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Para Ilona Szabó, cofundadora da Rede Pense Livre, muitos ainda ignoram conhecimento adquirido sobre experiências bem sucedidas no campo da descriminalização, redução de danos e tratamento
Por Glauco Faria
“O debate ainda está sendo feito de forma ideológica e com bastante preconceito. Precisamos vencer esta etapa e discutir soluções embasadas em dados e boas práticas.” Essa é a avaliação de Ilona Szabó de Carvalho, cofundadora da Rede Pense Livre – por uma política de drogas que funcione. Lançada em setembro de 2012, a Rede reúne cerca de 80 lideranças jovens, entre “especialistas em políticas de drogas e redução da violência, empresários, jornalistas, cineastas, médicos, psicólogos, membros da sociedade civil organizada, pesquisadores, advogados e promotores culturais”, de acordo com Ilona. O objetivo é promover um debate amplo e qualificado por uma política de drogas realmente efetiva.
Ilona foi uma das entrevistadas da matéria “O fracasso de uma guerra sem sentido”, que faz parte da edição 126 da revista Fórum, nas bancas e nas lojas da Livraria Cultura. A edição traz um especial sobre a política de drogas no Brasil, abordando diversos aspectos de uma pauta que ainda está obstruída no cenário político nacional.
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Confira abaixo trechos da entrevista concedida por Ilona.
Fórum – Quais são os principais setores que resistem a uma discussão sobre mudanças na política de drogas no Brasil? Que tipo de interesses econômicos você identifica em algum deles?
Ilona Szabó de Carvalho – Hoje vemos o debate muito polarizado entre conservadores e alguns grupos religiosos de um lado e os movimentos chamados antiproibicionistas de outro.
Acontece que em ambos os lados existem pessoas e grupos com posições menos radicais ou resistentes, que não estão conversando como deviam para achar soluções equilibradas e baseadas no que funciona de verdade, respeitando os direitos humanos e colocando a saúde e segurança das pessoas em primeiro lugar. A polarização e rotulação das pessoas envolvidas nesta causa, de ambos os lados, não têm contribuído para o avanço de uma política equilibrada e baseada no que funciona.
[caption id="attachment_31966" align="alignleft" width="420"] "A política de drogas é aplicada de forma seletiva, sempre muito mais dura em áreas marginalizadas das grandes cidades, recaindo sobre populações que já sofrem muita negligência e abuso" (Foto Rede Pense Livre)[/caption]
Fórum – Muitas vezes o discurso de endurecimento da política contra dados usa dados supostamente científicos. Como esses dados são manipulados e de que forma essa aura científica acaba reforçando ideias equivocadas na sociedade?
Ilona – O que vemos hoje é o pouco compromisso com evidências científicas e o desconhecimento, de alguns parlamentares e porta-vozes da posição mais conservadora, de todo o conhecimento adquirido nos últimos anos e das experiências internacionais bem sucedidas no campo da descriminalização, redução de danos e tratamento que deram certo.
O debate ainda está sendo feito de forma ideológica e com bastante preconceito. Precisamos vencer esta etapa e discutir soluções embasadas em dados e boas práticas.
Fórum – Como a atual política da área no Brasil contribui para a criminalização da pobreza?
Ilona – A política de drogas é aplicada de forma seletiva, sempre muito mais dura em áreas marginalizadas das grandes cidades, recaindo sobre populações que já sofrem muita negligência e abuso. A política atual de drogas permite que a lei do asfalto não valha para a favela. Por exemplo, nas favelas, a polícia entra na casa das pessoas sem mandato judicial, a qualquer hora, e pode fazer revistas, apreensões e cometer abusos graves, sem que tenha que responder por isso.
Esta política de guerra e enfrentamento também é responsável por boa parte das mortes por homicídios de jovens negros entre 15 e 19 anos, geralmente intitulados traficantes, como se isso justificasse execuções e outros abusos.
Fórum – Que países atualmente poderiam servir de modelo na questão da política de drogas no mundo?
Ilona – Diversos países da Europa vêm implementado reformas centradas na descriminalização do uso de drogas para consumo pessoal. Geralmente, as novas leis eximem os usuários de drogas ilícitas do processo criminal e da pena de prisão pelo consumo ou por atos preparatórios como aquisição, porte simples ou cultivo para uso pessoal.
O impacto da mudança tem sido avaliado como positivo. Em primeiro lugar, as diferentes experiências indicam que a descriminalização do uso não provocou um aumento geral no consumo de drogas, como se temia. Tampouco transformou os países que adotaram a medida em centros turísticos para o consumo de drogas, atraindo o chamado narcoturismo.
Do mesmo modo, em vários países a medida aliviou consideravelmente a pressão sobre as agências que integram o sistema de justiça criminal, possibilitando a utilização de mais recursos policiais na repressão do tráfico de drogas e do crime organizado. Por outro lado, a política também ajudou a remover as barreiras que impedem o acesso dos consumidores com padrões problemáticos de uso aos serviços de tratamento e de redução de danos.
Em julho de 2001, Portugal se transformou no primeiro país europeu a descriminalizar o uso e a posse de todas as drogas ilícitas. Muitos observadores criticaram esta política, acreditando que conduziria ao aumento do uso de drogas. Mas não foi o que aconteceu.
Na Espanha, a posse de drogas para consumo pessoal não é considerada crime e se encontra sujeita apenas a sanções administrativas, como multas, quando o consumo for feito em lugar público. Porém, a multa pode ser suspensa se o indivíduo aceita submeter-se a um tratamento.
Uma iniciativa interessante e inovadora vem ganhando corpo na Espanha. Os usuários de cannabis criaram um tipo de cooperativa na tentativa de organizar um abastecimento para o uso recreativo e medicinal da planta, sem ter que acudir ao mercado ilegal. Assim surgiram os chamados Clubes Sociais de Cannabis (CSC). As sementes da cannabis são compradas no mercado legal, por que seu comércio não se encontra proibido na Espanha, com dinheiro proveniente dos associados, que “financiam” o clube na proporção que consomem. Assim, através dos clubes, associados conhecem exatamente a origem e qualidade da substância que estão consumindo, valorizando sua autonomia como usuários.
Embora ainda não exista uma legislação que regulamente a atuação dos clubes e nem todos têm exatamente as mesmas regras de funcionamento, normalmente, para ser sócio, é preciso ser maior de idade, ser consumidor habitual de maconha e pagar uma quantia para poder consumir. Os sócios têm idades entre 18 a 70 anos e recorrem à sede para fumar sua cota mensal.
A principal intenção destes clubes é romper a relação dos usuários com os traficantes, criando uma alternativa de fornecimento legal para quem já usa maconha e inibindo simultaneamente o crescimento do mercado ilegal. Outra intenção foi a de criar espaços privados para o consumo de cannabis em grupo, já que o consumo em lugares públicos se encontra proibido.
Fórum – Como você vê o projeto do deputado Osmar Terra (PMDB-RS)? Quais os principais efeitos que teríamos para a questão da políticas sobre drogas, hoje, caso ele seja provado?
Ilona – A Rede Pense Livre se posiciona contra o projeto de lei apresentado pelo deputado Osmar Terra, que está em vias de ser votado no Senado Federal, pois ele é um projeto ultrapassado que não leva em consideração o aprendizado e evidências científicas dos últimos anos.
O PLC 37 (antigo PL) 7663/2010 representa um retrocesso em relação às conquistas e aos resultados positivos obtidos no campo do tratamento de saúde para usuários e dependentes de drogas. Propõe o endurecimento das penas relativas aos crimes envolvendo drogas, a retomada da política de internação compulsória e involuntária como pilar central para o tratamento dos dependentes.
Em 2012, a Organização das Nações Unidas recomendou aos países-membros a extinção imediata das internações compulsórias e dos centros de reabilitação forçada por não haver evidências científicas que os apontassem como estratégias exitosas de tratamento para usuários com dependência.
O próprio Ministério da Saúde defende uma perspectiva mais ampla de redução de danos em que a abstinência não é pré condição para o tratamento. A Lei 10.216/2001 determina que a internação nunca deve ser a primeira opção no tratamento das pessoas que sofrem devido a problemas associados ao uso de álcool e outras drogas.
O texto cria também um sistema paralelo ao SUS para atendimento dos dependentes e descredencia as comunidades terapêuticas que, apesar de controvérsias, fazem parte do sistema. Ao retirá-las da rede integrada de atenção, a política de saúde seria colocada em risco, uma vez que essas comunidades não estariam submetidas aos critérios mínimos estabelecidos pela política nacional de saúde.
Fórum – De que forma você enxerga o papel da mídia na discussão sobre o tema?
Ilona – A mídia tem papel fundamental: oportunidade de ajudar a quebrar de vez o tabu e incluir o tema de forma equilibrada e responsável na agenda política nacional. Pesquisa de opinião recente indicou que “ter um filho consumindo drogas” é uma das principais preocupações dos brasileiros. A mídia deve buscar o esclarecimento e a normalização do debate desta questão de saúde pública, deixando de alimentar o medo e o estigma e buscando discutir uma agenda positiva que de fato ajude a sociedade a lidar melhor com o problema. Precisamos sair da polarização neste debate.