Bárbara Araújo, professora de história, fala sobre a ressignificação do 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura
Por Bárbara Araújo, no Blogueiras Feministas*
"Há tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano, em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar ali, levantar moradias e plantas seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras de coronel Vicêncio. (…) O tempo passava e ali estavam os antigos escravos, agora libertos pela “Lei Áurea”, os seus filhos, nascidos em “Ventre Livre” e seus netos, que nunca seriam escravos. Sonhando sob os efeitos de uma liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha, que do antigo chicote fez uma varinha de condão"
(trecho do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, pp. 48-49)
Um (brevíssimo) histórico da ressignificação da data
O dia 13 de maio é um dia de memória para o povo afro-brasileiro. Dizer que é dia de memória, ao contrário do que pode parecer, não significa simplesmente que é um dia importante que ficou no passado. A memória, seja a nossa individual ou a memória social, é um campo de disputas e ressignificações feitas a partir do presente. A estratégia da ressignificação, por sinal, tem sido muito usada pelos movimentos sociais ao longo da história: os oprimidos se apropriam de palavras utilizadas para subjugá-los e transformam seu significado. Foi assim que o movimento cultural da negritude transformou o termo “negro” em uma palavra de orgulho. É também assim que o termo “vadia“, ainda altamente pejorativo, tem sido usado como arma de movimentos de mulheres contra a opressão machista e a cultura do estupro.
O processo da abolição da escravidão no Brasil (último país independente das Américas a executá-la), assim como tantos outros processos históricos no nosso país, foi marcado por contradições. Mas a narrativa histórica clássica da libertação dos escravos pela benevolente Princesa Isabel foi amplamente contestada pelo movimento negro brasileiro — mais intensamente a partir dos anos 70 pra cá. A ressignificação, nesse caso, foi uma inversão de sujeito e objeto: Não foi o sujeito “Princesa Isabel” que executou a ação “assinar” o objeto “lei Áurea”, mas o sujeito “Escravos e negros brasileiros” que executou a ação “conquistar” o objeto “liberdade”. Essa mudança pode parecer bastante óbvia pra alguns, mas não é tão consensual assim. Como exemplo, podemos fazer um paralelo, novamente utilizando o gramatiquês, com uma argumentação tosca e mesquinha, mas bastante propagada, contra as cotas raciais. Ela nega que o sujeito “Negro” executou a ação de “conquistar” o objeto “vaga na universidade/cargo público”, alegando que o sujeito “Governo” executou o verbo “dar” o objeto “esmola indevida”.
A transformação do sentido do fim da escravidão no Brasil, de concessão real à conquista popular, fez com que o 13 de maio tenha se transformado em um dia de luta. A nova perspectiva sobre a memória da abolição negou a festa da liberdade e revindicou a denúncia da opressão racista que persiste na atualidade e de uma abolição que, concretamente, nunca se realizou por completo. Nos anos que precederam o centenário da abolição, em 1988, diversas entidades do movimento negro organizaram marchas intituladas ”Cem Anos Sem Abolição” em protesto à proposta do governo federal em realizar uma série de eventos para celebrar a data. Em contrapartida, a luta anti-racista no Brasil abraçou o 20 de novembro, tido como a data de morte de Zumbi dos Palmares, como um dia mais apropriado para celebrações — e também, sempre, para reivindicação e luta política. [caption id="attachment_23911" align="alignleft" width="296"] Imagem retirada do livro “Jongo do Quilombo São José”.[/caption]
O 13 de maio no Quilombo São José da Serra
A memória do 13 de maio se torna ainda mais complexa se considerarmos as sutilezas culturais e religiosas que se associam a ele. Podemos observar essa multiplicidade de sentidos na comunidade remanescente de quilombo de São José da Serra, localizado numa antiga fazenda cafeeira na região fluminense do Vale do Paraíba. A comunidade, que recentemente recebeu a titulação das terras depois de um longo processo de luta por reconhecimento legal (apoiando-se no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988), é conhecida por ser uma comunidade jongueira. O jongo é um ritmo de matriz banto criado no Brasil pelos escravos, cujos pontos são característicos por serem cantados em uma linguagem metafórica difícil de se decifrar. No Quilombo São José, 13 de maio é dia de uma celebração de enormes proporções. Gente de todo o país e de fora dele se mobiliza pra estar presente nessa festa composta por uma missa afro, folia de reis, capoeira, maculelê, samba de roda e a atração principal, o jongo. Mas um fato interessante é que a memória oficial da comunidade, comunicada pela voz das lideranças políticas e religiosas do Quilombo, diz que a festa não tem nada a ver com a abolição da escravidão: 13 de maio é dia dos pretos-velhos, entidades da umbanda identificadas como figuras arquetípicas dos escravos mais idosos e sábios, cuja calma e sabedoria é reverenciada. A festa é esvaziada de qualquer referência ao ato de Isabel, transferindo-se as homenagens para os pretos velhos sem, no entanto, retirar a centralidade da escravidão e, consequentemente, da liberdade.
Essa ressignificação do 13 de maio aparece nos próprios pontos de jongo. Há um ponto bastante conhecido (foi inclusive gravado pelo famoso jongo da Serrinha) com referência a abolição que diz: “Pisei na pedra/ Pedra balanceou/ Levanta meu povo/ Cativeiro se acabou“. A interpretação majoritária da letra percebe esse pisar na pedra e fazê-la balancear como uma metáfora pra atuação dos escravos e negros brasileiros na destruição do sistema escravista. Mas a letra de jongo, assim como é conhecida hoje, é recente, adaptada de uma outra quadrinha original. Ela dizia: “Pisei na pedra/ Pedra balanceou/ Mundo tava torto/ Rainha endireitou“. Na versão atual, então, a “rainha” Isabel sai de cena pra que se evidencia apenas o protagonismo escravo no processo de abolição. [caption id="attachment_23913" align="alignleft" width="295"] Imagem retirada do livro “Jongo do Quilombo São José da Serra”.[/caption]
O protesto contra a abolição capenga, depois da qual a população negra brasileira continuou marginalizada, também está presente em pontos de jongo mais antigos. Um exemplo bacana é o ponto recolhido pelo pesquisador Stanley Stein na região do Vale do Paraíba lá pelos anos 50. Stanley falou com ex-escravos ainda vivos e recolheu o seguinte ponto: “Não me deu banco pra mim sentar/ Dona rainha me deu cama/ Não me deu banco pra mim sentar“. A crítica é bastante clara: a assinatura da grande alforria por Isabel não garantiu os direitos e a cidadania necessária para a plena integração dos ex-escravos na sociedade brasileira. Stein chegou a afirmar em seus escritos que o jongo poderia ser considerado dentro do gênero “música de protesto” (isso mesmo, aquele do Bob Dylan!) por conta desse conteúdo cifrado mas ao mesmo tempo tão certeiro no ponto que deseja denunciar.
O jongo é, então, um exemplo muito bacana da multiplicidade e das contradições representadas na data do 13 de maio. Na festa desse ano, ressoará mais uma vez o canto negro: “No dia 13 de maio é um dia muito bonito/ Todos os pretos se reúnem pra saravá São Benedito“. *Este post faz parte da Blogagem Coletiva Luiza Mahin, organizada pelas Blogueiras Negras nos 125 anos de Abolição.