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Os partidos foram pegos de surpresa e é nesse vazio que a mídia cumpre seu papel de facção política sob o pretexto de “informar”. Como se acabasse o registro da patente e no lugar entrasse o genérico
Por Marco Piva
A atual onda de protestos por todo o país ainda vai render teses e mais teses durante longos anos. Para a academia, será um prato cheio. Já para os partidos políticos, não sei se terão esse tempo para refletir e se atualizar. As manifestações iniciadas com pouca gente por uma parcela da juventude organizada da esquerda radical em torno do aumento da tarifa do transporte público ganhou projeção nacional e internacional quando aconteceram duas coisas simultâneas: 1) a violência desproporcional da repressão policial de São Paulo; e 2) a mudança de posição da grande imprensa em relação ao movimento. Foram ações rápidas, que hoje se tornam quase imperceptíveis por conta da dimensão que os protestos alcançaram, mas que não podem ser desprezadas.
No segundo protesto em São Paulo, o Estadão pediu, em editorial, o rigor da repressão da polícia contra os manifestantes e o comentarista das Organizações Globo, Arnaldo Jabor, vociferou contra os “vândalos”. Um dia após a PM paulista cumprir o que havia sido pedido via imprensa pela parcela conservadora da sociedade, veio a contraordem na mídia, certamente impulsionada pela análise de conjuntura realizada às pressas num edifício luxuoso de Higienópolis, como sempre acontece. Sem violência e todo apoio aos protestos foram o resultado do encontro. A coisa virou da água para o vinho – ou vinagre, como queiram.
Nesse ponto de inflexão ganham destaque nas manifestações as palavras de ordem genéricas, mas com objetivos muito específicos: “contra a PEC 37”, “abaixo a corrupção”, “contra os gastos públicos na Copa”, “fora Dilma e o PT” etc. Para uma multidão legitimamente interessada em mostrar sua “força”, nada melhor do que ser transformada em personagem de uma novela que só a televisão pode promover da noite para o dia. É esse o sentido do mea-culpa de Jabor e o espaço que a grande imprensa passou a adotar editorialmente a partir do terceiro protesto.
[caption id="attachment_26059" align="alignright" width="480"] Manifestação na Avenida Paulista, na quinta, 20 (Mídia Ninja)[/caption]
Os partidos foram pegos de surpresa – todos eles – e é nesse vazio de representação institucional que a mídia cumpre seu papel de facção política sob o pretexto de “informar” o que está acontecendo no país. É como se acabasse o registro da patente e no lugar entrasse o genérico. Debate sério mesmo sobre as causas e consequências dos protestos, nem de longe, com a honrosa exceção do programa “Roda Viva”, da TV Cultura. Daí que o mote aprovado em Higienópolis pegou rápido: “Não são só os 20 centavos!”.
Claro que não! Agora a situação é séria. As palavras de ordem se multiplicam com endereço certo: os governos e os legislativos. Ora, qual partido detém hoje boa parte da hegemonia política no país? Bingo! A multidão de brasileiros indignados caiu de graça no colo dos protofascistas que, na ausência de capacidade para organizar a população e confrontar a esquerda, faz uma “barriga de aluguel” convenientemente apolítica e nacionalista.
Paralelamente, a demora do prefeito Fernando Haddad em reduzir a tarifa é sintomática da surdez crônica que se abateu sobre diversas lideranças petistas que, ao assumirem o controle administrativo de governos, fazem das planilhas o seu manual e creem que isso é suficiente para a implementação das mudanças que o Brasil ainda precisa fazer se quiser seguir o caminho iniciado em 2002 com a eleição de Lula. Acomodação não é boa companheira em nada que se faz na vida, por isso muitos casamentos acabam. No caso, a incompreensão da direção nacional do PT, que tardou em se manifestar, provocou um divórcio com as massas, hoje magnetizadas por uma comunicação de novo tipo, horizontal e em rede. Pode ser um rompimento passageiro, mas o reatamento conjugal exige ações imediatas e sinceras.
A primeira delas é a disputa do sentido político dos protestos. Como fazer isso sem estar presente? Se é impossível levantar uma bandeira de partido entre os manifestantes, que se levantem as vozes com palavras de ordem que sejam coerentes e façam coro com o sentimento criado nas ruas. A reforma política é uma delas e, generalista por generalista, a luta contra o capitalismo promotor das desigualdades, também. O desafio é que um movimento que não tem liderança nem organização é palco para tudo e é palco para nada. A prova é que mesmo depois da redução da tarifa, as pessoas não voltaram para as suas casa. Por isso é um erro político supor que as coisas vão se acalmar e que tudo seguirá como antes. Pelo contrário! A oposição protofascista saiu da retaguarda e quer conquistar a vanguarda da indignação nacional contra tudo e contra todos, considerando que estrategicamente esse é o melhor momento para ela nos últimos doze anos. Vai insistir pelo seu braço de convocatória, que é a televisão, na reprodução à exaustão dos protestos e de suas palavras de ordem. Cantando o hino nacional e colocando a bandeira do Brasil nas costas, com foco editado nos cartazes, é mamão com açúcar.
A segunda ação é a disputa do espaço na internet onde já se nota claramente um terreno fértil para a disseminação de “nós de rede” ligados à direita, de acordo com levantamento da empresa Interagentes, citado no Blog do Rovai. Se na primeira manifestação prevaleciam as convocatórias do Movimento Passe Livre, hoje a situação está mudando rapidamente com predomínio de conexões que buscam ligar os protestos a ações de combate e, se possível, destituição de Dilma Roussef. Um exemplo é a convocatória de greve geral para o próximo dia 26. No artigo “É hora de defender o Movimento Passe Livre”, publicado originalmente no site Viomundo, os professores Lincoln Secco e Antonio David afirmam: “As redes sociais permitem que indivíduos falem diretamente entre si sem a mediação de organizações, salvo o mercado virtual. Pessoas assim podem partir para a ação e expor ingenuamente os seus preconceitos e sua ‘coragem’ (sic) escondida no anonimato da rede”. Nas ruas, a televisão faz o resto.
Portanto, não estamos apenas diante de um fenômeno tecnológico que permite a mobilização instantânea de multidões sob o manto de uma indignação que até ontem não existia ou estava tão bem guardada que ninguém notou. Na prática, estamos diante do mesmo desafio histórico de sempre: a disputa política que cobra seu preço pela letargia comodista da esquerda em acreditar que chegar ao governo é chegar ao poder.
Marco Piva é jornalista.