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Novos canais para participação social no Estado são criados, enquanto os antigos ainda permanecem desconhecidos por grande parte da população
Por Lucas Reginato, da Fórum Semanal
Quando milhares de jovens do Brasil inteiro foram às ruas em junho de 2013, muitos especialistas atentaram para uma “crise de representatividade”. Sem espaços de interação direta com o Estado, aos manifestantes restaram as passeatas para demonstrar descontentamento com nosso atual sistema político.
A Constituição de 1988, contudo, fundamentou canais de participação civil no Estado. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, diz parágrafo único do artigo 1º, para desconsolo de quem hoje acha que participação popular é sinônimo de bolivarianismo.
A figura do conselho de política pública foi criada em meio ao debate da redemocratização, e a própria Assembleia Nacional Constituinte criou mecanismos para receber colaborações da população. Mas mesmo antes disso o Brasil já tinha algumas experiências de gestão compartilhada, como o Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (Conasp), implementado em 1981, e o Conselho Nacional de Saúde, criado a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986.
Hoje, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 17 não possuem um Conselho Municipal de Saúde, necessário para recebimento do repasse do SUS e fundamental para fiscalização das políticas públicas. Em todo o país, segundo dados do IBGE, são 3.784 Conselhos Municipais de Meio Ambiente e 976 dos Direitos da Mulher. Isto para citar alguns exemplos, porque não há regulamentação que delimite o tema a ser abordado por um conselho.
A importância dos conselhos, contudo, diminui diante da falta de informação. “Quando descobri que existiam os conselhos me senti roubada”, brinca Milena Franceschinelli, que iniciou campanha para que as pessoas ocupem esses espaços em suas cidades. Há seis anos ela conheceu o funcionamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, e desde então acompanha fóruns deste tipo. Hoje, ela representa a Prefeitura de Ubatuba no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e Pesqueiro e planeja um programa de rádio para divulgar as ações dos conselhos na cidade.
Panorama histórico
[caption id="attachment_3185" align="aligncenter" width="370"] Conselho Nacional de Saúde, criado a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, é uma experiência de gestão compartilhada (foto: http://wwwsaudedafamilia.blogspot.com.br)[/caption]
Como instrumentos de participação social no Poder Executivo, os conselhos estão inseridos em um debate histórico sobre modelo de Estado. “Desde a Segunda Guerra Mundial, a estrutura do Estado moderno impede o cidadão de chegar até os processos de decisão”, contextualiza o cientista político Rudá Ricci. “É uma estrutura fragmentada, e as teorias, principalmente a alemã, diziam que a tomada de decisão não pode ser contaminada por paixões e sofrimentos humanos, porque tinha que ser equilibrada. Ou seja, ela tinha que estar acima dos interesses privados. Isso criou uma burocracia e uma tecnocracia frias, e vários estudiosos provaram que essa estrutura gerou uma política à parte da história do país. Criou uma estrutura própria e um segmento social que dirige os interesses que parecem públicos, mas são privados.”
“Pela direita, nos anos 90, começou uma discussão sobre a reforma do Estado, e o Fernando Henrique Cardoso trouxe esse debate, com um modelo chamado ‘Estado gerencial’”, continua o professor. “Pela esquerda, veio o que autores chamam de ‘Estado societal’, que é esse participacionismo.”
Ricci defende os espaços de participação porque, segundo ele, “a única forma de termos paz social é se o Estado conseguir antecipar os conflitos”. Para isto também servem os conselhos, que podem ter caráter consultivo, deliberativo, normativo ou fiscalizador, a depender da forma como foram concebidos em lei.
Crise de representatividade
“O povo, unido, sem bandeira de partido”, clamavam os manifestantes de junho de 2013. A insatisfação com nosso espectro partidário, e, consequentemente, com o sistema político, foi logo diagnosticada como uma “crise de representatividade”. “Estamos vendo protestos na rua porque não há canal de participação”, argumenta Ricci.
Já Milena apresenta uma outra versão – a de que até há canais de participação, mas que falta o engajamento da população. “Eu brinco que, em junho do ano passado, se as pessoas soubessem dos conselhos, iriam ocupá-los para deliberar. Eu sou favorável às manifestações, mas a gente não tem um encaminhamento prático.”
Quem resolveu ocupar um conselho em 2008 foi a Associação da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, que indiciou Pierre Freitaz para representar a entidade no então recém-criado Conselho Municipal da Juventude. Ele lamenta, contudo, que o caráter apenas consultivo do conselho tenha limitado as ações. “A gestão [de Gilberto] Kassab [ex-prefeito da capital] não tinha abertura para que decidíssemos as coisas em conjunto. Era um contexto mais autoritário que democrático. Isso acabou fragilizando o conselho”, lembra.
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“Naquele momento, o conselho foi delimitado por conta da construção política que tinha a gestão municipal em relação à participação social. A gente não conseguiu influenciar muito nas ações da prefeitura. Isso acabou desanimando conselheiros pelo contexto burocrático imposto.”
Milena, entusiasta, oferece novo contraponto: “Eu digo que, se o conselho é deliberativo ou consultivo, depende de como as pessoas participam. Porque pode não ser impositivo, mas se tem uma orientação sobre determinado assunto, você tem o poder na mão”. Segundo ela, é possível criar condições favoráveis a partir da mobilização. “A lei não é fechada, está aí para ser alterada”, diz. “Quanto mais movimentação, quanto mais repercussão, mais força política.” Ela lembra que as ações do conselho devem partir dos conselheiros e da sociedade civil, porque “conselho não garante o voto de ninguém”.
Decreto 8.243/2014
No dia 23 de maio, Dilma Rousseff assinou o decreto que instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil.” Na prática, o decreto consolida a participação social como método de governo ao fortalecer instâncias como conselhos e conferências, além de criar fóruns interconselhos.
Desgovernados pela ânsia oposicionista, a grande imprensa atacou o decreto sem saber direito para onde atirar. Em reportagem no dia 3 de junho, a revista Veja chegou a dizer que o decreto foi “assinado à surdina” pela presidenta, que, na verdade, assinou o documento depois da Arena de Participação Social, um seminário internacional que aconteceu entre os dias 21 e 23 de maio em Brasília para discutir o tema.
Já o jornal O Estado de S. Paulo provou que não está muito compromissado com a verdade, ou então que está desinformado, porque concluiu o editorial “Mudança de regime por decreto”, de 29 de maio, dizendo que “a mensagem subliminar em toda essa história é a de que o Poder Legislativo é dispensável”. Ignora, contudo, que os conselhos e outras instâncias criadas dizem respeito ao Poder Executivo, e em nada substituem o Congresso Nacional.
Mas a principal “acusação” foi a de que o decreto colocaria o país “na rota do bolivarianismo”. As afirmações irritaram Rudá Ricci – “eu nunca vi tanto articulista ignorante”. “Não tem nada de bolivariano. Eles desconsideram que nós já temos uma legislação, que está dispersa. Esse decreto cria um marco regulatório que todos os especialistas no Brasil vêm pedindo há pelo menos 15 anos.”
As críticas da imprensa repercutiram na oposição da Câmara dos Deputados, e dois parlamentares do DEM, Mendonça Filho (PE) e Ronaldo Caiado (GO), entraram com um Projeto de Decreto Legislativo para sustar a iniciativa presidencial. A tentativa não foi bem-recebida pelo presidente da casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que, ao ser perguntado do porquê não colocaria a proposta em votação, foi sucinto – “porque eu não quero”, respondeu, segundo reportagem da Agência Brasil.
De acordo com os opositores, o decreto é perigoso porque, ao abrir espaço para participação social, o governo pode aparelhar-se com os movimentos sociais, “massa de manobra do PT”, segundo a Veja. “Essa fala me irrita”, desabafa Ricci, “porque questiona que cidadãos sejam filiados a partidos. Movimento social não está ligado só a partido, e se estiver não tem problema nenhum.”
“O método que está no decreto é o mesmo que a gente já usa para definir os conselhos que já existem”, continua ele. “Esses articulistas têm que estudar as leis do Brasil. Eles acham que o FHC implantou o regime bolivariano? Porque foi ele quem criou! Essas leis foram criadas no governo do Fernando Henrique Cardoso.”
Mas, então, por que os meios de comunicação, e a oposição, se voltaram tão ferozmente contra o PNPS e o SNPS? Milena tem um palpite: “É medo, porque esse tipo de ferramenta realmente muda o país”.
(Crédito da foto da capa: Mídia NINJA)