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Os rolezinhos trouxeram boas análises sobre o desejo de consumo dos jovens da periferia, mas poderiam ter suscitado debates mais amplos, sobre o direito à cidade
Por Sylvia Debossan Moretzsohn*, em Observatório da Imprensa
[caption id="attachment_40795" align="alignleft" width="314"] Para o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, "o problema do shopping center é a ideia de confinamento que destrói a cidade. (...) O pior é a praça de alimentação. Parece um lugar para distribuir ração" . (Foto: Wikipedia)[/caption]
“O problema do shopping center é a ideia de confinamento que destrói a cidade. Uma cidade não pode ser feita de quimeras. Ela é feita de botequim, de padaria.”
“O pior é a praça de alimentação. Parece um lugar para distribuir ração.”
Esses comentários, ligeiramente condensados, foram feitos por Paulo Mendes da Rocha em junho de 2006, na “sabatina Folha“, pouco depois que o arquiteto recebeu o Prêmio Pritzker.
O fenômeno dos rolezinhos ganhou destaque nas várias mídias ao longo das últimas duas semanas e produziu algumas análises de fôlego relativas ao desejo de consumo, ostentação e diversão dos jovens da periferia e ao preconceito contra a presença coletiva deles nesses espaços construídos com a promessa de proteger os clientes da turbulência das ruas. Mas poderia ter servido também para recuperar o debate sobre o modelo de cidade que adotamos, e que cria progressivamente zonas de exclusão, às vezes explícitas, como nos condomínios fechados, às vezes veladas, como nos shoppings.
Reação à repressão
Desde a repressão a jovens que procuraram abrigo no Shopping Vitória, no Espírito Santo, depois que um baile funk foi encerrado à força pela polícia (ver aqui), no fim de novembro do ano passado – um episódio inicialmente tratado como arrastão, por essa associação automática entre juventude pobre e crime –, começaram a circular pela internet denúncias de preconceito. Convocados pelas redes sociais, os rolezinhos – já de si uma atitude política, como aponta a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado (ver aqui) –, ganharam nova conotação depois da repetição de cenas de truculência policial em São Paulo: passaram a ser o desafio de afrontar coletivamente um ambiente asséptico. E, claro, tornaram-se uma oportunidade para a atuação de militantes de movimentos sociais e partidos de esquerda, um pouco à maneira da manifestação ocorrida no Rio em 2000, quando um grupo de sem-teto foi reunido para uma “visita” ao shopping Rio Sul (ver aqui) e demonstrou, pelo contraste evidente, a segregação que aquele espaço impunha.
Reações despropositadas
A multiplicação desses rolezinhos às vésperas da retomada dos protestos contra a realização da Copa do Mundo – que, embora sem reunirem muita gente, na semana passada voltaram a produzir cenas de destruição – foi mais um fator a provocar tensão. O fato inédito de alguns shoppings terem preferido fechar as portas para se prevenir da “invasão” dos indesejáveis demonstrou o grau de temor e despreparo dos empresários para lidar com a situação.
As autoridades, por seu lado, se apressaram a reconhecer a falta de espaços de cultura e lazer na periferia e prometeram suprir essa carência, o que não deixa de ser louvável, mas ao mesmo tempo reforça a perspectiva de segregação, no estilo “cada macaco no seu galho”. E é também um pouco inútil para esse fim, porque se esses jovens desejam frequentar os lugares da moda, é para lá que eles vão.
É importante aproveitar o momento para mostrar a dificuldade de se lidar com as urgências e a excitação próprias da juventude, que independem de classe social mas são, por isso mesmo, tratadas de modo distinto: excessos de jovens ricos e de classe média são tolerados ou se tornam motivo de preocupação e cuidado, excessos de jovens pobres são liminarmente criminalizados. A condenação à “zoeira” que os rolezeiros provocaram, correndo e gritando pelos corredores e assustando clientes, deixou isso muito claro: logo surgiram notícias sobre algazarras semelhantes promovidas por jovens universitários, demonstrando mais uma vez quem pode e quem não pode, ou não deve, frequentar esses lugares.
A questão urbana
Mas é exatamente por isso que seria importante recolocar a questão do modelo de cidade e dos valores que devemos cultivar. A Carta Maior aproveitou essa oportunidade, numa entrevista com a socióloga Valquíria Padilha, que defende a eliminação dos shoppings e sua substituição por “parques, espaços de cultura, bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos igualmente”, em nome de “uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica”.
As críticas de urbanistas às remoções e à radical transformação urbana que se está operando no Rio em nome da Copa e das Olimpíadas mereceriam ser trazidas para esse contexto.
Enquanto isso não ocorre, recordemos os comentários de Paulo Mendes da Rocha na sua “sabatina”, ironizando a ilusão de segurança que a segregação provoca:
“Temos que ser livres de fato. E sentar na rua. Já amanheci deitado com um amigo na sarjeta na praça da República e não aconteceu nada. Em qualquer desses bairros privados, teríamos sido metralhados. Em certos bairros, se eu for pra lá, já vão me perguntar o que eu estou fazendo. Se disser que não sei, que fui passear, vou em cana. Isso é um absurdo. A cidade é democrática. A cidade é livre. O que acontece com essa classe temerosa que se autoalimenta do pavor? Dizem: ‘Não há segurança’. Como pode haver segurança para quem tem filhos? Como? Botar um guizo em cada filho? É impossível. É uma ideia tola, a da segurança, e um instrumento da exclusão”.
*Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)