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Nas manifestações de junho, uma quantidade sem fim de temas estamparam os cartazes de quem foi para rua. Um, no entanto, não foi tão fácil de encontrar: a legalização do aborto
Por Martha Neiva Moreira, do Canal Ibase
Nas manifestações de junho, uma quantidade sem fim de temas estamparam os cartazes de quem foi para rua. Mais qualidade para saúde, para a educação, gratuidade do transporte, desmilitarização da polícia, combate a corrupção, entre tantos outros. Um, no entanto, não foi tão fácil de encontrar: a legalização do aborto. A quase ausência de apoio à reivindicação nos protestos dá a medida de como o assunto é espinhoso no país, embora as estatísticas deem conta de que a prática já é um problema de saúde pública em território nacional.
Uma em cada cinco mulheres já fizeram aborto no Brasil. Não há um perfil definido, são mulheres comuns, de todas as classes sociais. Metade delas têm complicações sérias e precisam recorrer aos hospitais onde, não raro, são hostilizadas por médicos e enfermeiros. Os dados são da Pesquisa Nacional de Aborto, feita entre 2010 e 2011 pelos pesquisadores da Universidade de Brasília (UNB) Debora Diniz e Marcelo Medeiros. Eles recolheram depoimentos por escrito de mulheres entre 18 e 39 anos, que já fizeram aborto, de cinco capitais brasileiras.
- Os maus-tratos vão desde o acolhimento, onde são discriminadas por terem feito aborto, até mesmo à recusa de atendimento por parte das equipes. Em muitos casos, essas mulheres foram expostas a situações vexatórias e de tortura psicológica, submetidas a procedimentos sem uso de anestesia e colocadas em maternidades junto com mulheres que tiveram filhos – explicou a antropóloga Débora Diniz, da ONG Anis.
[caption id="attachment_32172" align="alignright" width="432"] Mulheres comemoram decisão do STF sobre interrupção de gravidez em caso de feto anencéfalo (José Cruz/ABr)[/caption]
Essas mulheres, segundo o estudo, usam na maioria das vezes chás e o cytotec, remédio que pode custar até R$ 300 por comprimido no mercado paralelo. As casas e/ou clínicas de aborto, segundo Débora, apareceram em poucos depoimentos, mas não foram objeto da pesquisa.
- O acesso a esses espaços é restrito a mulheres que podem pagar por eles. E algumas dessas clínicas clandestinas, especialmente as mais baratas, não têm preocupação alguma com a higiene e a saúde das mulheres. Ou seja, com menos dinheiro, elas seguem para esses chamados “açougueiros”. Com mais dinheiro, seguem para as clínicas. Mas todas o fazem na clandestinidade e correndo um grande risco, tanto de saúde – podendo chegar à morte, quanto legal, pois estão cometendo um crime.
A experiência de conhecer uma casa de aborto é forte o suficiente para revirar o estômago. No entanto, os relatos sobre como funcionam, ao que parece, ficam impressos apenas nas lembranças de quem precisou recorrer a elas, pois são pouco divulgados.
Como jornalista, vou a muitos lugares e estive em uma casa de aborto na periferia do Rio de Janeiro. Quando voltei, afetada pela experiência, escrevi o texto “Homem não entra”, uma espécie de conto-reportagem em que apenas os nomes dos personagens são fictícios. Publico abaixo como forma de apoiar a luta de nós, mulheres, que neste 28 de setembro, Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, reafirmam mais uma vez que “nosso corpo” é sim, “nosso território”.
Homem não entra
“É a casa coral no final da rua”, disse a menina. A cor estava esmaecida pelo tempo, mas não deixava dúvidas que um dia havia sido coral. Tinha uma varanda ampla na frente, cujo acesso era feito por uma pequena escada de três degraus . Seria uma delícia de estar ali se aquela construção dos anos 1950 fosse localizada em uma rua bucólica. Mas não era o caso. A casa onde homem não entra, como observou o moço forte que guarda o portão lateral de entrada, fica em plena via movimentada.
Lá dentro, em uma espécie de antessala ao ar livre, mulheres de todas as idades esperam em um cruzar de pernas sem fim. Sentadas em cadeiras de plástico brancas, que fazem uma meia volta em torno de uma mesa com toalhas baratas de plásticos, elas falam de qualquer coisa que venha à cabeça. Algumas tensas, contidas, outras mais agitadas e loquazes, bebem, de vez em quando, café de uma das duas garrafas térmicas, ou comem pedaços de biscoitos quebrados que enchem até a boca um grande recipiente de plástico.
- Olá, posso ajudar?
A Solange, por favor.
Passe aquela porta. Mais a frente, à esquerda, tem uma salinha. Lá está a Solange.
Ao cruzar a porta, logo à direita, entre um arco na parede que dá acesso a um banheiro e uma bancada com pia, uma mulher de mais ou menos 40 anos, com o jeans aberto, deixando a mostra a renda da calcinha vermelha, se olhava no espelho fazendo o gesto de corar as maçãs do rosto com o polegar e o indicador que as avós costumavam ensinar:
- Tenho que ficar com um ar de saúde para quando chegar na empresa daqui a pouco. Não vou poder descansar. Tenho que trabalhar direto daqui. Se eu não for, descontam do meu salário – explicou sem ninguém perguntar.
Mais à frente e chega-se em um ambiente meio soturno, de pouca luz. Talvez por causa das paredes revestidas de ripas de madeira escura, onde foram presas tábuas fazendo a vez de estante. Apoiadas nelas toda a sorte de imagens religiosas, de Santo Antônio a Iemanjá, passando por São Jorge e inúmeras Nossas Senhoras. Em algumas, guias penduradas. Perto de outras, velas acesas e alguns vasos de flores de plástico.
Ao reparar minha expressão de curiosidade, a senhora corpulenta de cabelo em coque pintado de um amarelo desbotado, sobrancelhas feitas a lápis marrom, e batom cor de rosa, se levantou de um sofá de couro vermelho, já meio rasgado, encostado na parede. Ela explicou que na terra aquela casa é protegida pelos “hômi” (sic), mas que “lá em cima” quem oferece proteção são as imagens que chamaram a minha atenção.
Dona Leonor, como é conhecida esta mulher com olhar duro de mais ou menos 70 anos, usava anéis dourados e com pedras em todos os dedos. Há 30 anos, ela diz, está ramo. Contou que antes de conhecer o marido, dono do negócio e já falecido, era funcionária de loja de departamentos. Ganhava pouco na função e, por isso, resolveu deixar o trabalho para ajudá-lo. Hoje tem duas ‘casas’ no subúrbio e já é sócia de uma outra na Zona Sul.
Vale a pena. Não tenho medo, não. Sou protegida, como se vê! – disse a senhora, que logo foi interrompida por uma outra mulher, bem jovem, de rabo de cavalo louro, calça jeans justa e camiseta grudada no corpo, já meio flácido:
- Sou a Solange. Vamos até ali dentro, por favor.
‘Ali dentro’ era uma sala ampla, cujas paredes brancas estavam meio cinzas de poeira. Em uma delas, a imagem de Cristo. Encostadas na parede, algumas cadeiras e, em frente a elas, uma TV ligada, mas sem som, era o máximo de acolhimento possível naquele lugar.
Até chegar à sala ampla em que nos encontrávamos, foi preciso passar por um corredor. No caminho, uma porta entreaberta revelou a atividade de uma moça que vestia camiseta de alça deixando a mostra os braços gorduchos. Sentada em frente a uma mesa, ela contava com agilidade de caixa de banco maços de notas, dispostos em pequenos envelopes enfileirados um ao lado do outro. Dentro deles apenas duas quantias: R$ 900 para clientes de poucos recursos e R$ 1700 para o resto. Vinte clientes por dia, de segunda a sexta, é a média de visitas, ela revelou, depois de muita conversa.
Na sala ampla, sentada em uma das cadeiras, havia uma mulher. Magra, com traços fortes e roupa discreta, saia abaixo dos joelhos e uma camiseta de uma cor indefinida. Os cabelos compridos e pintados de preto estavam soltos, encobrindo uma parte do rosto, tenso, com lábios cerrados e testa franzida. Quando entrei ela levantou os olhos e logo depois parece ter sentido alívio ao ver-me sentar. Aguardava ansiosa pela filha, que havia entrado há pelo menos 40 minutos. Enquanto esperávamos juntas ali, ela contou que a menina, de 20 anos, começou a namorar há dois meses.
É muito jovem, começando a vida agora e fazendo faculdade. O remédio falhou né e não dá para ela levar a adiante – falou com ar de quem queria um consentimento. E teve.
Meia hora depois uma moça chega e diz que podíamos sair dali para outro lugar, se quiséssemos. E fomos. Para a antessala da entrada, junto com mais dez mulheres que, como nós, aguardavam alguém.
Ali, uma coleção de histórias como a da senhora que foi anos enfermeira de posto de saúde e, por isso, dava dicas ali de procedimentos pós-intervenção. Ela indicava água de laranjeira para acabar de lavar o que restava.
É só tomar um pouco, que algumas horas depois sai tudo. Compra na farmácia. Já comprei pra dar para minha filha. Ela está lá dentro. Entrou nervosa. _ informava, para logo depois amparar a moça, loura de farmácia, que acabara de voltar meio curva, com vestido branco de lycra colado no corpo, e mãos tocando a região do baixo ventre.
Chorando a moça dizia que queria ir embora. A tristeza da menina fez contraste com a naturalidade com que uma outra jovem, com barriga já bem proeminente, coxas grossas, saiu de uma porta de uma casinha construída no quintal usando um vestidinho bem curto e de alças. Agitada ela fez seu pedido:
Me dá uma xuxinha de cabelo? Alguém tem uma xuxinha de cabelo? É minha vez agora e não posso deixar o cabelo solto, não deixam. Mas esqueci de trazer a minha – informava.
Alguém deu. E ela entrou com uma aparente tranquilidade na casinha novamente.
Pouco tempo depois uma menina loura, magra, vestindo calça jeans e camisa social de botão, sentou-se em uma das cadeiras de plástico. O rosto cansado e a postura curvada não deixava dúvida que acabara de sofrer a ‘intervenção’, palavra muito usada naquele lugar. “Tenho que ligar para casa para saber das crianças, que deixei com o pai antes de sair. Mas tenho que me acalmar porque ele não sabe que estou aqui”, dizia a todas nós esta jovem de cerca de 35 anos, que depois contou que é corretora de imóveis e mora na Barra da Tijuca. Estava em processo de separação e, por isso, não desejava ter o terceiro filho com o marido. Dizia que descansaria mais meia hora para se reestabelecer e depois voltaria guiando o carro pra casa.
Durante algum tempo, moças foram saindo da casinha. Umas mais angustiadas e buscando algum conforto nas conversas da antessala, outras já buscando o caminho de saída pela simples dificuldade de permanecer por ali por mais um tempo. Foi assim com uma mulher alta, de pele morena, que usava calças jeans justa, blusa dessas caídas no ombro, sandálias plataforma, e cabelos presos. Ela saiu e passou por nós dizendo que queria embora porque estava com o barulho da sala de espera da casinha na cabeça.
É que o ‘isolamento acústico’ da sala de procedimentos, segundo eu soube depois, deixa escapar o barulho do aparelho de sucção, o que torna os minutos de espera pela intervenção na casa do quintal ainda mais angustiantes. Lá também não há nenhum tipo de roupas limpas para as moças vestirem. São cangas, dessas de praia mesmo, que envolvem os corpos das mulheres.
Tão logo a morena alta saiu, chegou uma mocinha, bem mocinha mesmo, amparada por uma senhora que aparentava seus 80 anos. A idade para aquela dona de corpo firme e esguio pareceu ser apenas um detalhe diante da atitude que teve com a neta, uma menina do tipo mignon, bem branquinha e de cabelos curtinhos pretos. Piercing no nariz, na orelha, e tatuagem. Aos 15 anos chegou dizendo que queria acabar logo com aquela mal estar que não passava nunca. A avó, a quem, como a menina falou-me depois, pode contar sem medo a vontade de interromper a gravidez, abraçava a neta e dizia que não faltava muito para o enjôo, que provocava ânsia de vômitos o tempo todo, terminar. A senhora sentou a menina na cadeira e disse que ia fazer o pagamento. Quando voltou, passou o braço por trás corpo dela, trazendo-o para perto de si, e foi acalmando-a com um embalo. Ficaram ali por meia hora, até chegar a vez da garota, que foi levada até a porta da casa do quintal pela senhora. Despediram-se com um olhar e um movimento de consentimento da velha.
A cena deu a medida da parceria entre essas duas mulheres e entre tantas outra ali, que embora maioria em número, submetem seus corpos anestesiados por algum momento ao poder do único homem que pode entrar no lugar. Um jovem médico que nas horas vagas fatura um ‘extra’ fazendo abortos nesta clínica clandestina, e suja, de um subúrbio carioca.
Com não mais de 35 anos, cabelos cortados à máquina, óculos redondos de aros prateados que lhe conferem um ar de intelectual, ele vem de quando em quando à porta da casinha do quintal e anuncia, em alto e bom som:
A próxima, por favor!