A gente não suporta chacina. A gente quer poesia, justiça e liberdade

O poema de Lívia Natália, divulgado em ônibus e outdoors por organização negra de Ilhéus (BA) no escopo do projeto Poesias Nas Ruas, incomodou a bancada da bala baiana que fez barulho, pressionou e o retirou das ruas

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O poema de Lívia Natália, divulgado em ônibus e outdoors por organização negra de Ilhéus (BA) no escopo do projeto Poesias Nas Ruas, incomodou a bancada da bala baiana que fez barulho, pressionou e o retirou das ruas Por Cidinha da Silva* Há quem pense a poesia como coisa inofensiva. Talvez porque a entendam como os versos do jardim de infância “batatinha quando nasce / deita rama pelo chão / mamãezinha quando dorme / põe a mão no coração”. Mesmo o poema de amor corta, pode ser dilacerante e pode também agredir muito a quem orienta a vida pelo desamor, pelas armadilhas e pela luta política menor. O poema de Lívia Natália, divulgado em ônibus e outdoors por organização negra de Ilhéus, BA, no escopo do projeto Poesias Nas Ruas, incomodou a bancada da bala baiana. Vejamos o que a poeta escreveu em Quadrilha. “Maria não amava João. / Apenas idolatrava seus pés escuros / Quando João Morreu / Assassinado pela PM / Maria guardou todos os seus sapatos”. Não é um poema inofensivo, por certo. Trata-se de um libelo de amor e resistência. Um poeta baiano, Jorge Augusto, conterrâneo de Lívia, assim o analisou: “O poema propõe pensarmos a subjetividade interditada desse corpo negro, (quando rompe a cadeia amorosa que remete a intertextualidade com o poema de Drummond), sinaliza o abandono em que, muitas vezes, é condenada a mulher negra, denuncia, ao mesmo tempo, a violência com que a PM pratica seu genocídio contra o povo negro. É o amor, a subjetividade desse ser-negro, pensado, pelo Estado, sempre como um corpo suspeito que é tema.  Maria não teve tempo de amar João. E o assassinato pela PM é apenas uma das formas pela qual essa subjetividade do negro brasileiro foi interditada, pela violência, e o poema usa dela para denunciar essa interdição, esse amor que não chegou a ser”. A bancada da bala no Congresso, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais sabe que a poesia não é algo irrelevante. Não por ter lido Brecht, Safo, Thiago de Mello, Florbela Espanca ou Solano Trindade, mas porque nestes tempos em que a imagem é tudo, é imperativo posar de bom moço e esconder o currículo de roubos, corrupção e assassinatos. A tentativa desses militares de ocultamento do que realmente se é passa por ameaças (diretas e indiretas), chantagem, extorsão e censura, entre outros crimes. No caso do poema Quadrilha e da tentativa de retirá-lo de circulação, parlamentares da bancada da bala da Assembleia Legislativa baiana, a saber, soldado Marco Prisco (PSDB) e Capitão Tadeu (PSB), cujo mandato foi perdido em 2014 por questões de coeficiente eleitoral, pressionam indiretamente à poeta e professora da UFBA, Lívia Natália, e reivindicam ao governo estadual a volta da censura, para limitar a expressão de seu trabalho criativo. A verve mais enfática é do Capitão Tadeu nas redes sociais. São palavras dele “O Governo Perdeu a Noção. Patrocinou com nosso dinheiro uma campanha publicitária contra a PM. A PM não é assassina. A PM não assassina ninguém! A PM é uma Instituição. Aliás, a PM é Governo! Se a PM é assassina, o governo é que é assassino. E o governador é o Comandante Supremo. O maior responsável. Um dos integrantes da PM é que tirou a vida de alguém. E cabe uma investigação para saber se foi no estrito cumprimento do dever legal ou se foi execução. Que se puna quem errou, mas não se generalize a atinja a imagem da Instituição e da maioria dos seus integrantes. E o governo, que alega falta de dinheiro, não pode gastar nossos recursos para desgastar a imagem de uma Instituição governamental, como se ele, o governo , não fosse o maior culpado. Uma Vergonha !!! Fica aqui o meu repúdio!” É compreensível, o ex-parlamentar está sem mandato e precisa encontrar formas de aparecer. O soldado Prisco segue a mesma toada e acrescenta “os PMs do Estado, tropa predominantemente negra e residente em comunidades da Bahia, arriscam as próprias vidas e dos filhos na defesa da segurança dos baianos”. São óbvios e sobejamente conhecidos os números do genocídio dos homens negros no Brasil. Aqui mesmo, neste portal Fórum diversos artigos meus, são obrigados a tratar dessa pauta hostil e perturbadora, que não nos dá trégua, a exemplo deste e deste. A Secretaria de Comunicação do Estado da Bahia e o próprio governo, ao invés de discutirem o princípio antidemocrático de pleitear a volta da censura, optaram apenas por destacar que o dinheiro público que patrocinou o projeto Poesia nas ruas é destinado a editais de cultura. Não se trata, portanto, de verba publicitária de ações de governo. O governo baiano, até onde se sabe, não censurava a crítica social em poemas (vamos ver daqui para frente). Aliás, seria mesmo incongruente um governo que manda seus policiais golearem e estabelece prêmios para os artilheiros, depois patrocinasse com verba publicitária governamental, a circulação de um poema em que Maria guarda os sapatos de João porque foi morto pela PM. *Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014) . Despacha diariamente em sua fanpage