Organizações argumentam que prostituição não é crime e que “projetos de felicidade, inclusive de prostitutas, não devem ser reprimidos e sim considerados como ponto de partida de qualquer iniciativa em saúde pública”
Da Redação
[caption id="attachment_24930" align="aligncenter" width="600"] Peça polêmica foi retirada da campanha do Ministério da Saúde (Foto: Reprodução)[/caption]Na última semana, uma campanha do Ministério da Saúde causou polêmica ao destacar a frase “Sou feliz sendo prostituta”. Em meio à polêmica, o ministro Alexandre Padilha cancelou o lançamento da campanha e demitiu o diretor do departamento de DST, Aids e hepatites virais do ministério, Dirceu Greco. Para Padilha, a campanha deveria se limitar a mensagens de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Já para Greco, a mensagem tinha conteúdo de saúde, por trabalhar a redução do preconceito associado às prostitutas. Após cancelar a campanha, o Ministério da Saúde relançou a mesma, porém, sem o cartaz que contém a frase que gerou a polêmica.
Diante do lançamento, cancelamento e posterior relançamento da campanha, além da demissão de Greco, entidades representativas de profissionais do sexo e outras organizações saíram em defesa da mensagem original da campanha. Em nota, a Associação Pernambucana de Profissionais do Sexo (APPS), Fórum LGBT de Pernambuco, Instituto PAPAI, Centro das Mulheres do Cabo e dos Núcleos de Pesquisa da UFPE (Gema, LabEshu e Gepcol) repudiou a suspensão do material com a frase "Eu sou feliz, sendo prostituta!".
A nota enfatiza que a campanha foi elaborada na Oficina de Comunicação em Saúde para Profissionais do Sexo, realizada entre os dias 11 e 14 de março de 2013, em João Pessoa. As entidades defendem que “as mensagens foram produzidas pelas próprias destinatárias das ações de promoção à saúde, inclusive a supostamente polêmica afirmação ‘Eu sou feliz, sendo prostituta!’”. As entidades reforçam que a prostituição no Brasil não é crime e que “projetos de felicidade, inclusive de prostitutas, não devem ser reprimidos e sim considerados como ponto de partida de qualquer iniciativa em saúde pública”.
Leia a íntegra da nota:
Nota pública da APPS, Fórum LGBT-PE, Instituto PAPAI, CMC, Gema, LabEshu e Gepcol
Os/as ativistas da Associação Pernambucana de Profissionais do Sexo (APPS), Fórum LGBT de Pernambuco, Instituto PAPAI, Centro das Mulheres do Cabo e dos Núcleos de Pesquisa da UFPE (Gema, LabEshu e Gepcol) vêm a público manifestar sua indignação pela suspensão e posterior “relançamento” de material de comunicação alusivo ao Dia Internacional das Prostitutas (2 de junho), produzido pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.
No texto que informa o “relançamento” do material (agora em formato de Campanha), o secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa argumenta que “É fundamental que grupos vulneráveis tenham conhecimento dos locais de distribuição da camisinha. A camisinha feminina permite que a mulher decida sobre o uso do preservativo, de modo que essa escolha não seja apenas do homem. É uma estratégia que faz parte da política brasileira de ampliar as opções de proteção às doenças sexualmente transmissíveis”.
Porém, é importante lembrar que o alardeado internacionalmente (e atualmente questionado) sucesso da “Resposta Brasileira à Epidemia” não está baseado exclusivamente na promoção do acesso ao uso de preservativos e da oferta de medicamentos para quem vive com HIV. Considerando o problema em sua complexidade, ao longo das últimas décadas, a sociedade e o governo brasileiro tem investido esforços em tratar o problema pela raiz e não pelo sintoma.
Nesta perspectiva, mensagens do tipo “Cidadã, use camisinha!” assumem sentido bem mais complexo. Para populações mais vulneráveis, o primeiro passo é a afirmação da cidadania, afinal, séculos de tradição e práticas sexistas, machistas, homofóbicas e racistas produziram em nosso país, estigmas e consequências indeléveis à autoestima e autoaceitação de LGBT, negros/as, pobres, mulheres e, particularmente, as prostitutas.
Em outras palavras, qualquer medida de prevenção em saúde, ao tratar de populações em situação de maior vulnerabilidade, deve considerar, antes de qualquer coisa, as condições e possibilidades de existência para essas pessoas, ou seja, as diversas formas a partir das quais essas pessoas foram impedidas de existir em sua plenitude, que as impediram de realizar seu “projeto de felicidade”.
José Ricardo Ayres (2007), Doutor em Medicina e Professor Titular em Medicina Preventiva da USP, define “projeto de felicidade” como “totalidade compreensiva na qual adquirem sentido concreto as demandas postas aos profissionais e serviços de saúde pelos destinatários de suas ações” (p. 54).
Assim, é importante que fique claro que o material censurado, como informa o próprio site do Ministério da Saúde, foi produzido “a partir de uma Oficina de Comunicação em Saúde para Profissionais do Sexo, realizada entre os dias 11 e 14 de março de 2013, em João Pessoa (PB). Participaram da Oficina representantes de organizações não-governamentais, associações e movimentos sociais que atuam junto a profissionais do sexo de todas as regiões do país, apoiando o enfrentamento às DST, aids e hepatites virais.”
Ou seja, as mensagens foram produzidas pelas próprias destinatárias das ações de promoção à saúde, inclusive a supostamente polêmica afirmação “Eu sou feliz, sendo prostituta!”.
Como bem referiu Fernanda Benvenutty, enfermeira e militante transexual brasileira, em evento sobre “gestão de riscos”, promovido recentemente pelo Departamento de Aids do Ministério da Saúde (entre 3 e 4 de junho): ao dizer que são felizes, sendo prostitutas, o que essas mulheres estão afirmando é que, APESAR de uma cultura machista, APESAR de uma sociedade que não as respeita, que as discrimina e que insiste em invisibilizá-las, apesar de um governo que não respeita seu verbo e suas práticas, APESAR DE TUDO elas são felizes! E esse direito humano à felicidade não lhes pode ser negado.
E como podemos, então, lidar com esse “projeto de felicidade”? Ayres (2004) defende “que não devemos lidar com os projetos de felicidade de indivíduos e populações como se fossem alguma espécie de ‘planejamento’. Antes que uma ‘planilha’, onde são fixados metas, recursos e estratégias, a ideia que mais se aproxima à do projeto de felicidade é o de uma obra de arte – uma pintura, um poema, uma escultura – pela qual se expresse a vida e o aspecto de saúde em questão” (...) Além disso, na expressão do projeto de felicidade, como na produção do poema, da pintura, da escultura, misturam–se razão e afetos, luz e sombra, o explícito e o suposto, o retratado e o não–retratado, o retratável e o não–retratável. O projeto de felicidade é, no modo como se expressa, uma totalidade compreensiva” (p. 57).
Portanto, o material de comunicação produzido em homenagem às prostitutas, em sua arte, inscreve profundo respeito por essas pessoas, as afirmam como cidadãs e certamente promovem autoaceitação e, consequentemente, as capacitam a promover prevenção, defendendo-se da tradição que as subjulga e que tenta calá-las.
Vale lembrar que no Brasil, prostituição não é crime, é ocupação incluída pelo Ministério do Trabalho e Emprego, na Classificação Brasileira de Ocupações, inclusive com atribuição de “participar em ações educativas no campo da sexualidade”, conforme descrito a seguir.
5198-05 - Profissional do sexo (Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo)
Descrição Sumária: Buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidades da profissão
Portanto, pela cidadania, pelo respeito, pela efetividade das medidas de prevenção em saúde “projetos de felicidade”, inclusive de prostitutas, não devem ser reprimidos e sim considerados como ponto de partida de qualquer iniciativa em saúde pública... sem medo de ser feliz!