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Não podemos esconder a cidade, apesar de ser justamente o que buscam os moradores de condomínios fechados
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Por Fernando Luiz Lara
As desigualdades vão caindo gradual e lentamente, mas existem alguns processos culturais de exclusão arraigados na nossa sociedade, que demorarão algumas gerações para serem transformados. Não falo aqui de Monteiro Lobato nem das piadas fáceis sobre negros, gays ou nordestinos, que até muito pouco tempo atrás ocupavam o horário nobre da TV. As formas verbais de exclusão vão sendo aos poucos cerceadas pela consciência do que elas realmente são: materialização do preconceito construído ao longo de séculos.
Escrevo sobre uma forma mais “distraída” de preconceito, para usar a expressão clássica de Walter Benjamin. O espaço construído atua sobre nós de forma quase sempre inconsciente. Diferentemente de ler um texto, ir ao cinema ou ao museu, a cidade nos oferece outro tipo de significantes que não demandam nossa atenção, não precisam de foco. Não prestamos atenção diretamente a um edifício ou a um banco de praça, mas eles estão no nosso caminho todo dia e nos relacionamos com eles de forma desfocada, mas não menos importante.
Funciona mais ou menos como uma extensão de nossos corpos. Quando nos mudamos para um apartamento novo, por exemplo, toda ação precisa ser pensada conscientemente. Onde está o interruptor de luz? Pra que lado abre a porta do banheiro? De que lado fica a escada da garagem? Essas ações banais demandam foco e atenção apenas nas primeiras vezes, depois vão se tornando memória corporal. Agora já não preciso pensar onde fica o interruptor de luz, meu braço sabe a posição correta. Assim o espaço construído vai moldando nosso corpo, nossos hábitos, infiltrando-se de forma inconsciente e distraída em nós. Nas palavras de Winston Churchill, damos forma aos nossos edifícios, e em seguida eles nos formam.
Pior ainda, essa forma distraída de percepção nos é imposta. Eu posso me recusar a ler Caçadas de Pedrinho ou mudar de canal quando aparece um programa de TV com piadas homofóbicas, mas não posso deixar de usar elevador ou passar na frente do edifício tal. Não podemos esconder a cidade – apesar de ser justamente o que buscam os moradores de condomínios fechados, não é mesmo?
Este texto é o primeiro de uma pequena série a ser publicada pela revista Fórum sobre a materialização da exclusão no espaço cotidiano das cidades. Justamente por serem apropriadas distraidamente, tais configurações espaciais raramente são discutidas e, com isso, tendem a ser extremamente longevas. Analisar a origem e as razões por trás de cada uma dessas “tradições construtivas” torna-se fundamental para podermos pensar uma cidade mais justa e mais democrática.
Um exemplo simples, mas agudo, é a insistente permanência da “porta de serviço” nos apartamentos brasileiros. Mesmo em apartamentos mínimos de dois quartos e 50 metros quadrados ainda se colocam duas portas, uma com acabamento em madeira laminada abrindo para a sala, outra pintada de branco ou bege abrindo para a cozinha, ambas ligando o apartamento ao mesmo hall de elevadores. Não existe nenhuma razão para esse desperdício quando cada porta instalada custa R$ 300 e “ocupa” quase 1 metro quadrado de área não utilizável a um custo adicional de pelo menos R$ 1,2 mil. Ou seja, todo brasileiro que compra um apartamento com porta de serviço está gastando, por baixo, R$ 1,5 mil para manter viva a ideia de que algumas pessoas merecem entrar pela porta bonita da sala e outras devem usar sempre a porta de acesso às áreas de serviço. Não interessa que essas portas levam rigorosamente ao mesmo lugar, no caso o hall de elevadores, porque ali também deve haver uma separação entre um elevador com espelho chamado de “social” e outro elevador mais simplesinho, chamado “de serviço”.
Há poucos anos, foi muito divulgado o caso da mãe do jogador Ronaldo Nazário, que, ao chegar ao edifício onde mora seu filho (no caso, na cobertura, o apartamento mais caro), foi encaminhada ao elevador “de serviço”. O acontecimento foi corretamente debatido na mídia como um caso de racismo; a mãe de Ronaldo teria sido confundida com uma empregada doméstica em razão da sua pele morena. No entanto, alguém parou para pensar por que diabos algumas pessoas devem usar o elevador X e outras, o elevador Y? Evidente que transporte de entulho, entregas e animais domésticos devem ser regulados de forma a preservar o conforto de outrem. Não tem graça tomar o elevador com uma geladeira nem com o poodle agressivo do 802. Mas a prática revela o racismo por trás das separações: as domésticas tomam o elevador de serviço mesmo quando estão de folga, e o poodle faz questão de rosnar e mostrar seus caninos no elevador social enquanto sua dona explica para uma criança de três anos em pânico que “ele é bonzinho...”.
Olhamos para a segregação explícita de algumas décadas atrás nos EUA (negros no fundo do ônibus, por exemplo), e ela nos parece cruel e absolutamente desumana, mas reconhecer o preconceito enraizado em nossos espaços cotidianos é sempre um pouco mais difícil.
Em resumo, estamos rodeados de espaços e equipamentos que materializam a exclusão e o preconceito. Os próximos artigos serão a minha contribuição ao debate que julgo ser necessário e urgente. No primeiro deles, vou tratar da evolução da casa brasileira e a origem desses espaços “de serviço”, que são herança clara da escravidão. A cozinha, que antes ficava no fundo, vai aos poucos se “movendo” para junto da área social, mas com uma insistente porta para “esconder” a bagunça.
No segundo, vou tratar dos espaços de serviço coletivos – ou da porta pra fora, no dizer popular. portarias, garagens e playgrounds também funcionam como espaços de exclusão, principalmente pelas regras condominiais que regulam quem pode estar aí e sob quais condições. No terceiro, pretendo discutir o abandono gradual dos espaços públicos e a proliferação dos espaços privativos de socialização como shopping centers e clubes. A cidade com medo da rua, que em resposta foge dela, tornando o espaço público cada vez mais vazio e consequentemente mais perigoso. O quarto artigo vai tratar dos condomínios fechados e sua proposta de negação da cidade tradicional. E o quinto e último artigo vai analisar a mais cruel de todas as formas atuais de exclusão: a carência de infraestrutura e de acessibilidade a que estão submetidos os brasileiros na base da pirâmide de renda, seja nas favelas ou no Minha Casa, Minha Vida.
Os próximos artigos pretendem, acima de tudo, incitar uma discussão sobre essas formas mais invisíveis e, por isso mesmo, arraigadas de exclusão. A esperança é de que o preconceito não sobreviva tanto tempo sob a luz do debate público. F
Fernando Luiz Lara é arquiteto e professor associado da University of Texas at Austin, onde dirige atualmente o Brazil Center no Lozano Long Institute of Latin American Studies