Escrito en
BRASIL
el
Nesta entrevista, Clara Charf fala de episódios dramáticos daquela época que até hoje a emocionam. Conta também sobre como se tornou comunista
Por Mariana Desidério, no Brasil de Fato
Militante desde a década de 1940, Clara Charf viveu de perto a repressão da Ditadura Militar (1964-1985). Poucos dias antes do golpe — que completa 50 anos no dia 1° de abril — policiais invadiram seu apartamento à caça de seu marido, o líder comunista Carlos Marighella. Naquela noite, encontraram apenas Clara. Considerado inimigo número 1 do regime, seu companheiro seria assassinado pelos militares em 1969.
Ela foi uma das primeiras mulheres que perderam direitos políticos na ditadura e passou a viver como clandestina. Perseguida, Clara foi para o exílio em Cuba, onde ficou até a anistia.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato SP, a viúva de Marighella fala de episódios dramáticos daquela época que até hoje a emocionam. Conta também sobre como se tornou comunista, caminho que, como ela mesma diz, não abandonou até hoje. “Ainda temos muita coisa por fazer. Tem muita gente que ainda não tem emprego, casa”, afirma.
Meio século após o golpe, Clara ainda espera esclarecimentos sobre esse período sombrio da história brasileira, bem como punição de torturadores e assassinos. “Espero muito da Comissão da Verdade, mas sei que não é um trabalho fácil. Ainda tem muita coisa que não se sabe.”
O golpe militar de 1964 faz 50 anos. Como ficou sabendo do golpe na época?
Quando veio o golpe, a gente já tinha alguns elementos que nos preveniram. Na época, éramos do Partido Comunista e já tinham invadido o nosso apartamento. Eu morava no Rio, perto do Palácio do Catete.
Invadiram antes do golpe?
É, alguns dias antes. O golpe estava se gestando. O Marighella tinha ido para a Bahia, eu fiquei em casa e estava esperando que ele voltasse. Numa noite tocou a campainha. Achei estranho, porque ele nunca tocava. Olhei pelo olho mágico e eram os policiais. Pensei: “Agora tô ferrada!”. Não tinha por onde sair, então fiquei ali quieta. Os caras começaram a gritar, mas eu não queria abrir, então eles começaram a arrebentar a porta. Dando golpes e mais golpes, a porta rachou e eles entraram.
E o que eles fizeram?
Acho que eles tomaram um susto. Pensavam que era um apartamento enorme e que o Marighella estava lá. Nem o Marighella estava, nem o apartamento era grande. Só estava eu. Eles começaram a gritar e eu comecei a gritar também, porque queria que a vizinhança ouvisse. Continuei gritando até que eles foram embora.
E a senhora continuou no apartamento depois disso?
Eu não tinha telefone e precisava avisar alguém que eles tinham invadido nosso apartamento. Estava desesperada, com medo do Marighella aparecer. Bati na porta da vizinha e pedi que ela ficasse de olho na porta enquanto eu saía para telefonar. Quando ela viu que o apartamento tinha sido invadido, respondeu: “Chama a polícia!”. Já imaginou? Acabei indo me abrigar na casa de uma tia. Deixei um bilhete no apartamento para o Marighella, escrito de um jeito que só nós dois entendíamos e depois ele me encontrou. Essa foi a primeira vez que o golpe se apresentou para nós.
A partir daí, o que mudou na sua vida?
A gente começou a refazer a vida, né? Não podíamos mais ficar ali. Fomos para a casa de uma família operária que morava na periferia do Rio. Pegamos algumas roupas, documentos e saímos do apartamento. Nós não podíamos levar os móveis, nada. Nesse meio tempo, as rádios e os jornais estavam dando notícia sobre o golpe. A polícia começou a fazer uma espécie de limpeza. Onde ela conseguiu localizar alguns dirigentes do partido, ela ia atrás para prender. Muita gente fugiu, se escondeu. Eu fico pensando hoje friamente: o que o povo sabia daquilo? Não sabia nada. O pessoal sabia que a direita estava se organizando, mas não estava claro que eles iam dar o golpe assim.
Pouco tempo depois o Marighella foi preso...
Foi. O Marighella tinha combinado com a mulher do zelador do nosso prédio de encontrá-la numa praça onde tinha um cinema, lá no Rio. Ela ia levar algumas coisas para ele, roupas e correspondências. Só que a repressão continuava querendo pegar o Marighella de qualquer jeito, e começou a seguir essa mulher. O que eu sei é que eles entraram no cinema e a polícia deu voz de prisão lá dentro. O Marighella começou a gritar e a polícia atirou. Ele estava preso, baleado e na mão da repressão. Desculpe [diz emocionada], foi uma cena horrível. Ele não podia nem respirar.
E a senhora?
Eu não sabia de nada. Ele tinha saído de manhã para fazer algumas coisas e a gente ia se encontrar de noite na casa dos operários que nos davam alojamento. A noite foi chegando e eu não sabia de nada. Dormi sem saber. No dia seguinte foi que eu soube o que aconteceu, que ele tinha sido ferido e estava quase morto. Ele se recuperou a duras penas e ficou preso.
Como era seu cotidiano com Marighella?
Era muito difícil. Tínhamos que viver com o nome trocado. E não tínhamos muito recurso, tinha que ser tudo contado. Tinha que ter muito cuidado para não deixar pistas, não sermos reconhecidos. Mas o dia-a-dia com o Marighella era muito bom. Na vida em comum, dividíamos tudo. As coisas pesadas ele fazia, e as coisas mais leves eu fazia. Uma coisa pesada era passar o escovão no chão, por exemplo. O escovão era um negócio pesado pra chuchu, então ele fazia isso. E ele não sabia passar roupa, então quem fazia isso era eu. E ele resolveu que, enquanto eu passava roupa, ele ia ler alguma coisa em voz alta para mim. “Em vez de você passar sozinha sem ouvir nada, você vai ouvindo as coisas que eu vou ler”, dizia. Ele sempre foi muito solidário. Podia ter muitos defeitos, como todo mundo tem. Mas era incapaz de ver você fazendo uma coisa e ficar de braço cruzado. Isso foi uma grande lição.
Marighella foi assassinado pelos militares em 1969. Depois disso, a senhora viveu no exílio em Cuba. Como foi esse período?
Eu sou da primeira lista de mulheres que perderam os direitos políticos no Brasil. Então, tive que trocar de nome no Brasil, fiquei clandestina aqui e entrei clandestina em Cuba. Trabalhei quase dez anos como tradutora. Vivi muita coisa da vida de Cuba e aprendi muito lá.
Sentiu muita falta daqui, dos familiares?
Ah, era terrível, né? Quando saí foi porque estava uma situação muito difícil. Eu não podia viver com o meu nome. Nessa situação, você precisa proteger as pessoas, inclusive as que te ajudam e não podem ser punidas por isso. Por isso teve muita gente que saiu do Brasil. Não tinha como ficar aqui. Eu pensava que, se aquilo durasse pouco, eu voltava mais rápido, se não mudasse, eu não podia voltar. Voltei quando fui anistiada, em 1979. Quando cheguei aqui, refiz meus documentos e nasci de novo.
Como a senhora se tornou comunista?
Sempre conto que quem me mostrou o comunismo foi o pai do fotógrafo Bob Wolfenson, que se chamava Jacob. Me lembro que eu era garota, tinha uns 12 anos. Morávamos em Maceió e um dia fomos à casa da família deles. Havia uma festa comemorando que o Jacob havia sido libertado. Então cheguei para ele e perguntei: “Por que você estava preso? Você é ladrão?”. Ele me respondeu: “Ladrão não, mas eu sou comunista”. Eu nunca tinha ouvido essa palavra. E ele foi me explicando o que era comunismo. Ele disse: “Um dia vai ter uma sociedade em que todo mundo vai ter tudo o que precisa. As pessoas todas vão poder estudar, comer, ter roupa, seguir a vocação. O mundo todo vai ser igual”. Foi explicando de um jeito bem didático. No final, dei a mão para ele e disse: “Então eu sou comunista!” Virei comunista ali, fiquei apaixonada por essa ideia e isso marcou a minha vida. Eu não abri mão desse caminho até hoje. Já estou com 88 anos e ainda quero ver muita coisa.
Por que não abriu mão?
Primeiro porque não está completo. Tivemos muitas conquistas, mas ainda temos muita coisa por fazer. Tem muita gente que ainda não tem emprego, que não tem estrutura, não tem casa, não tem instrução, não pode seguir sua vocação, fazer aquilo que gosta. Não é fácil a vida num país capitalista como o Brasil.
Como a senhora manteve sua atuação política?
Quando voltei de Cuba, fiz muitas palestras, visitas, conversas, todo mundo queria saber o que eu tinha aprendido, saber sobre a experiência de Cuba, a ditadura e a vida com Marighella. Aí veio o PT, e me lançaram candidata a deputada. Era a primeira eleição. Tive 19.560 votos, por mais uns votinhos eu tinha sido eleita. Eu achei ótimo não ter sido eleita, porque eu não queria ser parlamentar. Queria fazer trabalho livre, e foi o que eu fiz. Fui da Comissão Feminina do PT, trabalhei na parte de relações internacionais da prefeitura da Luíza Erundina em São Paulo (1989-1992). Atuei onde eu pudesse contribuir com a minha experiência, com o meu desejo de transformar em realidade aquilo que eu sonho até hoje. Hoje atuo na associação Mulheres pela Paz, voltada para a questão da violência.
O que espera da Comissão Nacional da Verdade?
Eu espero muita coisa, mas não está fácil. Tem algumas pessoas que foram perseguidas e que até hoje não querem falar, têm medo. E ainda tem muita coisa que não se sabe. Em muitos casos, só agora estão aparecendo informações mais diretas do lugar onde eles esconderam, onde eles [os militares] torturaram. É um trabalho muito lento. É preciso estimular que se façam as coisas, mas tem que fazer aquilo que é possível em cada momento.
O que acha do fato de os torturadores ainda não terem sido punidos no Brasil?
O problema não é só você localizar um ou outro militar. Tem que punir. Eles têm que pagar pelo que fizeram contra milhares de pessoas no país. Mas acontece que também tem outras coisas que é preciso tornar públicas. Se você for olhar os períodos de repressão na história do Brasil, não só de 1964, mas também na década de 1930, por exemplo, vai ver que ainda tem muita coisa para se tornar pública sobre a repressão das forças populares.
Foto de capa: Rafael Stédile/Brasil de Fato