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A ideia da volta do sorteio na política vem ganhando fôlego e surpreendendo muitos daqueles que num primeiro momento desconfiam desse saber profano
Por André Rubião
As recentes manifestações deixaram claro que os cidadãos não confiam mais no modelo político atual. Reivindica-se uma democracia radical, com uma política de baixo para cima e novos espaços institucionais. Nesse contexto, é interessante retomar uma afirmação de Aristóteles que identifica o uso do sorteio na política com a democracia e a eleição com a oligarquia. Essa frase nos parece estranha: primeiro porque a modernidade transformou os políticos, indicados pelo voto, no paroxismo do regime democrático; segundo porque poucas sabem o que significou o uso do sorteio na antiguidade e o que essa ideia traz de novo no mundo contemporâneo. Seria uma alternativa para a crise de confiança no modelo político atual?
[caption id="attachment_26690" align="alignright" width="336"] Para Aristóteles, o sorteio era a forma mais democrática, já que qualquer cidadão podia exercer um cargo no poder[/caption]
Na Grécia Antiga, havia três formas de se ingressar no poder: por eleição, por indicação e por sorteio. Isso mesmo, os cidadãos podiam ser escolhidos, de forma aleatória, para exercer cargos transversais ao que hoje chamamos de Legislativo, Executivo e Judiciário. Para Aristóteles, o sorteio era a forma mais democrática, já que qualquer cidadão podia exercer um cargo no poder. Mais tarde, os fundadores das repúblicas modernas rejeitaram esse mecanismo. A tese mais famosa é de que eles não queriam a volta da “verdadeira democracia” grega e sim uma nova aristocracia eletiva.
Mas eis que o sorteio está de volta. A partir da segunda metade do século XX, alguns intelectuais, descrentes com os rumos da democracia, criaram novos mecanismos, reintroduzindo o método aleatório. De forma resumida, a ideia é constituir uma amostra representativa da sociedade – ou seja, como é feito nas pesquisas de opinião, sendo a amostra mais reduzida – e fazer com que esses cidadãos selecionados possam se reunir e deliberar sobre determinado assunto. Esse é o principio básico dos júris de cidadãos, das pesquisas deliberativas e das conferências de consenso, que já foram feitas sobre temas como planejamento urbano (Alemanha), saúde (Inglaterra), ciência (Dinamarca), identidade nacional (na Austrália) etc.
O grande mérito dessas iniciativas, que não pretendem substituir as instituições tradicionais, é trazer para os espaços de decisão o cidadão comum, não contaminado pelas redes de interesse. Além disso, o método da amostra representativa – respeitando critérios de gênero, idade, raça, classe social – traz um fundamento de legitimidade suplementar. Num júri de cidadãos clássico, cerca de cinquenta pessoas são sorteadas (nada impede que se exija um grau de escolaridade mínima para questões mais complexas) e, após analisarem diferentes propostas e interrogarem os especialistas, esse grupo decide a respeito de determinada questão. Apesar de esses mecanismos ainda serem experimentais, a ideia da volta do sorteio na política vem ganhando fôlego e surpreendendo muitos daqueles que num primeiro momento desconfiam desse saber profano. Na crise islandesa de 2008, duas assembleias cidadãs de cerca de mil pessoas sorteadas foram convocadas para decidir os valores sobre os quais o país deveria ser reformulado. O documento extraído dessas experiências serviu de base para um Conselho constituinte, eleito pela população, responsável por redigir um novo texto constitucional, que depois foi referendado à população.
Já o Canadá teve uma experiência com a reforma política da província da Colúmbia Britânica em 2004. Uma Assembleia cidadã de cerca de duzentos e cinquenta pessoas sorteadas debateu com especialistas no assunto (acadêmicos, políticos, membros da sociedade civil organizada etc.), durante nove fins de semana, em sessões abertas, com ampla cobertura televisiva, e depois deliberou a respeito de uma proposta de lei. Essa ainda precisava ser referendada, mas acabou obtendo 57% e não 60%, percentual exigido para a aprovação. De toda forma, a experiência canadense foi muito elogiada, surpreendendo até mesmo os analistas mais céticos que acompanharam o processo. Ela revelou o potencial do uso do sorteio, sobretudo no caso de uma reforma política, para evitar que os parlamentares legislem em causa própria. Pensando no caso do Brasil, não seria uma alternativa muito mais ousada e com efetiva participação popular do que as hipóteses de referendo ou o plebiscito que vêm sendo discutidas? Além disso, diante de um statu quo insatisfatório, alguém pode negar que a experimentação democrática seja necessária?
Num dos livros mais completos sobre o uso do sorteio, o teórico Yves Sintomer faz alusão ao “método de Morelli”. No século XIX, depois de seguir carreira médica, Giovanni Morelli aventurou-se na scienza dell’arte. Com base nos seus conhecimentos fisiológicos, ele propôs uma técnica original, chamada de indiciária, para identificar falsificações ou quadros de atribuição incerta. Para Morelli, ao avaliar uma obra de arte, era preciso observar os detalhes, os fatos marginais, os traços imperceptíveis. Não se tratava de encontrar a solução no sorriso de um Da Vinci, mas na forma da orelha de um Botticelli. Seria o sorteio, nos pergunta Sintomer, o lóbulo da orelha da aventura democrática?
André Rubião, Doutor em Ciência Política (Universidade Paris 8), é membro do Centro de Estudos Sociais da América Latina (CES-AL/UFMG) e professor da Faculdade de Direito Milton Campos (FDMC). Traduziu para o português O poder ao povo: júris de cidadãos, sorteio e democracia participativa, de Yves Sintomer, Editora UFMG, 2010.