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Para a cidadania não dá para continuar aturando o verdadeiro aprisionamento do Estado pelos grandes interesses corporativos, pelo seu assalto aos recursos e privatização dos bens comuns
Por Cândido Grzybowski, sociólogo e diretor do Ibase, no Canal Ibase
Nestes dias estamos lembrando e celebrando uma das campanhas cívicas mais memoráveis na história recente do Brasil, as “Diretas Já”. Há 30 anos atrás, final de 1983 e janeiro de 1984, milhões nos mobilizamos por democracia. Para instituí-la, ocupamos ruas e praças das cidades. Com nossa mobilização, demonstramos na prática que é sempre nas ruas e praças que se forja a democracia em sintonia com a cidadania.
Que festa foi aquela! Algo mágico nos tornava finalmente um povo com sentido e projeto, cantando, dançando, compartilhando sonhos de democracia e muita alegria. As “Diretas Já” marcam a mais importante derrota que a cidadania brasileira infringiu à truculenta ditadura. Considero este movimento de cidadania o marco mais emblemático na democratização. O que veio depois em termos institucionais não foi definido ou gestado aí, definitivamente não: Nova República, Constituição de 1988, primeira eleição direta de 1989 e tudo mais. Mas a refundação da democracia, a implosão das contradições políticas dominantes até então, por assim dizer, abrindo possibilidades totalmente novas, se deu aí, através das “Diretas Já”.
Lembro daquele momento como algo grandioso de que participei e sou testemunha. Ao mesmo tempo, olho para 30 anos atrás com as preocupações e buscas de hoje. O que falta na democracia que então instituímos? Por que ela parece estar em processo de envelhecimento precoce? Afinal, o sentido mais profundo que extraio da explosão de cidadania brasileira nas ruas e praças em junho de 2013 e que paira no ar é uma difusa insatisfação com a democracia que temos, um grito de “Basta! Assim não dá!”. Acho fundamental olhar com carinho a este grito da renovada cidadania, puxada pelas gerações que nos seguem e que reivindicam exatamente o que reivindicamos 30 anos atrás: o direito a ter direitos de cidadania e decidir sobre os rumos do país.
O maior feito das gerações políticas de 1984, na falta de melhor definição, foi derrotar a ditadura e, com a Constituição Cidadã de 1988, moldar o Estado Democrático de Direito. Com esta base institucional, o processo democrático ampliou direitos em direção de minorias, sem dúvida, e implantou políticas públicas novas, como todo o arcabouço de proteção social que temos. Não vou entrar em detalhes aqui porque não é o foco. O fato é que a onda de democratização gestada 30 anos atrás, em termos de mudanças substantivas na estrutura social excludente, desigual, racista e machista, pouco ou nada avançou. Não mudou fundamentalmente as bases que sustentam a economia voltada mais para a acumulação de lucros do que a satisfação de necessidades, predatória de recursos naturais e concentradora de riquezas. Tentou mas não conseguiu mudar o modo de fazer política, mesmo tendo ampliado e consolidado a cidadania eleitoral. A democracia representativa acabou virando um mercado político, mercantilizado e privatizado pelos interesses corporativos de grandes empresas das finanças, das indústrias, das mineradoras, do agronegócio e da mídia. A onda democrática está rebentando na praia agora, com perda de inspiração e capacidade de mudança. Mudou, sim, os seus protagonistas, que aceitaram as regras do jogo e estão satisfeitos com a sua obra.
[caption id="attachment_41480" align="alignright" width="274"] Nas ruas de Brasília, diante do Congresso Nacional, o povo se manifesta e exige o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República (Arquivo Agência Brasil)[/caption]
Aqui cabe lembrar que, em termos políticos, democracias nunca são projetos acabadas. A democracia é sempre um processo em mudança, permeado de incertezas, pois a sua força vital provem da disputa política permanente, das contradições em ação, das lutas de classe (que muitos se negam a ver), transformadas em forças construtivas de soluções possíveis no momento histórico. Democracia só existe em renovação. Se não se renova, a democracia definha e morre. Não dá para engessar a democracia. Por isto, bem vindas as várias identidades e expressões coletivas de cidadania, o barulho e o incômodo das mobilizações de rua, a vigilância e controle social de organizações ativas, movimentos sociais, organizações profissionais, redes e fóruns, a diversidade de vozes e debates públicos, a investigação da mídia, a confusão de partidos, expressão de nossa própria confusão. Onde os poderes de fato enxergam problemas, aí mesmo reside a possibilidade de ocorrer mudança e renovação. Democracia viva é cidadania viva. É pressão, conflito e negociação. Neste sentido, a cidadania institui, o resto é decorrente, tanto o poder de Estado como, no limite, a própria economia.
No Brasil, hoje, precisamos sacudir a democracia. A tarefa da cidadania no aqui e agora é gestar uma nova onda de democratização. Desta vez precisamos democratizar a própria democracia. Tarefa nova a exigir renovação. Os sinais estão dados pela ebulição no seio da sociedade civil que qualquer um pode notar, com intensidade como em junho de 2013 ou como “caldeirão” esquentando, como neste começo de 2014. É só ver a revolta que se gesta no transporte público, a raiva das pessoas nas filas para receber atendimento médico, o mal estar que causam os representantes, que continuam a por seus pequenos interesses pessoais e corporativos acima do bem público, a falta de imaginário mobilizador para a disputa eleitoral que se avizinha.
Para finalizar e comparando ainda com a conjuntura de 30 anos atrás, lembro dois desafios políticos centrais. Primeiro, poderemos democratizar a democracia se forem abertos canais efetivos de sintonia entre as demandas da cidadania e o poder instituído, com seus órgãos, recursos e políticas. Para a cidadania não dá para continuar aturando o verdadeiro aprisionamento do Estado pelos grandes interesses corporativos, pelo seu assalto aos recursos e privatização dos bens comuns. O segundo desafio é mudar radicalmente a nossa democracia representativa. Trata-se de acabar com o mercado político acima da cidadania e contra ela, que privatiza a própria representação. Aqui precisamos voltar a exercer nosso direito fundamental como cidadãos e cidadãs: somos a força instituinte e constituinte em última instância. Nada pode limitar o poder da cidadania numa democracia que tenha sentido. Estamos querendo simplesmente que a democracia seja democracia cidadã, para fazer a tarefa cidadã necessária na refundação do projeto de nação.
Um alerta somente: o sonho e a utopia da democracia como modo de construir o nosso país ou se renova e radicaliza, ou morre. Aí…