Imagine

Imagine que uma quadrilha desviou recursos de escolas públicas de todo país. Que o presidente do Congresso fosse um dos investigados e que o poder Legislativo, controlado pelo governo, se recusasse a investigar. Que estudantes tenham protestado e sido massacrados pela Guarda Nacional. E que, meses atrás, todos tivessem saído às ruas contra a corrupção e por mais educação.

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Imagine que uma quadrilha desviou recursos de escolas públicas de todo país. Que o presidente do Congresso fosse um dos investigados e que o poder Legislativo, controlado pelo governo, se recusasse a investigar. Que estudantes tenham protestado e sido massacrados pela Guarda Nacional. E que, meses atrás, todos tivessem saído às ruas contra a corrupção e por mais educação Por Murilo Cleto Imagine, apenas por suposto, que uma grande quadrilha instaurada em Brasília operasse um esquema que fraudava licitações e superfaturava contratos sobre gêneros alimentícios que tinham como destinatários crianças e adolescentes em escolas públicas de todo país. Imagine que o litro do suco de laranja, normalmente vendido a R$ 3,70, fosse comprado pelo Palácio do Planalto e por seus parceiros a R$ 6,80. Imagine que o comando partisse de dentro do próprio Planalto, mais especificamente do Ministério da Casa Civil, o mais importante de todos. Imagine também que as investigações conduzidas pela polícia federal tenham apontado para o líder do governo no Congresso Nacional. Mais que isso: imagine que o líder do governo no Congresso Nacional seja presidente do Congresso Nacional. E que ele próprio era acusado, por delatores, de receber 10% dos contratos celebrados. Não sei se seria demais imaginar que este mesmo Congresso, sem maiores explicações, tivesse rejeitado investigar este que já poderia ser considerado um dos mais ultrajantes esquemas de corrupção da história do país. Talvez não pelas cifras, mas pelo valor simbólico. Comida. Das crianças. Mas vamos apenas imaginar, por mais forçado que seja. Imagine que este mesmo deputado, líder e presidente do poder cuja função é justamente investigar o governo, tivesse declarado à imprensa que seria o primeiro a assinar a abertura da comissão parlamentar de inquérito que investigaria o caso. E que ele não assinou, junto com todos os outros do mesmo partido e da base aliada que dá sustentação ao governo. Imagine também que os estudantes, diretamente prejudicados por todo o esquema, tivessem ocupado as suas próprias escolas e o Congresso Nacional para chamar atenção da sociedade civil para este teatro de absurdos e pedir, assim, a abertura de uma CPI. Agora imagine que o presidente do Congresso, suspeito, perguntasse em tom retórico à imprensa se alguém já tinha visto uma CPI dar em alguma coisa. Imagine que a figura apontada pelos investigados como “nosso homem”, depois de todas as revelações, ainda fosse nomeada chefe de outra pasta importante do governo. E que a presidência da República dissesse que contra ele não havia nada provado. Imagine que, em vez de colaborar com as investigações e punir os culpados, o governo ficasse reclamando da indignação seletiva dos manifestantes. Imagine que, meses atrás, milhões de brasileiros, incluindo os deputados desta base governista atual e o presidente do Congresso, tivessem saído às ruas protestar contra a corrupção e por mais educação. Imagine que um dos gritos mais fortes desta indignação fosse contra o aparelhamento do Estado, que estaria levando o país a se converter numa Venezuela, tamanha a submissão dos poderes a um partido centralizador e autoritário. O quão absurdo seria imaginar que, diante da ocupação, o Congresso não apenas manteve a decisão de engavetar a investigação sobre o desvio dos alimentos das escolas como também tentou derrotar por inanição os estudantes lá presentes e mandou a Guarda Nacional retirá-los com o uso de armas letais? E, ainda, que a ação aconteceu com o aval do poder Judiciário? Pode ser penoso, mas imagine. Imagine que hoje um daqueles mesmos deputados contra a corrupção tenha dado voz de prisão a uma manifestante que estava lá protestando pela abertura daquela CPI. Imagine que nenhuma panela bateu. Que nada disso deu em capa de jornal. E que os brasileiros não estivessem indignados com aqueles que roubaram a merenda, mas com quem protestava. Só imagine. Foto de capa: Mídia NINJA