A Agência Pública e o Diário do Pará trazem as histórias de dez mulheres cujas vidas estão ameaçadas por lutarem pelos seus direitos e pela preservação da floresta. Conheça a história das duas primeiras personagens da série de matérias
Por Ismael Machado, da Agência Pública
[caption id="attachment_26561" align="aligncenter" width="600"] Cruz sinaliza o local da morte de Dorothy Stang (Foto: Antonio Cícero)[/caption]Nas diversas placas de sinalização ao longo das rodovias que ligam os municípios do sudeste e do sul do Pará, raras são as que não ostentam marcas de balas. Atirar nas placas pode ser o insuitado passatempo de quem trafega por aquelas estradas, sem maiores consequências. Mas as marcas também sinalizam muito do espírito que sempre marcou a colonização daquela parte do estado, pivô de conflitos agrários, assassinatos de lideranças rurais e número um em índices de desmatamento e trabalho escravo.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocorreram no estado do Pará, entre 1964 e 2010, 914 assassinatos de trabalhadores rurais, religiosos e advogados por questões de terra. Desse total, 654 ocorreram no sul e sudeste do Pará. “Muitos dos trabalhadores rurais assassinados, não conhecemos os rostos e nem sabemos os seus nomes. Em muitos desses casos a polícia negou o registro das denúncias formalizadas por sindicalistas e familiares das vítimas, e negou também o resgate dos corpos onde foram assassinados”, diz o advogado da CPT em Marabá, José Batista Afonso.
A CPT divulgou no início do ano uma lista com o nome de 38 pessoas ameaçadas de morte no sul e sudeste do Pará por causa de sua luta pela posse da terra. Dez são mulheres.
Num dossiê que esmiuça a violência no sul e sudeste do Pará, a CPT avalia a violência que vitimou centenas de trabalhadores rurais, dirigentes sindicais, religiosos, advogados e parlamentares que lutam pela terra e pela reforma agrária, remonta principalmente o governo militar que, no início da década de 1970, começou a investir na ocupação da Amazônia. O sul e sudeste do estado do Pará, região de expressiva concentração de riquezas minerais e naturais, foi talvez onde esse processo se efetivou de maneira mais contundente.
Para explorar as riquezas, o governo construiu estradas, como a Transamazônica, a BR-222, a BR-158, mas construiu também hidrelétricas, como Tucuruí, e estimulou e financiou a implantação de grandes projetos para explorar as riquezas ali existentes, como o Projeto Ferro Carajás. “Ao mesmo tempo incentivou a vinda de grandes empresas e pecuaristas do Centro-Sul do Brasil para investir na criação de gado bovino. Não só concedeu terras, mas créditos subsidiados pela política de incentivos fiscais da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Esses grupos econômicos, especialmente aqueles que investiram na implantação da pecuária extensiva passaram a expulsar, de forma muito violenta, os povos indígenas e diversos pequenos agricultores que há muito tempo ocupavam da região”, enfatiza o dossiê da CPT.
A novidade da violência atual é que as mulheres estão cada vez mais na linha de tiro, alvo de ameaças. Algumas convivem com essa marca há mais de uma década. Outras começaram a sentir mais recentemente o peso da sina de estarem marcadas para morrer.
Em comum, essas mulheres carregam a consciência da luta que travam; sentem medo, modificaram hábitos, convivem com a incerteza cotidiana. Houve quem decidisse se afastar da luta sindical, com medo das ameaças cada vez mais constantes. Outras permanecem, sabendo ser esse o destino a seguir.
Uma das poucas que conseguiram alguma atenção nacional para o seu périplo foi Laísa Santos Sampaio. Irmã da extrativista Maria do Espírito Santo, assassinada em Nova Ipixuna, a 580 quilômetros de Belém em 2011, Laísa é o “alvo da vez” no município. Ela e o marido, José Maria Gomes Sampaio, o Zé Rondon, estão sendo ameaçados de morte desde o assassinato de Maria e José Cláudio Ribeiro da Silva. Laísa já não dorme tranquilamente e não pode sair de casa sem acompanhamento. A rotina pessoal mudou, desorganizando toda sua família, a relação com os filhos e o trato da lavoura e do extrativismo dentro do seu lote de terra. A Comissão Pastoral da Terra acredita que as ameaças têm sido feitas por pessoas que provavelmente fizeram parte do consórcio de proprietários de terras, madeireiros e carvoeiros que assassinou José e Maria. As ameaças de morte foram registradas na Delegacia de Conflitos Agrários do Sudeste do Pará (DECA). Pouco mudou.
“Não saio mais desacompanhada”, diz Regina Maria Gonçalves Chaves. Regina é presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Eldorado dos Carajás. No dia 15 de junho de 2012 um grupo de fazendeiros invadiu a sede do Sindicato e a ameaçou diretamente. “Deixaram um recado: estariam com grupos armados à espera de qualquer tentativa de ocupação por parte dos movimentos sociais”, diz ela. Dias depois, pessoas estranhas foram vistas rondando a sede do sindicato e à procura de Regina na casa dos familiares dela.
Em Breu Branco, próximo ao município de Tucuruí, a 480 quilômetros da capital, Graciete Souza Machado convive com uma bala alojada a apenas dois centímetros da coluna vertebral. O alvo era o pai, Francisco Alves de Macedo, líder comunitário que defendia posseiros que ocuparam a fazenda Castanheira. Francisco Alves foi morto por pistoleiros “Eu sou ameaçada de morte desde 2010. Não temos liberdade para sair de casa com nossas crianças. Vivemos totalmente inseguros e com muito medo, pois a qualquer momento, como aconteceu com o meu pai, pode acontecer comigo. Tenho muito medo”, diz ela.
Mudam as personagens, mas as histórias são semelhantes.
“As mulheres se tornaram lideranças que acabaram tomando à frente da luta, muitas vezes são responsáveis pelo sustento da família”, diz a advogada da Comissão Pastoral da Terra, Vânia Maria Santos, 29 anos. Ela atribui a continuidade dos padrões de violência à impunidade. “Da ameaça à concretização é pouca coisa”, diz ela.
Nos assentamentos, acampamentos, periferias dos municípios, nas entidades sindicais, uma dezena de mulheres segue sua vida, à espera do assassino, cumprindo pena forçada. É a história delas que a Pública, em parceria com o jornal Diário do Pará, conta a partir dessa semana.
Maria Joel da Costa herdou a luta e as ameaças de morte
Viúva, ela virou presidente do sindicato e passou a denunciar o trabalho escravo nas fazendas de Rondon do Pará [caption id="attachment_26559" align="alignleft" width="300"] (Foto: Antonio Cícero)[/caption]
A camisa relativamente folgada deixa transparecer a pistola. O homem que vem abrir o portão e olha antes para os dois lados da rua quase deserta tem as atenções voltadas 24 horas por dia para a moradora da casa. É um dos seguranças de Maria Joel Dias da Costa, conhecida pelos amigos como Joelma. Em Rondon do Pará, distante 532 km da capital Belém, no sudeste do estado, a história de Maria Joel é conhecida por quase todos. Ela é a viúva do sindicalista José Dutra da Costa, o “Dezinho”, assassinado em Rondon do Pará em 21 de novembro de 2000, a mando, segundo as investigações policiais, dos fazendeiros Décio José Barroso Nunes e Lourival de Sousa Costa. Dezinho era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará e começou a lutar pela regularização das terras consideradas improdutivas visando a reforma agrária.
Depois da morte de Dezinho, Maria Joel assumiu a direção do sindicato em substituição ao marido. Continuou apoiando a luta das famílias sem terra pela desapropriação dos latifúndios improdutivos e a arrecadação das terras griladas no município. O mesmo grupo que teria feito um possível consórcio para matar José Dutra passou a ameaçar também Maria Joel.
É uma mulher pequena, de voz mansa e calma. Os cabelos são partidos ao meio e presos atrás, típico de mulheres evangélicas. Na parede da sala que emenda com a cozinha há a foto de Dezinho e outra, com a família toda reunida. Há três anos Maria Joel assumiu a coordenação da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) em Marabá. Continua morando em Rondon do Pará, mas diminuiu as atividades no sindicato local por conta da instabilidade gerada na própria vida.
Entre maio e junho deste ano, Maria Joel teve dias novamente tensos, com a ordem de despejo de agricultores da fazenda Água Branca, onde está situado o acampamento Raio de Luz. Há seis anos 64 famílias ocupam a fazenda de pouco mais de 60 hectares, o equivalente a 60 campos de futebol. “A polícia veio para fazer o despejo, foi muito tenso, muita batalha, estivemos na iminência de um confronto de graves proporções”, relata Maria Joel. O confronto só não se concretizou porque o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará e a Comissão Pastoral da Terra obtiveram uma liminar judicial suspendendo o despejo no dia em que ele ocorreria. Mas a tensão permanece.
Atualmente existem três acampamentos à espera de regularização em Rondon do Pará. O maior e mais antigo é o da fazenda Santa Mônica, com 104 hectares e ocupado há dez anos por 58 famílias. Maria Joel não abre mão de acompanhar todos eles; tem sido assim desde que uma bala atravessou o seu caminho.
Do maranhão ao Pará
Maria Joel chegou a Rondon do Pará em 1984, vinda do Maranhão, em mais uma trajetória típica de migrantes atraídos pelas promessas de terras abundantes no Pará e de trabalho. Desde os anos 70 os governos federal e estadual atraíam direta e indiretamente esses migrantes. Quatro anos antes, seus pais haviam se mudado do Maranhão a Rondon, atrás de terras. “Aqui se pega dinheiro é com as mãos”, exagerou a mãe de Maria Joel, incentivando a mudança da filha. O marido José Dutra estava desempregado em São Luís, capital maranhense, quando o convite bateu mais forte. Então a família bandeou para Rondon do Pará.
Maria trazia nas mãos, além da pouca bagagem, uma filha de dois anos e outro de 15 dias. E foi mais de um dia de viagem entre asfalto e estradas de chão batido. Maria estranhou a terra que encontrou. “Um barro vermelho que eu não conhecia, cheio de poeira, muitas casas de madeira, cobertas não por telhas, mas por madeira também. As estradas eram ruins, o mato fechava tudo, havia muito pasto, muito gado”.
A terra prometida parecia cumprir pouco. Havia muitas serrarias, muitas madeireiras e muita pecuária. E muita gente pobre na periferia. Não havia terra para todos, e a agricultura era difícil. Muitos migrantes corriam aos garimpos, como o de Serra Pelada, não muito distante de Rondon do Pará. “Deus do céu, chorei muito nos primeiros tempos”, lembra Maria Joel. Três irmãos dela foram trabalhar em serrarias. Trabalho pesado, longe das promessas maternas. “Foi tudo ao contrário do que minha mãe falou. Meu marido foi trabalhar em serraria, o jeito era encarar, não podíamos ficar passando fome”.
E muita gente continuava a chegar. Conterrâneos em busca de trabalho. Na casa de José e Maria, chegaram a ficar 32 pessoas espremidas em cômodos apertados. Derrubar mata era a prioridade em Rondon do Pará no início dos anos 80, mas muitas empreitadas não eram pagas ao final. Quem se rebelava podia morrer. “Se matava muita gente”, diz Maria. “Os pistoleiros andavam armados na rua, sem se importar com nada, ostentando mesmo”.
Dezinho trabalhou quase três anos em serrarias. Até que um vizinho cedeu uma terra para ele trabalhar na zona rural de Rondon. Voltou a trabalhar no roçado, atividade à qual estava acostumado desde criança. Nos dois anos seguintes travou contato com pessoas ligadas ao incipiente sindicato de trabalhadores rurais que começava a surgir para tentar brecar a violência contra os agricultores. “Ele se ligou ao PT e começou a se envolver nas questões da terra”, lembra Maria Joel.
Com a demanda de assentamentos vieram as ameaças
Na década de 90 Dezinho já era uma liderança naturalmente reconhecida. Em 1990 tornou-se conselheiro fiscal do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Três anos depois assumia a presidência do sindicato. Dezinho começou a observar as terras improdutivas e as que poderiam ter função social. Começou a cobrar das autoridades a criação de assentamentos para reforma agrária. “Foi aí que começaram os conflitos”, diz Maria Joel. Ele chegou a escapar de três emboscadas. Passou a andar sempre protegido por companheiros do sindicato. Denunciava as ameaças. Confrontava fazendeiros.
Em casa, Maria Joel chorava e orava. “Todo mundo da família era contra o envolvimento dele com essas coisas do sindicato. No começo foi difícil eu mesma aceitar”, diz.
Foram sete anos de ameaças e emboscadas. A situação chegou a um ponto em que os próprios policiais militares escalados para fazer a proteção de Dezinho mancomunavam-se com os pistoleiros. Numa manhã, enquanto ia para o sindicato ladeado por um PM, Dezinho notou que ele fez um sinal a um pistoleiro que passava em direção contrária, sinalizando estar com a arma descarregada. O movimento intenso na rua naquele momento impediu o assassino.
Em 1997 Dezinho precisou passar um tempo fora de Rondon por conta das ameaças.. Ficou seis meses entre Belém e o município de Bragança, distante 228 km da capital, no nordeste paraense. Quando retornou, reassumiu as funções de liderança sindical. Mais ainda: foi eleito vereador. E se tornaria, certamente, presidente da Câmara Municipal, devido à sua popularidade. Recebeu um telefonema certa tarde avisando: ele não passaria o Natal com a família. Dias depois, um pistoleiro foi assassinado. O irmão dele procurou Dezinho e informou que havia sido queima de arquivo. O pistoleiro havia desistido de matar José Dutra e foi ‘apagado’. Mas quinze dias depois da ameaça telefônica, a promessa foi cumprida.
Maria Joel passa uma pequena toalha rosa no rosto antes de iniciar o relato da morte do marido. Oferece café, depois água. Fica em silêncio alguns segundos. “Era de noite, umas 19 horas. Bateram na porta, fui atender e era um jovem, sem características que parecesse um pistoleiro. Ele criou toda uma história de uma avó que precisava ajeitar uns documentos para receber uma pensão. Sentou no sofá do meu lado, pediu água”.
Convencida das boas intenções do rapaz, Maria mandou a filha caçula chamar o marido, que jantava na casa de um vizinho, conterrâneo maranhense. Alguns minutos depois o pistoleiro observou que Dezinho estava demorando e disse que iria comprar cigarros, depois voltaria. Encontrou o sindicalista quase na porta da casa. Maria Joel ouviu quando ele começou a contar a mesma história de antes. Entrou, fechou a porta e ouviu o disparo. E o mundo não foi mais o mesmo.
Diante da impunidade, Joelma abraça a causa do marido assassinado
Maria Joel pôde ver o companheiro agarrado ainda ao pistoleiro, os dois caindo numa vala, o sangue começando a espalhar-se pelo corpo de Dezinho, o pistoleiro tentando fugir, sendo agarrado pelos vizinhos, a tentativa de linchamento. Teve frieza para impedir a morte do pistoleiro. “Eu não deixei, porque queria saber quem tinha mandado matar meu marido”.
A partir daí essa se tornou a luta maior de Maria Joel. Passou a acompanhar todo o desenvolvimento das investigações sobre a morte do esposo. Preso em flagrante, Wellington de Jesus Silva, o pistoleiro, disse que havia recebido 2 mil reais e um revólver para executar o líder sindical. As investigações levaram até o fazendeiro José Décio Barroso Nunes, o Delsão. Testemunhas ouvidas pela Polícia disseram que o fazendeiro já havia encomendado a morte de Dezinho anteriormente a outro pistoleiro, o mesmo que acabou assassinado pouco antes de José Dutra.
O pistoleiro foi condenado num primeiro julgamento, em novembro de 2006. Teve direito a um novo julgamento, por conta de a pena ter ultrapassado a 20 anos. Quatro meses depois iria novamente a julgamento e a pena se repetiria, 29 anos de reclusão em regime fechado. No mesmo ano, recebeu a progressão de regime prisional para o semi-aberto em razão do cumprimento de mais de 1/6 da pena. No dia 18 de dezembro de 2007, menos de dois meses depois de concedida a progressão, Wellington de Jesus teve autorização da Juíza da Vara de Execuções Penais de Belém, Tânia Batistello, para passar o final de ano fora da prisão. Nunca mais retornou. Há um mandado de captura expedido desde janeiro de 2008, mas nunca cumprido.
Acusados de serem intermediários do crime, Ygoismar Mariano e Rogério Dias tiveram prisões preventivas decretadas, mas nunca foram presos. O acusado de ser mandante do crime, José Décio Barroso Nunes, responde o processo em liberdade e não há qualquer previsão de quando vai a júri popular.
Mas Maria Joel não se intimidou. Dois anos depois da morte do marido assumiu o sindicato. Começaram a chegar os recados. “Diziam para eu sair, ir embora. Eu disse que iria ficar e cobrar o que aconteceu. Assumi os trabalhos do Dezinho e a luta por justiça”, diz.
Às vezes olhava para a rua e via um homem parado em frente à casa, observando. Em outras ocasiões, uma caminhonete de vidro escuro rondava. Parava na frente, a janela do veículo era aberta e um desconhecido a encarava. Por duas vezes um pistoleiro entrou na sede do sindicato, mas a quantidade de pessoas impediu que o crime fosse adiante.
Isso porque, como o esposo, Maria Joel passou a denunciar o trabalho escravo nas fazendas de Rondon do Pará. Fazendeiros foram multados e o telefone do sindicato passou a ser o emissário das ameaças. Uma delas foi cumprida. “Disseram que iriam matar uma pessoa próxima a mim. Fiquei maluca, achando que era um de meus filhos. Era um diretor do sindicato”.
Ribamar Francisco dos Santos foi assassinado em 2004. “Foi um baque muito grande”, diz Maria Joel. “Ribamar era um dos grandes companheiros e conselheiros que eu tinha”. As constantes ameaças recebidas por Maria José têm sido encaminhadas para a Secretaria de Segurança Pública do Pará e já resultaram na abertura alguns inquéritos policiais, mas nada que tenha resultado em punições efetivas.
O Programa de Defensores de Direitos Humanos tem garantido proteção permanente a Maria Joel. São dois agentes que permanecem 24 horas cuidando da sua segurança. Ela já se acostumou, mas sabe que é uma prisioneira da vida que leva.
A morosidade da justiça do Pará em julgar os mandantes do crime motivou o ingresso perante a Organização dos Estados Americanos (OEA) de um processo contra o Estado brasileiro. O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em 2004, por intermédio de uma ação conjunta da ONG Justiça Global e da Comissão Pastoral da Terra de Marabá. A OEA reconhece que há indícios claros de que agentes do Estado dificultaram deliberadamente a responsabilização dos mandantes e intermediários do crime.
Maria Joel Dias da Costa ainda espera por justiça. Viu que os caminhos trilhados por ela e pelo marido renderam frutos. A filha mais velha se elegeu vereadora pelo PT. Assim luta pela posse da terra tornou-se missão para Maria. “Ainda estou de pé. Aos 50 anos ainda não me curvaram. Nem irão”, diz na mesma voz mansa de sempre.
Laísa luta pela terra e pela memória da irmã
Irmã de Maria, assassinada junto com Zé Cláudio, diz que o julgamento dos acusados foi pior que o assassinato: “Estão selando três caixões” [caption id="attachment_26560" align="alignleft" width="300"] (Foto: Antonio Cícero)[/caption]
Na periferia de Marabá, cidade no sudeste do Pará, o projeto inicial para a localização de ruas e casas previa o formato de uma castanheira, com um grande caule e as folhas apontando para diversas direções. Seria uma forma de homenagear a árvore símbolo das primeiras ocupações em Marabá e adjacências. Como é costume ocorrer, o planejamento piloto original descambou para um amontoado de casas, vielas e becos, com o inchaço populacional aglomerando mais e mais pessoas em áreas quase insalubres. É num labirinto de ‘folhas’, quadras e lotes em Nova Marabá que Laísa Santos Sampaio passa a maior parte dos dias, ao lado de alguns dos 12 filhos – quatro biológicos, os outros adotados – e quatro cachorros pequenos que recolheu das ruas. Tem sido assim desde a manhã de terça-feira, 24 de maio de 2011.
Naquele dia, dez anos de ameaças foram cumpridas. O casal extrativista José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, do Projeto de Assentamento Praia Alta/Piranheira, no município de Nova Ipixuna, equilibravam-se em uma moto na tortuosa e lamacenta estrada de terra que liga o assentamento ao centro de Nova Ipixuna, também sudeste do Pará, quando foram surpreendidos por tiros vindos da mata.
José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo foram tocaiados quando passavam de moto numa estradinha de terra que ligava o centro do município de Nova Ipixuna a casa deles. Ele teve a orelha cortada, talvez para indicar que o crime havia sido executado. Arrastados, os corpos ficaram à beira da estrada durante horas.
Dois anos depois, o crime foi a julgamento. Apenas o autor dos disparos, Alberto Lopes do Nascimento e o ajudante dele Lindonjonson Silva Rocha foram condenados. Nascimento recebeu pena de 45 anos em regime fechado. Rocha, 42 anos e oito meses. O principal acusado de ter sido o mandante do crime, José Rodrigues Moreira, recebeu absolvição.
Selando o terceiro caixão
Irmã de Maria do Espírito Santo, Laísa recebeu o resultado do julgamento quase como uma sentença de morte. Aos 47 anos, sabe que a própria vida está em grave risco. As ameaças ao casal assassinado estenderam-se a ela também. “Eu defino o final do julgamento como o pior dia da minha vida”, diz ela na sala da casa quase sem decoração em Marabá. “O julgamento foi pior porque no dia do assassinato ninguém sabia de nada. Só sentimos a dor. Quando chega na Justiça e o resultado é o que se viu, é muito mais forte que o dia do assassinato. Estão selando três caixões”, diz.
Isso que Laísa Santos Sampaio e o marido, José Maria Gomes Sampaio, o Zé Rondon, estão sendo ameaçados de morte desde o assassinato. As ameaças vêm de pessoas que provavelmente fizeram parte do consórcio dos proprietários de terras, madeireiros e carvoeiros que assassinaram o casal.
Professora no projeto de assentamento, Laísa teve que alterar drasticamente a rotina. Quando vai até Nova Ipixuna, precisa avisar a polícia. Uma viatura a acompanha. Em casa, evita ficar; e sozinha também não sai de casa. Em Nova Ipixuna, recusou proteção porque “só existe uma viatura no município, não tem como eu ficar querendo que ela cuide só de mim”.
O lote de Laísa e Zé Rondon fica a 50 km do centro do município de Nova Ipixuna. Área de antigos castanhais, cada vez mais raros. O marido permanece lá. No projeto de assentamento, ele coordena o Grupo de Trabalhadores Extrativistas, fabricantes de produtos retirados diretamente do que a floresta oferece: sabonetes, óleos, fitoterápicos, cremes. Os produtos foram testados e aprovados pela Universidade de São Paulo, uma prova concreta da possibilidade de outros usos para a mata, além da extração ilegal de madeira e das carvoarias.
No momento da entrevista, Zé Rondon liga; no curto diálogo Laísa diz estar bem, falando com jornalistas.
Só depois do assassinato da irmã e do cunhado de Laísa, devido à forte repercussão que o caso teve no Brasil e no exterior, o Ibama desencadeou uma operação no assentamento para destruir fornos de fabricação de carvão e fechar as sete serrarias clandestinas localizadas no município. A partir daí, as ameaças a Laísa aumentaram. Um cachorro seu foi baleado. E um pequeno memorial de homenagem aos parentes assassinados, no justo local da emboscada, amanheceu um dia cravado de balas.
Uma trajetória de migrações e conflitos
A violência não é tão estranha à família de Laísa, desde que o pai largou o Maranhão atrás de uma terra prometida pelo governo militar no início dos anos 70. Vieram para trabalhar na agricultura, mas o pai, como num inventário das atividades típicas da região, arriscou ser castanheiro e garimpeiro. Chegaram como agregados na terra de um conhecido. Terra era artigo barato no period, e logo a família conseguiu 20 alqueires de terra, próximo à rodovia PA-70, em São João do Araguaia.
Época de guerrilha, confrontos de militares e militantes do PCdoB. Tempo de toque de recolher, medo e prisões. Mesmo assim, havia confiança e esperança aos migrantes chegados ao Pará. O pai de Laísa conseguiu a terra dando de entrada uma máquina de costura Vigorelli. Terminou de pagar com a colheita da primeira produção de arroz.
“Eu tinha oito anos e muito medo de sair de casa, porque meu pai falava dos ‘terroristas’. Ele dizia ‘tevorista’. Meu pai defendia os militares. É engraçado, porque o pai do meu companheiro escondia guerrilheiros. Minha mãe sempre lembrava uma fala do Padre Cícero, dizendo que no final dos tempos apareceriam os que iriam tomar a terra dos outros. Meu pai achava que os guerrilheiros iam fazer isso”.
A história e as histórias de migração no Pará, principalmente a partir da implantação da ditadura militar, refletiram-se em projetos grandiloqüentes e incentivos a práticas de monocultura. Madeireiras e fazendas de boi tiveram todo o apoio oficial para se instalar no sul e sudeste do estado. Ao mesmo tempo, homens sem terra principalmente do nordeste, eram incentivados a fincar os pés na ‘terra de leite e mel’, como a Amazônia era alcunhada na propagando oficial.
Mas a história de violência na região vem de antes. Desde o desbravamento feito nas matas do sul Pará com os ciclos de castanha e garimpos de diamante e ouro, a bala fez parte da abertura de caminhos.
Meio século atrás, o projeto de assentamento Praia Alta/Piranheira não passava de uma extensa área de castanhais, onde moravam índios da etnia Gavião. Foram aniquilados por gente como Coriolano de Sousa Milhomem, o Coriolano, nome lendário em Marabá por ser considerado um dos maiores exterminadores de índios na região. Tinha como companheiro um homem chamado Argemiro que, reza a lenda, alimentava os cachorros com fígado de índios mortos por ele. Foram esses ‘desbravadores’ que expulsaram os Gavião e começaram a dividir os lotes de terra.
O pai de José Cláudio Ribeiro adquiriu um lote de um homem que havia comprado a terra diretamente de Argemiro. Em 1991, uma pesquisa sócio-econômica feita na região por um órgão do Governo Federal constatou a forte presença ainda de castanha, açaí e cupuaçu. Com esses dados em mãos, entidades como a Comissão Pastoral da Terra e Fetagri iniciaram a ideia de implantar um projeto extrativista que utilizasse os recursos florestais sem desmatamento. em 1997 o projeto implantado. As terras não eram mais devolutas.
José Cláudio e Maria estavam entre os contemplados no projeto, e Zé Cláudio tornou-se presidente da associação que congregava os extrativistas. “Foi quando Maria disse que ‘nasceu’ para o movimento social”, lembra Laísa. Começaria a luta contra os fazendeiros, pois cinco grandes áreas haviam sido ocupadas por fazendas. Três foram logo desocupadas pelo Incra, num intenso processo de negociação. Mas foram o estopim para que as tensões fossem acumuladas gradativamente.
Em 2005 a área do projeto passou a ser alvo de invasões para a retirada clandestina de madeira. Os próprios assentados também começaram a vender madeiras nobres que ainda existiam na mata. Os conflitos ganharam proporções maiores quando entraram em cena as carvoarias. “Os madeireiros ainda deixam o resto da floresta, mas as carvoarias destroem tudo”, diz Laísa.
Mais enfrentamentos, mais inimigos. Zé Cláudio e Maria passaram a receber repetidas ameaças de morte. Em 2001 Laísa também adquiriu um lote no projeto e, convidada por Maria, passou a lecionar na escola multidisciplinar do assentamento. O nome da escola foi uma ideia de Maria do Espírito Santo: em vez do nome anterior, Costa e Silva, conseguiu mudá-lo para Chico Mendes.
Foi numa manhã de 2003 que Laísa sentiu que a irmã realmente poderia vir a ter um final trágico. No barracão da escola cuja parede chega até a metade da altura, enquanto lecionava, Laísa percebeu a moto se aproximando. O uso de capacetes, algo incomum nas estradas de terra dos municípios paraenses, chamou a atenção. A camisa larga do homem à garupa também. “Professora, não vai que é pistoleiro”, alertou um aluno. “Eu fui falar com eles. Era tudo ou nada. Dei bom dia e eles perguntaram pela Maria do Espírito Santo. Eu disse que ela não estava por lá, mas como nosso tom de voz era parecido, deu para perceber que eles achavam que talvez eu pudesse ser ela. Ficaram fazendo perguntas para ver se eu entrava em contradição”. O condutor da moto ficava acelerando, enquanto fixava os olhos em Laísa. “Diga ao Zé Cláudio que a gente volta no sábado”, avisaram antes de partir.
Ao saber, Zé Cláudio disse que estaria esperando.
A morte avisada
Oito anos depois, em 24 de maio de 2011, a morte anunciada se fez cumprir. Laísa lembra: “Eram oito horas quando o ônibus parou e a servente da escola veio com as mãos na cabeça, dizendo ‘ele acabou de morrer, é o Zé Cláudio’. Não sou de chorar, mas fiquei tremendo. Pedi carona de moto pra um aluno e fui até o local. O primeiro que vi foi o corpo do Zé Cláudio. Eu acho que tentava me enganar, porque achava que a Maria não tinha morrido. Vi uma poça de sangue na frente do corpo do Cláudio, mas não era dele. ‘Cadê ela?’, perguntei. Aí virei e vi o pé dela”.
“Foi assassinato. Tua irmã está morta”, ouviu não sabe de quem. “A sensação de desamparo foi grande, mas na hora pensei: ‘tinha de ser assim. Dois meses antes ela tinha me dito que se encontrasse um pistoleiro queria que ele a matasse primeiro para não ver o Zé Cláudio tombar”.
A partir daí, Laísa relata que “tudo de ruim” passou a ocorrer. Ela e o marido começaram a receber recados. Pessoas de dentro do assentamento que conheciam os que viriam a ser acusados avisavam que ela devia tomar cuidado. “A gente não recuou, mas o pessoal do assentamento pedia para que me calasse, que eu iria acabar como minha irmã”.
Teve de sair do assentamento, passou sete meses em Marabá. Depois desse período voltou ao lote. Retornou às aulas, sem saber se voltaria para casa ao fim de cada dia. Vivia sob tensão. Um dia, uma aluna perguntou se ela não podia deixar de se locomover de moto no trajeto, pelo menos uma vez. “Perguntei por que e ela disse que depois eu iria saber”. No dia seguinte, Laísa saiu de casa às quatro da manhã, “antes que os pistoleiros acordassem”.
A organização Anistia Internacional soube da situação de Laísa Sampaio, e ela entrou no Programa de Proteção de Defensores Humanos. Sempre que precisa se deslocar a algum lugar mais distante, como o próprio assentamento, é acompanhada por policiais. Em casa recusou a proteção permanente por achar que ‘isso não é vida’.
Nada que a deixe tranquila. Mas Laísa não se abate. Ainda em 2011 teve uma surpresa indesejada: descobriu um aneurisma no lado esquerdo do cérebro. Especialistas em Belém e Recife, ao analisarem os exames, chegaram à mesma conclusão. Uma intervenção cirúrgica poderia produzir sequelas como cegueira, sem que as chances de cura do mal chegassem a 40%.
Laísa segue em frente. É ativa em casa e no assentamento. Organiza as mulheres extrativistas, assume a linha de frente que pertenceu à irmã. Sabe que o tempo pode ser pouco para tanta coisa que precisa fazer ainda. “Em 2012, passei o ano correndo da morte. Em 2013 estou correndo em busca da vida. Sei que diante das ameaças e de tudo o mais tenho que ter fé e coragem”, diz. “Nesse momento só tenho a fé”.
A série Marcadas para Morrer é uma parceria da Agência Pública com o Diário do Pará, com reportagem de Ismael Machado e fotos de Antonio Cícero.