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Em entrevista, Edmundo Antônio Dias Neto Junior, procurador regional dos direitos dos cidadãos em Minas Gerais, fala sobre os riscos do acordo da Samarco/Vale/BHP com os governos responsáveis em relação à tragédia que ocorreu com o rompimento da barragem do Fundão no Rio Doce. Leia
Por Eduardo Sá, no Fazendo Mídia
Falta de participação social dos atingidos nos encaminhamentos da empresa Samarco/Vale/BHP com os governos responsáveis em relação à tragédia que ocorreu com o rompimento da barragem do Fundão no Rio Doce, em Minas Gerais. Essa é a principal preocupação de Edmundo Antônio Dias Neto Junior, procurador regional dos direitos dos cidadãos em Minas Gerais, do Ministério Público Federal (MPF) em Belo Horizonte.
A celebração do acordo de reparação, compensação e mitigação, conduzida pelos principais responsáveis pela tragédia e a falta dos atingidos nas decisões na Fundação que foi criada para dar resoluções ao caso são criticados pelo procurador. Segundo ele, que foi entrevistado durante o encerramento da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, realizada mês passado em Governador Valadares (MG), esses vícios serão cobrados pelo Ministério Público Federal. A força tarefa criada pelo órgão busca punir os responsáveis e reivindicar as devidas reparações aos afetados pela tragédia.
Após seis meses da tragédia que matou 20 pessoas e deixou centenas de desabrigados, até hoje ninguém foi responsabilizado pelo crime e nenhuma das multas foi paga, embora a Vale esteja na liderança de pesquisas que a apontam como a empresa mais lucrativa no primeiro trimestre de 2016 no Brasil. Pequenos agricultores, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, dentre outros setores atingidos pela lama tóxica, continuam lutando por seus direitos.
A Samarco foi responsabilizada por algo ou pagou alguma multa até o momento?
A multa foi aplicada pelo Ibama, e a Samarco recorreu e por conta disso ainda não pagou. Também há multas estaduais que ainda não foram pagas. Há várias ações do Ministério Público (MP) de Minas Gerais, do MPF e do Estado do Espírito Santo. No âmbito Federal foi constituída uma força tarefa para atuar no caso do rompimento da barragem de Fundão, e seu objetivo é uma atuação coordenada das ações do MPF desde Bento Rodrigues até a foz do Rio Doce, no Espírito Santo. As dimensões desse impacto são as mais variadas e os danos não foram ainda sequer avaliados ou mensurados. Não são somente ambientais, ocorreram inúmeras perdas humanas, um corpo ainda está desaparecido, diversas comunidades atingidas, populações indígenas e comunidades tradicionais também tiveram seus modos de vida atingidos e gravemente alterados pela chegada do mar de lama. Os Krenak, por exemplo, têm uma relação espiritual com o Rio: acreditam que os maré estão no Rio Uatu, como chamam o Rio doce, e é em suas margens que eles desenvolvem os rituais da sua cultura. Seus rituais estão completamente inviabilizados diante do atual estado do Uatu. Foram colocadas cercas nas beiras do rio para evitar que os animais bebam sua água, tamanha é a poluição.
E o acordo que foi celebrado entre a União, o Estado de Minas Gerais e o Espírito Santo de uma lado, e as empresas Samarco, Vale e BHP do outro, foi construído de cima para baixo feito a partir da cúpula. É um consórcio governamental empresarial voltado da parte do governo a dar uma resposta no sentido de que teria alcançado uma solução para esse “desastre tecnológico” do rompimento da barragem. Toda a divulgação da celebração do acordo foi nessa lógica de uma conquista do governo, de que ele teria conseguido equacionar um acordo para satisfazer esses danos multidimensionais. E, do lado das empresas, permitir dar esse assunto por encerrado e começar a buscar uma forma de voltar a operar, porque quando se fala que o acordo pode chegar a R$ 26 bilhões em recursos aplicados para medidas de recuperação, é preciso deixar muito claro que não existem avaliações periciais abrangentes sobre a totalidade dos danos e, em decorrência, sobre qual valor será necessário para a plena recuperação socioambiental. Além disso, o acordo prevê aportes anuais à fundação sempre em montantes inferiores ao lucro anual médio da Samarco nos anos anteriores ao desastre. O que se conclui, portanto, é que o acordo está mais preocupado com a capacidade financeira decorrente da atividade até então exercida pela empresa controlada pela Vale e pela BHP do que com a recuperação socioambiental propriamente dita. Em outras palavras, parece que a estimativa de lucro na hipótese de eventual retomada das atividades da Samarco foi um critério que prevaleceu sobre a restauração em si, bem como sobre as medidas mitigatórias e compensatórias.
O acordo tem um vício muito grave: a falta de participação dos atingidos. Essa ausência faz com que se viole o princípio do devido processo legal coletivo. É mais ou menos como se você tivesse um processo referente a um direito seu e você não fosse chamado a opinar sobre, se você concorda ou não com determinado acordo. É como se o titular do direito não fosse o sujeito do direito, e sim objeto do direito. Então esse acordo que foi celebrado entre os entes federativos e as empresas não coloca os atingidos como titulares do direito que o acordo anuncia que está resguardando. A primeira coisa que as empresas e os entes federativos deveriam ter feito antes de celebrar o acordo seria a oitiva, a interlocução, a escuta dos atingidos, porque sem saber como os atingidos pensam que poderia se dar essa recuperação eles não poderiam sequer ter sentado à mesa para negociar e estabelecer a equação do acordo. Simplesmente porque eles não saberiam dizer quais seriam as medidas compensatórias, reparadoras e mitigadoras que os atingidos entenderiam adequadas. Ao longo do Rio Doce existem indígenas e outros povos e comunidades tradicionais. Os Krenak, por exemplo, assim como os demais, têm o direito a serem previamente consultados em um processo de consulta que anteceda as medidas administrativas que possam afetá-los direta ou indiretamente. E esse processo de consulta tem de ser prévio, livre e informado. Em nenhum momento esses povos tradicionais foram consultados previamente.
Em reuniões com atingidos, também notei que há um desconhecimento muito grande sobre os termos do acordo que as empresas firmaram com os entes públicos. Na verdade, os atingidos geralmente têm conhecimento apenas pelo que foi divulgado na imprensa. Alguns obtiveram o acordo e disseram que conseguiram isso com muito esforço, o que mostra que não ocorreu um trabalho de esclarecimento por parte da União, estados de Minas Gerais e Espírito Santo, nem tampouco pelas empresas. Tudo isso mostra que o direito à informação foi solenemente desconsiderado.
Segundo relatos na caravana, a consulta tem se dado com pessoas que estão recebendo o cartão oferecido pela empresa. Aqueles que têm críticas à empresa, não têm voz no processo.
Estive com atingidos no Rio Doce e Barra Longa nesses dias e percebi que mesmo os atingidos que estão recebendo os cartões de auxílio financeiro colocam diversas outras demandas que não foram atendidas. Porque a lógica da empresa de procurar conversar individualmente é uma forma de não tratar coletivamente o problema, de tentar resolver pontualmente e de forma individual questões que têm uma dimensão coletivas, o que é absolutamente inapropriado. Esse acordo se pretende uma resolução no âmbito coletivo, e por isso sem que haja a efetiva participação dos atingidos, não se atende ao princípio do devido processo legal coletivo. Existem métodos de interlocução e de escuta dos atingidos, inclusive modernas formas de pesquisa de opinião ou a realização de audiências públicas que não ocorreram. Mas a empresa não faz nem isso coletivamente, nem dá voz aos mais variados pleitos individuais.
Ocorreu uma audiência completamente esvaziada e não divulgada na semana da caravana.
No âmbito legislativo, e estava esvaziada muito pelo momento político que estamos vivendo. Também tem a questão do lugar. Na celebração do acordo é essencial a realização de audiências públicas nos locais das comunidades para colher suas demandas, o que não aconteceu. Em relação aos demais povos tradicionais, o governo federal – que é responsável pelo cumprimento dos tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – estava obrigado a consultar cada um dos povos atingidos. Porque o acordo atinge diretamente seus direitos e interesses, e o artigo 6º desta convenção obriga o estado brasileiro a consultá-los antes de adotar qualquer medida administrativa que possa afetá-los direta ou indiretamente.
A pergunta é: quem é responsável por cumprir as disposições dos tratados e convenções internacionais ratificados e internalizados pelo Brasil? O próprio governo federal, ou seja, a própria União, que é um dos entes federativos que capitanearam o acordo e o vendeu como uma grande conquista, sendo que, na realidade, é muito claro que tanto os entes públicos, quanto as empresas, são responsáveis por esse desastre. As empresas, pelo rompimento da barragem, pela forma como vinha tentando operar, e os entes federativos pela fiscalização falha que aconteceu durante esse período todo e pelo processo de licenciamento ambiental ou atuação deficiente pós-desastre. Tanto é que quase três meses depois do rompimento no dia 05 de novembro de 2015, já no dia 27 de janeiro, ocorreu um novo desplacamento, que é de conhecimento público, na barragem de fundão, o que demonstra que não havia garantia de que não voltaria a acontecer uma nova tragédia. Portanto, todos os envolvidos na celebração do acordo são responsáveis pelo desastre. A professora Andréa Zhouri, da UFMG, denomina esse desastre como tecnológico, porque tem a mão do homem. É um desastre que não foi causado pela natureza, foi fabricado por um modo de produção do homem que é muito caro às Minas Gerais, que têm a mineração no próprio nome.
Quais são as perspectivas? É possível que ninguém se responsabilize e fiquem impunes mesmo com tantas mortes? Inclusive estão todos preocupados se esse cartão será prorrogado, que no caso é uma medida compensatória somente no curto prazo…
Do ponto de vista criminal, existem investigações em andamento que terão conclusões e serão levadas à persecução penal dos responsáveis pelo Ministério Público. Todas as medidas serão adotadas assim que as investigações estiverem concluídas, mas é difícil precisar o tempo que isso leva. Na força tarefa do MPF, tenho atuado mais nas questões de cidadania, direitos humanos, povos tradicionais. Em relação ao acordo, a posição do MP é de que o acordo por causa de todas as questões que coloquei não deve ser homologado. Por falta de participação dos atingidos, a ausência de realização de consulta prévia, livre
informada aos povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, e pelo entendimento de que as medidas de reparação não alcançam a integralidade da compensação, reparação e mitigação dos danos. E, por fim, porque o próprio modelo criado para a governança da fundação de direito privado que foi constituída é insuficiente, impermeável à participação dos atingidos. Ou seja, a própria estrutura decisória da fundação não é democrática. Quem seriam aqueles que deveriam falar sobre como deveriam ser aplicados os recursos que serão destinados à fundação? Os próprios atingidos, que pela estrutura de governança da fundação não estão na sua composição. Há uma mínima participação no conselho consultivo, que não tem nenhum poder deliberativo.
Foto: Arquivo Agência Brasil