e uma mulher Por Clóvis Gruner Ainda repercute o massacre que, na madrugada do último domingo (12), vitimou cerca de 50 pessoas no interior da boate Pulse, em Orlando (EUA), frequentada principalmente pelo público LGBT. Considerado o maior ataque a tiros do país e o pior desde o 11 de setembro, o que parte da imprensa eufemisticamente chamou de “tiroteio” deixou ainda 53 feridos. Nas narrativas tecidas desde o final e semana, sobressai entre outras coisas a urgência em fixar a identidade do assassino, Omar Mateen, e suas estreitas relações com o terrorismo islâmico como o principal motivador para o crime. E isso apesar de sua nacionalidade americana, que lhe garantiu o direito de comprar, legalmente, as duas armas – um rifle AR calibre 223 e uma pistola 9mm. semiautomática – com que perpetrou o massacre. A estratégia é conhecida: atribuir o gesto extremo, a extrema violência, ao estrangeiro ou ao monstruoso, é uma forma de nos desresponsabilizarmos acusando a excepcionalidade do gesto e o caráter estranho de seu causador. Ao confundir a face do perpetrador com a do bárbaro nós, os civilizados, ficamos em paz com nossa boa consciência. Mas trata-se de uma estratégia que cumpre uma função didática particularmente perversa. Ao mobilizar nossa óbvia solidariedade para com as vítimas – os mortos e os sobreviventes –, seus familiares e amigos, ela reitera igualmente a suposta exceção do massacre. E digo suposta, porque a exceção começa e termina no evento: em um curto espaço de tempo, Omar Mateen despejou seu ódio homofóbico contra uma centena de pessoas, ceifando a vida de metade delas em alguns poucos minutos. E essa é toda a exceção, o resto é a norma. Se na atualidade os principais redutos de legislações com caráter abertamente discriminatório são os países asiáticos e africanos – 78 países ainda contam com leis que criminalizam práticas homossexuais, alguns com a pena de morte –, nem por isso o Ocidente tem razões para se orgulhar. Em países de tradição democrática e liberal como a Inglaterra, por exemplo, a homossexualidade só deixou de ser crime em 1967. Em outros, como a Alemanha, passou-se de uma sociedade tolerante no começo do século XX, para a perseguição nazista, amparada no parágrafo 171 do Código Penal, que criminalizava as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, e que só foi revogado em 1969. Nos Estados Unidos, mesmo depois do levante de Stonewall em 1969 e de um crescente movimento de direitos civis que incluía parcialmente as reivindicações da comunidade gay, a ilegalidade só foi banida definitivamente em 2003 e o casamento, legalizado no ano passado, não sem uma aguerrida resistência conservadora. Em outro espectro normativo, as legislações sobre saúde, foi preciso o século XXI bater à porta para a OMS retirar a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, em 1990. No ano seguinte, a Anistia Internacional passa a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos, uma medida cujos resultados práticos, como sabemos, são no mínimo relativos. A discriminação contra a comunidade LGBT, portanto, não se limita aos países e sociedades orientais nem, tampouco, tem matriz exclusivamente religiosa. Antes pelo contrário, estamos a falar de práticas que reverberam ao longo da história, inclusive nos limites do que se convencionou chamar “civilização Ocidental”, e mesmo depois de consolidadas as democracias liberais, a laicidade do Estado e a cultura urbana e moderna. Saber disso é importante para não tomarmos como exceção o que, quase sempre, é parte da nossa normalidade cotidiana. Um ódio fundamental – Não se trata de negar o papel que o fundamentalismo religioso desempenha na disseminação da homofobia. Mas também nesse caso, estamos a lidar com pelo menos três apenas supostas exceções. A primeira, ao atribuir apenas ao Islã uma característica que não lhe é exclusiva: apesar de muitas lideranças religiosas pregarem a tolerância e até mesmo o respeito pela diversidade, a recusa e o ódio para com os diferentes e a diferença estão no cerne das três grandes religiões monoteístas, a justificar as muitas apropriações fundamentalistas que, em nome da palavra sagrada, pregam as guerras santas contra seus inimigos. Sob esse ponto de vista, o fundamentalismo religioso pode tanto ajudar a entender o ataque na boate Pulse, perpetrado por um muçulmano fundamentalista, como as décadas de assassinato de negros promovidas pelos membros da Klu Klux Klan ou o massacre, em junho de 2015, de nove crianças negras em uma igreja de Charleston, na Carolina do Sul, por Dylann Roof, um fundamentalista cristão. O problema é que a explicação religiosa não é suficiente, porque nem toda leitura fundamentalista de textos canônicos do passado é, necessariamente, religiosa. É o caso da segunda emenda à Constituição americana, a que afirma o “direito do povo de conservar e construir Armas”, necessário para a “segurança de um Estado livre”, e que está na origem da facilidade com que tantos assassinos adquirem justamente as armas com que executarão vítimas desarmadas, como os frequentadores da Pulse. Quando aprovada, em 1791, ela tinha a intenção clara de garantir ao povo de uma nação recém proclamada, com instituições ainda frágeis e prestes a enfrentar uma guerra para consolidar sua independência, o direito de empunhar armas para garantir sua autonomia. Hoje, para além dos interesses da indústria armamentista, uma das mais poderosas do mundo, nada justifica a defesa intransigente que muitos fazem do direito ao porte de armas, e não apenas nos Estados Unidos. Nesse caso em especial, a leitura fundamentalista do passado tem servido de esteio para justificar um indisfarçável apego à violência e a uma de suas faces mais visíveis, a exibição narcísica dos comportamentos e condutas heteronormativos. Ameaçados em seus muitos e históricos privilégios e em sua hegemonia, resta aos defensores da “normalidade” mobilizarem principalmente o ressentimento, o medo e o ódio como seus principais afetos. É essa sensibilidade embrutecida que está na origem das muitas investidas contra os poucos direitos que a comunidade LGBT vem conquistando a duríssimas penas. E se em uma sociedade como a americana onde, em tese, a igualdade formal e pública é uma conquista já relativamente consolidada, persistem ainda desigualdades concretas; a situação é ainda mais grave no Brasil Aqui nossa esfera pública, não inteiramente laicizada, é atravessada pela vontade religiosa e privada: nas escolas, estamos proibidos de discutir gênero; pessoas trans não podem usar aberta e indiscriminadamente seu nome social; psicologoas cristãs defendem abertamente a “cura gay”; e o Estado ameaça com um Estatuto que não reconhece como família outra que não a formada pela união entre um homem e uma mulher. Lideranças religiosas como Marco Feliciano desdenharam dos 50 mortos em Orlando ao negar que se tratou de um crime homofóbico. Feliciano, Malafaia e Bolsonaro permanecem indiferentes ao assassinato de mais de 300 homossexuais por ano (seis boates Pulse!) no Brasil, jogando-os na vala comum dos nossos vergonhosos índices de homicídio; uma das estratégias para barrar qualquer avanço que amplie os direitos e garantias civis dos homossexuais brasileiros. Em 1987, o irmão de José Celso Martinez Corrêa, o também diretor teatral Luís Martinez Corrêa, foi brutalmente assassinado, seu corpo amarrado, estrangulado e mutilado com 107 facadas. Para Zé Celso, a intenção do assassino era “matar algo que estava dentro dele mesmo e [ele] não conseguia”. Zé Celso se referia ao ódio, que está na origem das práticas e discursos que justificam a perseguição, o preconceito, a desqualificação e a violência, física e simbólica contra LGBTs. Independente da forma que esse sentimento toma – se religiosa ou parlamentar –, ou onde ele se manifesta – em uma boate ou nas redes sociais –, estamos a falar de algo que se imiscuiu no cotidiano. A suposta excepcionalidade da tragédia da Pulse disfarça sua insuportável normalidade. Charge: Latuff