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Em entrevista exclusiva, ex-ministra das Cidades Inês Magalhães faz um balanço do impacto das políticas habitacionais do país nos últimos anos e comenta possíveis mudanças para a área sob o comando do PMDB
Por Marco Piva
No 14º andar de um prédio do setor de Autarquias Sul de Brasília, bem atrás do Museu da República, está o coração da maior política habitacional da América Latina. Numa ampla sala, Inês Magalhães, socióloga formada pela PUC-SP e com vasta experiência na administração pública, fez os últimos despachos do Ministério das Cidades da gestão petista.
Criado pelo ex-presidente Lula em 2003 para consolidar uma agenda urbana para o país, a pasta teve uma baixa rotatividade para os padrões normais de um governo de ampla coalizão: apenas seis ministros antes de Inês, que ocupou o gabinete por escassos 21 dias antes de ser substituída pelo deputado Bruno Araújo (PSDB/PE), conhecido nacionalmente por ter cravado o 342º voto que abriu o caminho do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara.
Apesar do pouco tempo como ministra, Inês faz parte do gabinete das Cidades desde o início e acumulou uma visão bastante completa dos desafios, debates e avanços da questão habitacional do Brasil. Para quem sabe que a construção do direito à moradia digna representa uma luta institucional combinada a uma mobilização permanente dos movimentos sociais, a grande questão atual é uma só: o que esperar do governo de Michel Temer?
Você é uma das pessoas que está no Ministério das Cidades desde a sua criação pelo governo Lula e tocando praticamente o mesmo projeto. Como você avalia os principais resultados e impactos das ações habitacionais realizadas pelo Ministério das Cidades nestes 13 anos?
Inês Magalhães - Neste período, o Ministério das Cidades consolidou uma agenda urbana para o país, lastreada em avanços históricos não só para o Brasil, como para todo o sul global, representados pela Constituição de 88 e pela Lei do Estatuto da Cidade de 2001. O Ministério das Cidades é a resposta institucional a este novo marco legal, consolidando políticas públicas de habitação sintonizadas com estes avanços e a partir de experiências municipais inovadoras ao longo da década de 90, decorrentes do processo de democratização e de descentralização. Estes são os fundamentos para os programas habitacionais de larga escala hoje implementados pelo Ministério das Cidades.
No caso da política habitacional, ela vem sendo concretizada por dois programas principais e de larga escala, o PAC – Urbanização de Favelas, e o MCMV- Minha Casa Minha Vida, além de um novo marco para a regularização fundiária das favelas e loteamentos irregulares. Evoluiu paralelamente em um cenário de construção de um modelo de governança urbana com a criação do Conselho Nacional das Cidades e as Conferências de Cidades, parte de um sistema maior que agrega conselhos e conferências municipais e setoriais, vetores da política urbana do país, integrando de forma ativa a sociedade civil e as três esferas de governo. Tudo isso, muito novo ainda, e sendo construído com tremendo esforço de institucional.
E quais têm sido os resultados desses esforços institucionais?
Inês Magalhães - A partir deste histórico, temos muitas conquistas a ressaltar e gostaria de citar apenas algumas delas, as que considero que têm mais impacto na construção das políticas públicas de habitação e, principalmente, na vida das pessoas:
Uma nova institucionalidade que começa com a própria criação do Ministério e que, na área de habitação, se expressa na formulação da Política Nacional de Habitação, na criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) em 2005.
A elaboração do Plano Nacional da Habitação (PlanHab), em 2008, que estabelece as diretrizes da política habitacional assim como sua integração com a política urbana. É fundamental contar que foi uma agenda construída de forma amplamente participativa, e que estabelece um consenso entre os atores-chave para as estratégias de longo prazo (2003-2023) de equacionamento das necessidades habitacionais do país, especialmente para os segmentos de baixa renda.
O fortalecimento da política habitacional também pelo expressivo crescimento dos investimentos especialmente a partir de 2007, com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, uma medida anticíclica para enfrentamento da crise econômica, que resultou em um volume de investimentos públicos muito significativos, em especial para a urbanização de assentamentos precários que passou a ter escala capaz de dialogar com a dimensão do problema.
Em 2009, tivemos o lançamento do Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Focado na produção habitacional, com uma meta ousada, trouxe pela primeira vez, em décadas, possibilidades reais de enfrentamento do déficit quantitativo de forma abrangente.
A mesma lei 11.977 que criou o MCMV trouxe ainda conquistas muito importantes em relação à regularização fundiária, avançando na regulamentação de instrumentos de garantia dos direitos possessórios.
Uma série de avanços institucionais e regulatórios com vistas a garantir o Direito à Cidade, como a Portaria 317 que estabelece procedimentos e normas para processos de reassentamento involuntário de famílias, motivados por obras de infraestrutura ou questões de vulnerabilidade a riscos.
Parece que o MCMV acabou se tornando a grande vitrine do Ministério das Cidades. Mas você citou antes o PAC Favelas. Quais foram os resultados até agora?
Inês Magalhães - Embora muito se fale do MCMV, o PAC Habitação ou Favelas é um eixo fundamental da nossa política habitacional e com tremendo impacto na qualidade de vida das famílias de baixa renda que vivem em condições precárias nas nossas cidades.
Os investimentos chegam a R$ 28,6 bilhões e alcançam mais de mil municípios. São investimentos que vão além da infraestrutura urbana básica. Incluem ações complementares e integradoras de mobilidade, regularização fundiária e estruturação ambiental, além de um robusto componente social por meio de atividades de inclusão e desenvolvimento econômico e social como a construção de equipamentos como bibliotecas, creches e quadras esportivas. Com as obras desse programa, a cidade chega à favela com infraestrutura urbana e social resgatando a cidadania das famílias que vivem historicamente sujeitas ao risco ambiental e social.
Nesta nova conjuntura de um governo liderado por Michel Temer e a nomeação de um ministro do PSDB para a pasta das Cidades, você vê riscos para a continuidade dos programas habitacionais?
Inês Magalhães - O sucesso do programa Minha Casa, Minha Vida é resultado de uma mudança de paradigma na política habitacional instituída a partir de 2003 com a criação do Ministério das Cidades e que trouxe um conjunto de instrumentos inovadores criados a partir de um modelo de governança igualmente inovador e inclusivo. Como já mencionei, tudo isto acompanhado de um processo participativo de planejamento de longo prazo para o setor habitacional, o PLANHAB.
Adicionalmente a esse fortalecimento institucional, houve importante incremento orçamentário e financeiro – a criação do fundo nacional de habitação social com transferência direta de recursos públicos para os programas de urbanização de favelas com contrapartida e gestão compartilhada com estados e municípios. Então, será difícil explicar a governadores e prefeitos qualquer interrupção nos projetos.
Também é importante ressaltar que, em 2009, com a criação do MCMV, foi assumido um compromisso político de transferência direta ao beneficiário por meio de subsídios habitacionais complementados por uma significativa ampliação do acesso ao crédito para atender famílias de baixa renda. Falamos aqui de milhões de famílias.
Isto ocorreu graças a uma reorganização do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e também pela maior participação do setor privado (bancos, construtoras, indústria de materiais de construção etc), uma vez que a habitação passou a ser vista como uma boa perspectiva de investimento. Durante esse período, os percalços eventualmente enfrentados foram relacionados exclusivamente à gestão dos programas devido às complexidades de consolidar uma agenda de direitos à moradia digna no contexto urbano brasileiro, de áreas metropolitanas, expansão de cidades intermediárias, segregação espacial, entre outros tantos desafios que encontramos pela frente.
A minha expectativa é que não haja retrocessos, já que vejo a política habitacional e, em especial o MCMV, como produto deste longo processo de construção de uma agenda urbana para país, a partir de fundamentos legais e históricos, e um modelo sólido de governança participativa e planejamento. Neste caminho percorrido pelo programa, os seus principais atores se transformaram em protagonistas da política, pois o Ministério das Cidades sempre esteve aberto ao diálogo e incorporou aperfeiçoamentos constantes no programa ao longo de sua existência.
Acreditamos, portanto, que o MCMV e a política habitacional já não podem mais ser vistos como programa de um governo, mas sim como uma política pública de estado que se consolida como um dos maiores patrimônios sociais e econômicos do país. É, sem dúvida, o maior programa habitacional da América Latina. Mas é evidente que uma política de Estado será tanto mais eficiente e priorizada quanto mais os agentes públicos que comandam o Estado acreditem e tenham compromisso com aquilo que ela propugna e é evidente que esta segurança eu sempre tive em relação aos governos de Lula e Dilma.
Você que está no Ministério das Cidades desde a primeira gestão de Olívio Dutra (PT/RS), que avaliação pode fazer da primeira unidade entregue até hoje? Qual é o resultado concreto na vida das pessoas?
Inês Magalhães - Quando nós lançamos o Minha Casa, Minha Vida, em 2009, tínhamos desafios muito grandes. Entre eles, atender a população de menor renda e enfrentar o déficit habitacional em todo país. Hoje, passados sete anos, podemos dizer que estamos no caminho certo para a superação desses desafios, pois mais de 90% dos nossos recursos foram destinados a famílias com renda menor que três salários-mínimos.
Desde o lançamento até o momento, são 4,25 milhões de unidades habitacionais contratadas. Ao final da terceira etapa do MCMV, serão 5,75 milhões de unidades contratadas que beneficiarão cerca de 23 milhões de pessoas. Hoje, mais de 10 milhões de pessoas residem em uma moradia proveniente do programa. O MCMV já está presente em mais de 5.300 municípios. Isso significa que famílias de baixa renda que vivem em mais de 96% dos municípios brasileiros contam com moradias do programa. É muita gente com o seu direito à moradia digna assegurado a partir de uma política pública. Este é um resultado que muda a vida das pessoas para muito melhor!
Qual é o cronograma estabelecido pelo governo federal para o Minha Casa, Minha Vida até o final deste ano?
Inês Magalhães - Em março deste ano, o governo anunciou a terceira etapa do programa com a meta de contratação de dois milhões de unidades no período 2015-2018. Para 2016, a meta é contratar 480 mil unidades, sendo 110 para a faixa 1 (famílias com renda até R$ 1.800,00).
O que fica faltando fazer para que o direito à casa própria atinja um maior número de beneficiários?
Inês Magalhães - Ao final do MCMV 3, serão 5,75 milhões de unidades contratadas. Quando forem entregues, serão mais de 23 milhões de pessoas beneficiadas, ou seja, para cada oito pessoas no país, uma será beneficiária do programa. Ressalto que grande parte dos benefícios destinados a faixa 1 do programa (69%) foi destinada a famílias cuja renda não ultrapassa R$ 800,00 mensais, mostrando a aderência do programa às características do déficit habitacional existente no país.
Apesar dos números expressivos, para superar esse déficit, é preciso que o governo continue enfrentando os problemas e priorizando as políticas públicas comprometidas com a inclusão social e a produção de moradia digna para que milhões de famílias possam exercer o seu pleno direto à cidadania. Tudo isto em uma ótica de construção de cidades mais equitativas, inclusivas, integradas e sustentáveis.
Os movimentos sociais têm um papel ativo na luta pela moradia e muitas vezes são criminalizados por parte da mídia. O programa prevê a participação desses movimentos como executores? Afinal, quem pode tocar os projetos? Empreiteiras? Organizações da sociedade civil? Prefeituras? Qual é o papel de cada uma delas no projeto?
Inês Magalhães - O Minha Casa, Minha Vida está segmentado em três faixas de renda e atende o meio urbano e o meio rural. É importante evidenciar o amplo rol de protagonistas do programa: municípios, governos de estado, movimentos sociais, setor financeiro e setor privado da construção civil.
Falando sobre o meio urbano, a Faixa 1 atende famílias com renda familiar mensal limitada a R$ 1.800,00. Já a Faixa 2 atende famílias com renda familiar mensal limitada a R$ 3.600,00. Por último, a Faixa 3 é destinada a famílias com renda mensal limitada a R$ 6.5000,00.
Em março deste ano, o Governo Federal lançou o portal do MCMV, que concentra informações sobre o programa, simulador de financiamento, além da situação cadastral de cada família. Neste link, podem-se encontrar as regras do programa, bem como as atribuições dos participantes em todas as modalidades do programa.
Vale destacar a modalidade MCMV Entidades, com protagonismo exclusivo dos movimentos sociais e entidades de habitação, responsáveis por excelentes projetos de inserção urbana e altamente sustentáveis do ponto de vista social e econômico. São projetos inovadores e diversificados para atender às necessidades específicas dos seus usuários que são, ao mesmo tempo, corresponsáveis pela própria gestão dos empreendimentos.
Nesse cenário de transição, existe espaço para aperfeiçoamentos do programa?
Inês Magalhães - O MCMV vem passando por aprimoramentos contínuos desde o lançamento em 2009. Ao longo da Fase 2, efetuamos alguns ajustes importantes, entre eles a previsão de equipamentos públicos compatíveis com a demanda, maior compromisso e participação dos estados e municípios na provisão serviços e infraestrutura, sustentabilidade do empreendimento no período de pós-ocupação e melhorias da gestão condominial, aumento de recursos e ampliação do escopo das atividades do trabalho social, atendimento a idosos e pessoas com deficiência (3% de reserva mínima para cada segmento) e maior proteção às mulheres chefes de família com renda até R$1.600,00, ou seja, os contratos podem ser firmados sem a outorga do marido.
Para a Fase 3, nos comprometemos com a agenda Minha Casa + Sustentável, destacando os seguintes aprimoramentos: melhoria da qualidade arquitetônica e sustentabilidade social e urbanística dos empreendimentos que garantam melhoria da inserção urbana; maior competividade entre as empresas para melhoria dos projetos, além de garantir uma distribuição territorial dos empreendimentos mais proporcional às necessidades do país; criação de Sistema Nacional de Cadastro Habitacional visando maior transparência, acompanhamento e fiscalização no processo de seleção dos beneficiários, bem como auxiliar os municípios no processo de seleção; e criação de nova faixa de renda, a faixa 1,5, para atender as famílias com faixa de renda intermediária, uma vez que não se encaixam nos critérios de priorização da faixa 1 e não encontram imóveis produzidos para a faixa 2.
Pessoalmente, como você se sente neste momento onde o governo que conduziu todo esse processo é substituído por outro, liderado pelo PMDB?
Inês Magalhães - Pessoalmente tranquila por ter cumprido uma missão importante que foi a de participar ativamente do desenho e fortalecimento de uma política habitacional estratégica para o avanço da agenda urbana no Brasil. Sempre existem riscos de continuidade, mas se entendemos o processo do qual derivam os grandes programas de investimento de habitação no país, especialmente o MCMV, fica claro que o máximo foi realizado para a construção de sólidos alicerces tanto de sua sustentabilidade do ponto de vista social, econômico e ambiental, um verdadeiro legado para a população brasileira, bem como a possibilidade de sua ampliação nas futuras gestões.
Fui a sétima ministra dos nossos quatro mandatos. Neste momento, meu grande desejo e expectativa é que a agenda e os aprimoramentos que estão desenhados para a fase 3 do programa tenham prosseguimento, pois significam um avanço nos desafios que enfrentamos nos últimos anos.
Em todo esse tempo de Ministério, quais foram as composições políticas que deram mais certo e as que deram mais errado?
Inês Magalhães - Eu estou no governo desde o período da transição, em 2002, quando trabalhamos na criação do ministério. Foi um trabalho rico, com pessoas com história nas lutas e nas conquistas da reforma urbana e direito à moradia digna. Foi um privilégio compor essa equipe.
Nesses 13 anos, foram quatro mandatos e em todos eles as composições políticas se formaram para viabilizar uma coalizão de governo. A realização de uma agenda complexa de políticas e interesses públicos sempre preservaram e reiteraram o compromisso com o direito à cidade e à moradia digna.
Em todo este processo, o norte das composições era claro: fazer a coalizão de governo capaz de implementar o projeto que nos comprometemos a fazer. No caso da área da habitação, que é o foco das questões, tinha e tem um objetivo muito claro: ampliar as condições de garantia de moradia digna para as famílias que precisam da ação do Estado para ter este direito assegurado.
Quem é Inês Magalhães
Socióloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em planejamento e gestão. Atuou nas áreas de planejamento, desenvolvimento institucional, desenvolvimento urbano e habitação em diversas entidades não governamentais. Foi secretária de Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente e chefe de gabinete da Prefeitura Municipal de São Vicente (SP), em meados da década de 90. Na cidade de São Paulo, foi chefe de gabinete da Administração Regional da Sé. Desde 2003 desenvolveu suas atividades profissionais no Ministério das Cidades, inicialmente como diretora, em seguida como secretária nacional de Habitação e, finalmente, como ministra.
Foto de capa: Portal Brasil