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Em nenhum país democrático manifestações populares precisam ser “protegidas” por exceções especificas de leis antiterror. Elas fazem parte da cena democrática cotidiana e a lei comum dá conta dos abusos dos ativistas
Por Sergio da Motta e Albuquerque, no Observatório da Imprensa
A morte do cinegrafista Santiago Andrade provocou uma reação emocional perigosa em parte da imprensa e no governo porque desaguou num consenso justiceiro que pretende intimidar manifestações públicas da população por meio de legislação específica. A cena traz à lembrança o movimento militar de 1964, quando um governo legítimo foi derrubado por uma coalizão de militares, parlamentares e organizações civis reacionárias em nome das liberdades supostamente ameaçadas.
Foi o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) que comparou os dois cenários, separados no tempo por cinco décadas, na edição de sábado de O Globo impresso (22/2, pág. 23): “Cinquenta anos depois, um governo eleito, aliado a parlamentares, propõe regras para inibir manifestações de rua sob o argumento de ‘defender o direito de manifestação’” (ver “O terror antiterrorista“).
[caption id="attachment_42974" align="alignleft" width="300"] “O texto do projeto é avassalador. Praticamente instaura um regime arbitrário de exceção legal" (Elza Fiúza/Agência Brasi)[/caption]
O projeto de lei nº 499 de 2013 é draconiano, ambíguo e representa perigo para a democracia. Qualquer tumulto urbano, seja lá qual for sua origem, poderá ser classificado como ato terrorista se descambar para algo maior. Uma briga de bar poderá evoluir para algo de maior proporção e ser classificada como “ato terrorista”. E se alguém acabar morto durante uma manifestação, a pena do criminoso será aumentada. O projeto de lei, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), está para ser votado em regime de urgência e provocou a repulsa de muitos juristas e jornalistas. O site especializado em Direito Crítica Constitucional(17/2) examinou a proposta e apontou para o perigo da aprovação do projeto e para a ambiguidade do tipo penal contido nele.
“O texto do projeto é avassalador. Praticamente instaura um regime arbitrário de exceção legal, que pode ser um grande passo rumo à deterioração de nosso sistema democrático. Uma breve leitura do projeto revela o porquê. O artigo 2º do texto define o tipo penal mais abrangente, que é o crime de terrorismo:
Art. 2º. Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa.
Pena – reclusão, de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos.
§ 1º Se resulta morte:
Pena – reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos.”
“AI-5 padrão Fifa”
Terrorismo definido em pouco mais de duas linhas? O site de assuntos jurídicos comentou a excessiva ambiguidade e a pobreza da definição. Basta uma olhada no artigo 2°, para perceber que o tipo não está bem definido. É muito genérico, e aplica-se a uma miríade de situações de conflitos urbanos. Vandalismo é terrorismo? Tumulto de rua é terrorismo? Não podem ser controlados com as leis já existentes? O mesmo pode ser dito sobre destruição de patrimônio histórico público. O artigo 4º do projeto classifica como “terrorismo contra a coisa”, “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial”.
O projeto de lei incluiu os estádios de futebol entre muitas instalações estratégicas e prestadoras de serviços sociais a serem protegidas. Muito conveniente, diante da proximidade da Copa do Mundo. Mais proteção para o entorno dos estádios, zona já cedida ao controle da Fifa. Sinto muito, senador, mas as “arenas” da Copa não são bens ou prestam serviços essenciais à população. Como hospitais, portos, rodovias, escolas e outras instalações de uso essencial do povo.
Mas não foram só os especialistas em direito que protestaram contra o projeto de lei que pretende controlar as manifestações públicas. A BBC Brasil (14/02) publicou o descontentamento do jornalista Elio Gaspari (Folha de S.Paulo e O Globo), que criticou o “caráter vago” da redação da lei e comparou-a a um artigo da Lei de Segurança Nacional baixado em 1969, “no auge da ditadura”. O Correio Braziliense chamou o projeto de “AI-5 padrão Fifa”.
Fragilidade e incapacidade
O senador Jucá informou em seu blog (11/02) que as manifestações não serão afetadas pela lei:
“Em entrevista aos jornalistas, o senador ressaltou que a lei antiterrorismo não vale para a manifestação que ocorreu semana passada, quando o cinegrafista Santiago Andrade foi atingido por um rojão, provocando sua morte. ‘Este não é um enquadramento de terrorismo, mas de assassinato, de repúdio. Temos que separar as coisas.’
A legislação aprovada antiterrorismo é muito clara, visa combater a ação terrorista. É um crime bárbaro (a morte do cinegrafista), mas não é resultado de um ato terrorista. Nós temos que ter cuidado para não macular nem a lei que será aprovada nem a própria ação de movimentos sociais.”
Do que fala o senador? De seu outro projeto de lei antiterrorismo nº 44 de 2014? Ele foi apresentado no dia 18 deste mês, e inclui em seu artigo 3º uma cláusula “excludente de crime” para as manifestações e manifestantes. Mas a proposta não vai ser votada agora. No dia 22 de fevereiro, encontrava-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania a aguardar emendas. O projeto que vai a votação é o de nº 499 de 2013. O senador Pedro Taques (PDT-MT) propôs para ele uma emenda que diz o seguinte:
“Art. 8º. Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade.”
O senador Cristovam Buarque tem poucas esperanças na mudança do “espírito da proposta”, como explicou ao Globo. Por outro lado, a possível inclusão de uma cláusula para proteger manifestantes no corpo de uma lei antiterrorismo pode vir a representar um embaraço para a democracia brasileira. Um sinal de fragilidade e incapacidade das instituições do país em garantir a ordem pública desafiada pelas manifestações de nossa era.
Caminho para um regime autoritário
Em nenhum país democrático manifestações populares precisam ser “protegidas” por exceções especificas de leis antiterror. Elas fazem parte da cena democrática cotidiana. A lei comum dá conta dos abusos e desvios dos ativistas. Essa lei antiterror do senador Romero Jucá não serve ao Brasil e aos brasileiros. É mais uma tentativa de intimidar o cidadão comum que participa de manifestações do que uma efetiva lei contra o terrorismo.
Quem estaria mais interessado nessa tentativa de disciplinar as manifestações populares? O governo? A Fifa? Os americanos, ingleses, israelenses e o risco real que representam? A resposta é um tanto ou quanto óbvia: há todos esses interesses por trás dessa tentativa de “regular” os protestos, mas os mais entusiastas são aos próprios políticos. De todos os partidos. Em todos os níveis do estado. Todos, com as honrosas, nobres e poucas exceções, sentiram o peso e a ameaça dos movimentos populares que incendiaram as metrópoles brasileiras ano passado. E tremeram de medo. Não suportam mais o peso dos protestos do povo, e têm medo do que poderá acontecer durante a Copa do Mundo.
Por isso querem reforçar a fracassada capacidade do Estado de manter a ordem pública e a segurança nas manifestações com uma peça de legislação genérica, mal tipificada e ardilosa. Abrir mão da liberdade por razões de segurança é facilitar a abertura de um caminho para um regime autoritário.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor