Thiago Melo, do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos, apresenta balanço histórico e defende o fim da polícia militarizada no Brasil
Por Marina Schneider, do Brasil de Fato
Uma das reivindicações que tem aparecido com frequência nas recentes manifestações populares ocorridas no Brasil é a desmilitarização da polícia.
Para o advogado Thiago Melo, do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), essa pauta ganha força porque a polícia não atende aos interesses públicos.
“A polícia está subordinada ao poder político e a uma lógica de Estado que lança mão de expedientes pouco democráticos para a gestão de conflitos sociais, seja no campo, seja na cidade”, afirma.
Brasil de Fato - Por que o DDH é a favor da desmilitarização da polícia?
Thiago Melo – As polícias militares no Brasil, constitucionalmente, são forças auxiliares do Exército e, por isso, subordinadas a uma visão militarista, de guerra, de combate ao inimigo, no caso, um inimigo interno. É uma instituição de 200 anos criada para garantir os direitos da Coroa Portuguesa e manter a ordem escravocrata. Durante a Ditadura Vargas, se orientou por impor a ética do trabalho que criminalizava as pessoas por serem “vagabundas”, por não trabalharem. Ou pautava-se pela criminalização política dos anarquistas e comunistas. Na ditadura militar, essa polícia ganha um sentido claramente de guerra a um inimigo interno, ao subversivo, àquele que estava em confronto com a ordem ilegal que imperava no Brasil.
O povo é considerado o inimigo interno?
Na virada para a democracia, a ideia do inimigo público migrou para o combate a essa figura que é muito pouco delimitada que é o traficante de drogas. Com a guerra às drogas, esse militarismo chega nas favelas, e se intensifica o tratamento discriminatório e violento contra as classes populares. Não que já não existisse. Esta é uma marca de toda a história brasileira, mas ganha o reforço com a ideia de combate às drogas. É uma polícia que não está a serviço do cidadão, mas que existe para a defesa do Estado.
E por que um exército?
Pensou-se: “precisamos ter um exército grande e não queremos remunerar muito. Onde a gente vai recrutar essas pessoas?” Nas próprias camadas populares. Para isso, é necessário incutir nessas pessoas uma retribuição que não seja uma retribuição salarial – porque para isso não havia disposição. É uma coisa mais simbólica: incutir nessas pessoas um não pertencimento às classes populares, ou seja, elas se entendem como um corpo à parte na sociedade, têm uma autoimagem vinculada a uma ideia de honra, de disciplina.
A ideia de poder também faz parte da auto-imagem dos policiais?
Sim. Isso os diferencia de pessoas que são entendidas como “sem poder”. Esses traços de distinção foram os escolhidos para organizar a repressão do Estado. A ideia da desmilitarização é a ideia de romper com essa tradição de organização da segurança pública no Brasil. É fazer uma ruptura com isso e formar uma polícia que atenda às demandas do cidadão, que não veja a manifestação e a mobilização como algo que contraria o Estado, que agride o Estado, mas como algo importante para a política. O conflito em si não é algo que tem que ser reprimido. É algo que sempre aconteceu e sempre acontecerá. Não é papel da polícia entender o conflito como algo negativo.
Mas você acha que é possível mudar isso no Brasil?
É possível mudar. Não existe justificativa para uma polícia que não atenda os interesses públicos. Essa polícia que hoje existe é atrelada a uma visão de subordinação ao poder político, de subordinação a uma lógica de Estado que lança mão de expedientes pouco democráticos para a gestão de conflitos sociais, seja no campo seja na cidade. Não há nada que justifique a polícia como ela está. O modelo hegemônico no mundo é o modelo de uma polícia não militarizada. Esse padrão de segurança pública é absolutamente não civilizado e colonial. É um padrão de Estado de exceção.
(Foto: Rafael Martins/AGECOM)