Pesquisadores e índios denunciam a retirada de camadas de rochas, com pinturas com mais de 3 mil anos, segundo estimativas de cientista; o objetivo seria vendê-las
Por Elaíze Farias, da Agência Pública
Um sítio arqueológico localizado em terra indígena no município de São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro, no norte do Estado do Amazonas, vem sendo alvo de depredações e, possivelmente, de furtos para atender demandas de colecionadores ou de comercialização de gravuras rupestres (petróglifos) em outras regiões do país ou no exterior.
Em São Gabriel da Cachoeira (a 858 quilômetros de Manaus), 90% da população é indígena, pertencente a 23 etnias. Ali estão alguns dos mais relevantes sítios arqueológicos do Brasil, formados por rochas ribeirinhas, sazonalmente submersas, com gravuras rupestres com mais de 3 mil anos, segundo arqueólogos. Os indígenas consideram as áreas das gravuras rupestres um local sagrado e de forte relação com a sua cosmologia e ancestralidade.
[caption id="attachment_28611" align="aligncenter" width="600"] Petróglifos como este estão sendo alvos de depredação e até furtos (Foto: Ivani Faria)[/caption]As figuras ficam visíveis apenas na época da vazante do rio, cujo início acontece geralmente no mês de setembro (atualmente o local está submerso). Muitos dos desenhos rupestres estão documentados em publicações do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924).
As depredações foram denunciadas em documento enviado em março passado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pela Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn), mas até o momento o órgão federal não se manifestou.
A constatação de que o sítio arqueológico sofreu algum tipo de dano grave, propositalmente, para objetivos ainda desconhecidos ocorreu no final de 2012, época da “seca” do rio, quando uma equipe de professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), com sede em São Gabriel da Cachoeira, percebeu que camadas de pedras tinham sido removidas em um lugar conhecido como Itapinima, na região do rio Uaupés, afluente do rio Negro.
Um dos integrantes da equipe, o professor indígena da etnia tukano, Joscival Vasconcelos, fotografou a área onde teria ocorrido o furto e enviou as imagens para a direção do Ifam e para a Foirn.
Lajes removidas
A professora Roberta de Lima, integrante da equipe do Ifam, contou que ela e outros colegas estavam fotografando e identificando as gravuras para reconhecimento de marcos históricos da área. Quando chegaram às rochas, localizadas a meia hora de voadeira da sede do município de São Gabriel da Cachoeira, em uma área despovoada, depararam com as lajes removidas.
“Dois professores, entre eles o Joscival, viram que pedaços inteiros haviam desaparecidos. No lugar, estavam apenas umas partes brancas. A gente encaminhou o relatório para a diretoria do Ifam, que ficou de tomar providências. A nossa ideia era de que a Polícia Federal também investigasse”, disse Roberta.
Quase no mesmo período da visita da equipe do Ifam, Maiká Schwade e Ivani Faria, dois professores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que ministram aulas de Licenciatura Intercultural Indígena no município, também passaram pela área e constataram a depredação do pedral onde havia gravuras rupestres, como relata Schwade:
“No final do ano passado, quando descíamos da comunidade de Taracuá, a professora Ivani Faria pediu para o Rosilvado, piloteiro da voadeira, encostar no local onde estavam esses desenhos rupestres para me mostrar. Mas, antes mesmo de encostarmos, o piloteiro disse que os desenhos rupestres haviam sido roubados e que chegou a ver pessoas trabalhando no local quando foi pescar no rio Uaupés”.
Swchade conta que, ao chegar ao pedral, ele e Ivani perceberam a falta de “dezenas de peças”; apenas as que estavam próximas ao rio permaneciam intatas. “Acredito que os ladrões retiraram a primeira camada (uns 10 cm de pedra) em volta de cada desenho, como se tivessem retirado a casca de uma árvore. Você imagina a dificuldade de transportar isso, é muito peso e exige muito cuidado. Acreditamos que eles só não tiraram todas porque deviam estar submersas. Nossa preocupação é que eles aproveitem mais uma época de seca para roubar o restante”, diz Schwade. As rochas de Itapinima ficam a maior parte do tempo debaixo do rio Uaupés, e aparecem apenas a partir do 2o semestre.
Alertado pelos professores, o diretor do Ifam, Elias Brasilino, visitou a região e constatou os danos: “Depois que recebi um relatório decidi ir até o local. Realmente, um painel grande de pedra foi retirado. Os desenhos e os símbolos, que representam o cotidiano dos povos que ali viveram, sumiram. E era preciso uma ferramenta boa para fazer isso”, descreveu.
Agressão ao patrimônio e à cultura indígena
A arqueóloga Helena Lima, que trabalhou na região do Alto Rio Negro como professora, considera as depredações duplamente graves pois, além de destruir um patrimônio arqueológico, agridem a história e a cosmologia dos povos indígenas que habitam a área.
Em fevereiro de 2011, Helena visitou as rochas do rio Uaupés e não identificou depredação: “Estive no sítio de Itapinima. Ali tem grafismos impressionantes, é um lugar sagrado que fala da cultura de várias etnias. Aliás, toda a região do Alto Rio Negro tem sítios arqueológicos relevantes, embora poucas pesquisas sejam realizadas. As rochas possuem elementos da paisagem e da cultura e apresentam informações valiosíssimas sobre o passado dos índios da região. Se as depredações ou furtos estiverem ocorrendo mesmo é caso para a Polícia Federal investigar ou o Ministério Público Federal e não apenas o Iphan”, alertou.
Para o arqueólogo Raoni Valle, professor do Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), caso se confirme a depredação, será “mais um lastimável registro recente de vandalismo grave em sítios de arte rupestre no Amazonas”. Ele lembrou que, em março de 2011, o Iphan interditou o sítio arqueológico Gruta do Batismo, em Presidente Figueiredo (a 107 quilômetros de Manaus), após ele e outros arqueólogos identificarem que o painel principal de pinturas rupestres fora destruído.
Em entrevista concedida por e-mail, Valle disse que a diferença no caso do Alto Rio Negro é que ali se trata de uma terra indígena, portanto, um território menos exposto. Segundo ele as gravuras “são realmente muito antigas, indicadores paleoambientais indiretos sugerem que algumas podem ter 3.000 anos ou mais”.
Ainda sem resposta do Iphan
Há pouco mais de quatro meses, no dia 8 de março, a Foirn enviou um documento ao Iphan pedindo medidas de proteção ao local e denunciando a ocorrência de “vandalismos e depredações”. O documento destaca: “Os lugares localizados nas pedras com gravuras, segundo os mais velhos, existem desde a grande viagem da cobra canoa quando a humanidade se gestava. Por razões que desconhecemos, estas pedras vêm sendo alvo de vandalismo e depredação. Assim gostaríamos de solicitar especial atenção e proteção a estes lugares”. A “cobra canoa” faz parte da narrativa dos mitos de origem do povo indígena Tukano, o mais populoso do Alto Rio Negro.
No documento, a Foirn solicita o reconhecimento dos lugares sagrados indígenas como patrimônio cultural, já que são de suma importância para a história dos Tukano, “marcada nas pedras e petróglifos, nos paranás, na foz de rios que são afluentes do rio Negro, em localidades hoje consideradas cidades”. Segundo os indígenas, os lugares “constituem marcos importantes de nossa identidade, da formação e da reprodução de vida da região, pois foi nesses lugares que nossos ancestrais receberam os conhecimentos necessários para que nós, seus descendentes, transformados em gente, pudessem viver”.
Os índios ainda não receberam resposta do Iphan, mas, procurada pela Pública, a coordenadora de Conhecimentos Tradicionais Associados do Iphan, Ana Gita de Olliveira, respondeu por e-mail que soube das “mutilações pelas quais as pedreiras que contém tais desenhos estão passando”. Segundo ela, ao voltar de uma viagem pelo rio Negro, de Manaus a São Gabriel da Cachoeira, realizada em fevereiro e março deste ano, entregou a denúncia à diretora do Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI) do Iphan e “nada mais soube do assunto”.
A reportagem procurou o DPI por meio de a assessoria da imprensa do Iphan e durante mais de duas semanas reforçou o pedido de entrevista por e-mail e telefone, sem obter resposta. Também enviou, por email, o documento que a Foirn encaminhou ao órgão federal, mas não obteve resposta da assessoria.
Procurada, a superintendente do Iphan no Amazonas, Sheila Campos, informou que “não havia sido comunicada” da situação envolvendo as gravuras rupestres, mas que, tão logo “o Iphan em Brasília” lhe formalizasse a denúncia, iniciaria os “trâmites para as providências de vistorias na área”.