Três breves observações sobre o 5o. Ato em SP

O sociólogo e professor da USP, Wagner Iglecias, faz uma reflexão sobre a sua experiência no protesto que tomou as ruas da capital paulista

(Foto: Mídia Ninja)
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O sociólogo e professor da USP, Wagner Iglecias, faz uma reflexão sobre a sua experiência no protesto que tomou as ruas da capital paulista 

Por Wagner Iglecias 

[caption id="attachment_25671" align="aligncenter" width="610"] (Foto: Mídia Ninja)[/caption]

Política: acompanhar in loco a passeata desta 2a. feira em São Paulo foi um exercício interessante. Uma infinidade de bandeiras, cartazes e côros os mais variados embalados por uma multidão cujo ponto de concordância talvez seja simplesmente o repúdio pelo sistema político tal qual ele se porta hoje: reduzido às disputas modorrentas entre partidos da ordem, burocraticamente fechado em gabinetes e inerte ao clamor das ruas e aos problemas cotidianos das pessoas. O que parece ser um diagnóstico bastante próximo da realidade. Mas será que a molecada que marchou ontem por SP trabalha com a perspectiva de que a classe política brasileira talvez tenha sido convertida apenas no intermediário de uma engrenagem muito maior? Será que a juventude que está indo às ruas está consciente do que é o nosso atual sistema de financiamento de campanhas eleitorais, a enormidade de dinheiro que ele movimenta e o que ele implica em termos de captura de nossos representantes? Será que eles acham que os políticos governam para si mesmos ou que talvez governem prioritariamente para uns poucos? A ver. Como ponto negativo ressalte-se os insistentes pedidos que a massa fazia, as vezes coagindo e mesmo xingando, para que representantes de partidos de esquerda, como PSOL e PSTU, recolhessem suas bandeiras. Se há um compreensível repúdio generalizado pelos partidos políticos, estas e outras pequenas legendas de esquerda não são responsáveis pela situação a que chegamos. De mais a mais elas têm prática de mobilização de segmentos diversos da população muito anteriores à sensação generalizada que se produz agora de que “o povo acordou”, como tantas vezes foi entoado na marcha desta 2a. feira.

Capital: percorri o trajeto da Faria Lima, desde o Largo da Batata até a Rede Globo, no Brooklin. Embora a Paulista seja uma espécie de “grande prêmio”, não só porque é o ponto mais alto da cidade mas também o de maior visibilidade midiática, fato é que a Faria Lima consitui-se, junto com a Berrini e a Marginal Pinheiros, no novo centro econômico da cidade, região para a qual os governos estadual e municipal destinaram vultosos recursos nos últimos anos e na qual a valorização imobiliária foi espetacular. É naquela região que se concentram as sedes de inúmeras empresas do setor de serviços avançados, principais nós de conexão da economia brasileira com os fluxos globais do capital. Foi ali que a multidão caminhou, entre alguns dos endereços mais caros de toda a América Latina. Como o policiamento era pequeno, a impressão que se tinha era a de que o patrimônio físico do grande capital transnacional tivesse sido deixado ali, à própria sorte, sob a responsabilidade de uns poucos seguranças privados que olhavam tranquilos para as milhares de pessoas que passavam diante de seus olhos protestando contra o sistema político e contra setores da grande mídia.

Foi emocionante ver a imagem da multidão refletida nas paredes envidraçadas dos edifícios pós-modernos da avenida, mas foi também estranho perceber que os poucos gatos pingados que puxaram côros contra os shoppings Iguatemi e JK Iguatemi, dois templos do consumo de luxo em SP, não tiveram sucesso diante de uma massa que não poupava xingamentos a Arnaldo Jabor, José Luiz Datena, Fernando Haddad e Geraldo Alckmin. Pelo contrário, a maioria dos manifestantes convidavam clientes e funcionários daqueles estabelecimentos, que olhavam tudo do alto, para que descessem e se juntassem ao protesto. O “vem pra rua vem, contra o aumento” dirigido pela multidão ao pessoal dos shoppings não deixa de ser parecido com o “ei, vizinho, vem comer um churrasquinho” que a turma do churrascão de gente diferenciada cantou para alguns temerosos moradores de Higienópolis que assistiam, das sacadas de seus apartamentos, à ocupação de seu bairro por alguns milhares de manifestantes numa tarde de sábado em maio de 2011. A impressão que dá é de que não há luta de classes no Brasil, e que numa situação dessas ao invés da conflagração o desejo da massa é de haver confraternização. Por outro lado há que se pensar que a manifestação de ontem em SP foi, majoritariamente, de jovens de classe média, criados e socializados dentro de grandes centros de consumo. Será que se trabalhadores sindicalizados ou jovens da periferia estivessem marchando pela Faria Lima ontem a postura diante dos dois famosos e elitizados shoppings teria sido diferente?

Mídia: por fim, as críticas dos manifestantes à mídia. A Rede Globo não foi poupada pela multidão, e os apupos cresciam na medida em que a marcha se aproximava da sede paulista da emissora. Creio que juntamente com a revista Veja são os dois casos mais pronunciados do rápido decréscimo de credibilidade que a grande imprensa nacional sofre, pelo menos junto a este segmento da população. Essa garotada enxerga o mundo, em grande medida, pela lógica das redes. Não compram conteúdos, compartilham. O que é um problema bastante concreto para a grande imprensa, pois afeta o âmago de seu tradicional modelo de negócio. Mas mais do que isso, o que se tem hoje são milhões de indivíduos jovens que estão cada vez mais habituados ao fluxo de informações das redes sociais. Nas quais a relação entre as pessoas é horizontal, o que implica a inexistência de autoridade ou de discursos definitivos e de mão única. O que vale para essa molecada, especialmente nos debates feitos no mundo virtual, são argumentos fortes e convincentes, venham de quem vier. Qualquer coisa diferente disso é rechaçada, vira objeto de chacota ou de profunda desconfiança. E talvez seja assim, dessa maneira, que a juventude cada vez mais enxerga todo e qualquer tipo de autoridade, a qual por excelência foi instituída antes e fora do mundo virtual, imprensa aí incluída.

Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.