As desigualdades espaciais se fizeram visíveis

O mesmo modelo econômico centrado no aumento da renda e do consumo, que tirou 40 milhões de brasileiros da linha de pobreza entre 2003 e 2011 e fez o índice Gini cair, não gerou uma cidade melhor

O dilema dos excluídos é escolher que carência de infraestrutura mais lhe apetece: a vulnerabilidade das favelas ou a distância da periferia (Marcelo Camargo/ABr)
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O mesmo modelo econômico centrado no aumento da renda e do consumo, que tirou 40 milhões de brasileiros da linha de pobreza entre 2003 e 2011 e fez o índice Gini cair, não gerou uma cidade melhor Por Fernando Luiz Lara* Esta matéria faz parte da edição 125 da revista Fórum. Nas bancas ou compre aqui O País explodiu em protestos no início de junho e me deixou uma certeza: as desigualdades espaciais finalmente se fazem visíveis.  Quando comecei a escrever esta série, em março último, dizia que as formas de exclusão, quando materializadas no espaço, ganham uma dimensão subconsciente que as tornam mais teimosas, mais arraigadas. Trazer tais desigualdades à tona era o objetivo inicial desses textos que por ora se encerram. No entanto, o que alcançamos neste minifúndio impresso é irrisório diante da força de milhões nas ruas. O país gritou bem alto que, apesar de todos os avanços da última década, a desigualdade persiste a mesma, ou pior, no que diz respeito à mobilidade urbana. Antes de voltar no tempo e discutir ainda que brevemente a origem das favelas, vejamos como essa desigualdade se aplica nos dias de hoje. Excluídos dos centros urbanos onde se concentra a melhor parte da infraestrutura das cidades brasileiras (hospitais, escolas, bibliotecas, cinemas, repartições públicas e qualquer tipo de serviço especializado), a grande maioria dos brasileiros mora na periferia (60% ou mais dos domicílios). Ali, a desigualdade espacial se manifesta pelo tempo e pelo custo do deslocamento. Os 20 centavos são importantes, mas não tanto quanto as 20 horas semanais gastas no trajeto. Isto mesmo: duas horas de viagem antes e depois das oito horas ou mais de trabalho transformam o dia do trabalhador em uma jornada de 12 horas, no mínimo. Por semana, lá se vão 20 horas gastas dentro do ônibus, da van ou mesmo do carro. São 20 horas não gastas com a família, 20 horas não gastas ajudando os filhos no dever de casa ou levando-os para atividades extras. São 20 horas não gastas no lazer nem na ginástica, nem no bar. Melhorar a qualidade do transporte público implica melhorar radicalmente a qualidade de vida do trabalhador brasileiro. Mais do que isso, um transporte público de qualidade e barato (seja ele custo zero ou subsidiado pra valer, como fazem todas as grandes cidades do mundo) implica uma radical transferência de renda, porque todas as propriedades na periferia seriam valorizadas. [caption id="attachment_29971" align="alignright" width="360"] O dilema dos excluídos é escolher que carência de infraestrutura mais lhe apetece: a vulnerabilidade das favelas ou a distância da periferia (Marcelo Camargo/ABr)[/caption] E aqui chegamos à questão das favelas. Na falta de investimento em infraestrutura, as cidades brasileiras sempre conviveram com os excluídos no fundo do quintal. Afinal de contas, onde viveriam aqueles que fazem funcionar toda essa engrenagem? Lucio Costa já nos lembrava que a cidade brasileira não investia em infraestrutura porque a escravidão provia água, esgoto, força motriz e transporte. O antigo barracão dos empregados, muitas vezes alugado a terceiros, deu lugar a comunidades inteiras que sobreviveram justamente onde a terra não tinha valor imobiliário: nos morros ou áreas alagáveis.  O dilema dos excluídos é escolher que carência de infraestrutura mais lhe apetece: a vulnerabilidade das favelas ou a distância da periferia.  Ao longo do século XX, essa escolha tinha ainda o agravante de que as favelas podiam ser removidas a qualquer momento por sua fragilidade legal. Mesmo assim, cerca de 20 milhões de brasileiros preferiram investir em uma propriedade não protegida pela lei (na favela) à alternativa de ser dono de algo a quilômetros de distância dos equipamentos e das oportunidades. Pois bem, desde 1994, com o Favela-Bairro no Rio de Janeiro, iniciamos uma era de melhoria de infraestrutura nas favelas. O programa carioca, ele mesmo baseado em experiências pontuais anteriores, serviu de baliza para esta mudança de paradigma: a cidade assumindo a favela como sua parte integrante, participante e digna dos mesmos direitos que qualquer outro bairro. Naquele momento, as favelas consolidadas pelo Brasil afora já eram decentemente servidas por rede de água e eletricidade, mais baratas por serem instalações aéreas. Os problemas maiores são o esgoto e a acessibilidade. Instalar rede de esgotamento sanitário depois de consolidado o espaço construído implica cavar debaixo das salas e quartos das pessoas. A transformação de becos em ruas oferece a oportunidade de construção da rede de esgoto, ao mesmo tempo em que permite o acesso de veículos como a ambulância e a viatura policial, mas também o caminhão de lixo, o táxi e todo tipo de entrega. Aos românticos de extrema esquerda que veem na urbanização das favelas mais um capítulo do controle do espaço pelo capital, eu costumo pedir que imaginem como transportar uma geladeira 1.500 metros morro acima, ou como descer com a vovó a mesma distância quando ela passa mal.  Acessibilidade é sinônimo de inclusão, e a favela não escapa dessa lógica. O problema, como explicitado pelos protestos de junho, é o modelo de acessibilidade. O mesmo modelo econômico centrado no aumento da renda e do consumo, que tirou 40 milhões de brasileiros da linha de pobreza entre 2003 e 2011 e fez o índice Gini (medida de desigualdade) cair drasticamente de níveis alarmantes para um patamar próximo ao dos EUA (o que não é nenhuma maravilha, mas, enfim...), não gerou uma cidade melhor. Muito pelo contrário, a bolha imobiliária cresceu mais que a renda do trabalhador brasileiro e acabou funcionando como indutor de gentrificação. Moradia de baixo custo é moradia distante e não há melhoria de renda que suporte quatro horas por dias jogadas fora em deslocamento entre a casa e o trabalho. A indústria automobilística aproveitou muito bem o aumento da renda e, com apoios e subsídios de toda espécie, vendeu como nunca entre 2005 e 2010. Segundo o Ipea, “Entre janeiro de 2003 e de 2009, a inflação medida pelo IPCA aumentou 41,8%. Os preços da gasolina e do automóvel subiram bem menos: 27,5% e 19%. Em contrapartida, as tarifas cobradas dos usuários dos ônibus urbanos ficaram 63,2% mais caras”. O resultado é o caos viário que todos experimentamos diariamente com velocidades médias cada vez menores, apesar dos bilhões gastos em infraestrutura de trânsito. Os mesmos bilhões, se investidos em subsidiar e melhorar a qualidade do transporte coletivo, teriam um impacto significativo na qualidade de vida de todos. A equação é simples: quanto menos automóvel, mais metrô e ônibus mais rápidos, maior a eficiência da cidade inteira – o que teria um impacto enorme na qualidade de vida da classe trabalhadora. Esse me parece ser o grito das ruas em junho de 2013. Alimentado pelos absurdos cometidos em nome da Copa do Mundo, os brasileiros acordaram para o fato de que os mesmos processos de exclusão que vamos aos poucos desmontando em termos de renda, raça e orientação sexual (com um passo atrás para cada dois passos adiante) ainda persistem e insistem quando o assunto é acesso e direito a uma cidade melhor.  F *Fernando Luiz Lara é arquiteto e professor associado da University of Texas at Austin, onde dirige atualmente o Brazil Center no Lozano Long Institute of Latin American Studies. Escreve no blogue Urbanidades.