Chave por chave. Este é o lema que guia a resistência das famílias ameaçadas pelas obras da implantação do Corredor Avenida Tronco, em Porto Alegre. O empreendimento prevê a duplicação de 3,4 km da avenida Moab Caldas (chamada de Tronco pela população), a construção de uma ciclovia, um corredor de ônibus e tratamento paisagístico. Consideradas essenciais pelo governo federal e municipal para a realização da Copa em Porto Alegre as obras têm custo financeiro de R$ 156 milhões. O custo social, porém, é ainda maior: 1,4 mil famílias ou 3,9 mil pessoas (dados do levantamento socioeconômico da Prefeitura de Porto Alegre) vivem na região que será atingida pelas obras.
Da ameaça de remoção das famílias brotou a campanha “Chave por Chave”, criada pelos moradores e pelo Comitê Popular da Copa em Porto Alegre, que se baseia em uma ideia simples: as famílias em situação de risco só entregarão suas casas ao receber a chave de outra casa em suas mãos.
Várias comunidades (ou vilas, como se diz na capital gaúcha) estão envolvidas na campanha, em três regiões de Porto Alegre: Cruzeiro-Cristal, Vale e Santa Tereza. Ali ficam vilas Vila Maria, Cruzeiro, Gastão-Mazeron, Divisa, Tronco, e tantas outras que acolhem lares estabelecidos há décadas na região.
“Você imagina o que é para mim, que sou morador da região Cruzeiro-Cristal há 72 anos, nascido e criado aqui, e que moro há 40 anos na mesma residência estar ameaçado de sair da minha casa e sem saber para onde ir”, afirma o aposentado José de Araújo, de 72 anos, que passou a integrar o Comitê Popular após se ver ameaçado de remoção.
“Antigamente o local [Cruzeiro-Cristal, Vale e Santa Tereza] era área rural e a infraestrutura foi toda conseguida pelos moradores por meio do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Hoje, temos lá um posto de saúde modelo, creches na região, escolas, comércio, uma boa oferta de transporte”, afirma a arquiteta Claudia Favaro, integrante do Comitê Popular da Copa da capital gaúcha.
E NÃO É QUALQUER CHAVE QUE OS MORADORES ACEITAM
Depois da luta travada para tornar dignas as vilas onde construíram suas vidas, não é qualquer chave que os moradores se dispõem a aceitar. Se as obras tiverem de ocorrer, os atingidos exigem ser reassentados em locais com a mesma oferta de serviços e de preferência na própria região.
“Aqui é um lugar muito próximo do centro de Porto Alegre, cerca de 15 minutos de distância, com toda a infraestrutura que a gente conquistou”, explica Araújo. “Durante todo o tempo que eu moro aqui, nunca houve contestação da Prefeitura para reaver o terreno. Inclusive eu tentei fazer o usucapião, mas é difícil porque eu tenho que pagar fotografia, não sei o quê. Sou um cara que tem muito pouco, sou aposentado. Não faz sentido eu sair daqui e ir para a Restinga ou Sarandi”, argumenta o antigo morador, referindo-se a dois bairros periféricos de Porto Alegre.
As obras da Avenida Tronco começaram em maio de 2012, mas só o primeiro trecho delas, que não envolve desapropriações. Contudo, as máquinas avançam. E o “Chave por Chave” talvez seja o último obstáculo antes da remoção das famílias do entorno para bairros afastados.
O SONHO DA CASA PRÓPRIA AMEAÇA SE TORNAR UM PESADELO
Entre os dias 17 de abril e 8 de maio de 2009, 54 mil pessoas com renda entre 0 a 3 salários mínimos se inscreveram junto ao DEMHAB (Departamento Municipal de Habitação, órgão da Prefeitura de Porto Alegre) para serem incluídas no programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) na capital gaúcha. Entre elas estavam os 3,9 mil moradores das vilas ameaçadas pelo atual projeto do Corredor da Avenida Tronco.
Oito meses depois foi aprovada a Lei Complementar nº 636/2010 para regulamentar a implantação do programa habitacional do governo federal em Porto Alegre que garante, no artigo III, o atendimento mínimo de “80% da DHP [Demanda Habitacional Prioritária] por região de planejamento, em áreas identificadas nas próprias regiões”.
Ou seja, pela lei, o programa estava obrigado a reassentar a população mais vulnerável em termos de moradia dentro da região em que ela já reside.
No mesmo mês de janeiro de 2010, a obra da Avenida Tronco foi incluída na Matriz de Responsabilidades do Ministério de Esportes, o que lhe deu direito ao financiamento da Caixa para obras específicas do mundial de futebol, desde que a obra estivesse pronta até o início da Copa – prazo que a prefeitura tem que cumprir. Foi a senha para que o Comitê Popular começasse agir, buscando informações sobre as vilas que seriam atingidas pelo projeto.
Dois meses depois, o cadastramento socioeconômico das famílias começou e os moradores se mobilizaram para conseguir detalhes sobre o projeto com a Prefeitura e o apoio do Ministério Público. Sem sucesso. Em dezembro de 2010, novo golpe: foi aprovado o projeto de lei 854/10 que em seu artigo 74 dizia: “Para os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida destinados ao reassentamento de famílias em função de obras da Copa de 2014, não se aplica o disposto no parágrafo único do artigo 3º da Lei Complementar 636”.
Ou seja, não havia mais garantia legal para que os moradores atingidos pela obra da avenida Tronco fossem realocados na própria região. A grande maioria das áreas estava em regiões periféricas de Porto Alegre como o bairro da Restinga, que fica a cerca de 30 km do centro da cidade.
Apreensivos, os moradores perceberam que se encaixavam na faixa de renda familiar – 0 a 3 salários mínimos – que receberia as moradias do Minha Casa Minha Vida nas áreas mais afastadas. Em 25 de março de 2011, depois de seguidas tentativas, conseguiram realizar a primeira audiência com representantes do Ministério Público Estadual e Federal para questionar a Prefeitura sobre o futuro das quase 4 mil pessoas atingidas pela obra da avenida Tronco.
Leia também:
Copa 2014: Até onde o Brasil deve ceder?
Copa não reduz pobreza local, diz pesquisa sul-africana
Uma favela com a marca fatal do Mundial da Fifa
A Copa e o direito à moradia em São Paulo
A Prefeitura alegou que áreas das AEIS haviam sido escolhidas entre as que pertenciam a empreiteiras já aprovadas pela Caixa para atuar no programa federal de habitação e afirmou que não havia terrenos disponíveis na região em que os moradores já residiam. Os moradores se revoltaram: “Fiquei indignado em ouvir uma coisa dessas, conheço muito bem aqui, sei da quantidade de terrenos disponíveis”, conta José de Araújo.
O Comitê Popular decidiu fazer um levantamento por conta própria e localizou 30 terrenos na região que poderiam ser desapropriados, indicando-os, ainda no primeiro semestre de 2011, à administração municipal. Dessa vez, conseguiram marcar o primeiro gol: a Prefeitura de Porto Alegre avaliou o levantamento e depois de muita pressão prometeu desapropriar 15 terrenos apontados pelos moradores para a construção de moradias populares pelo programa federal.
NASCE O “CHAVE POR CHAVE”
Pressionada pelo prazo exigido para as obras da Copa, porém, a prefeitura não perdeu tempo. Enquanto desapropriava os terrenos, incluindo os escolhidos pelos moradores, negociava com as famílias atingidas – chegou até a montar um escritório na região.Clau
Aos moradores que aceitassem deixar suas casas, a prefeitura ofereceu três propostas : um aluguel social de até R$ 500 ou alojamento em “casa de passagem”, uma espécie de abrigo provisório designado pela prefeitura, até que as novas moradias ficassem prontas (sem determinar em que terreno seriam construídas); e o bônus moradia, em que a administração municipal libera até R$ 52 mil (o mesmo valor de uma casa no Minha Casa Minha Vida) para financiar um imóvel encontrado pela família que tenha escritura e todas as exigências legais.
“A casa de passagem é um abuso. É um imóvel de 4x3m em que muitas vezes eles colocam uma família de dez pessoas durante dois anos. O bônus moradia praticamente obriga o morador sair da cidade, pois não se compra imóvel com escritura em lugar nenhum por esse valor. E o aluguel social, por esse valor, só se consegue imóvel em locais muito afastados da região onde eles estão”, argumenta Claudia Favaro.
Em abril de 2012, os moradores realizaram uma assembléia junto com o Comitê Popular da Copa e decidiram não aceitar nenhuma dessas alternativas por colocá-los em situação de vulnerabilidade, como explica Claudia Favaro: “Se alguém aceita o aluguel social, vai sair do seu local de origem, espalhar a comunidade, minar a resistência, e dois ou três meses depois a prefeitura pode ligar e dizer: ‘olha, estou com uma casa pronta na Restinga e ou você se muda agora, ou eu paro de pagar seu aluguel’”.
COMPROMISSO OU JOGO DE CENA?
No dia 2 de maio de 2012 ocorreu uma plenária do Orçamento Participativo voltada para a discussão da habitação na capital gaúcha. As obras da avenida Tronco estavam começando fora da área em que exigia desapropriações e era inevitável que o impasse viesse à tona.
Alegando que a prefeitura estava sendo pressionada pelo governo federal a dar prosseguimento à obra para que estivesse concluída antes da Copa, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), disse que se a prefeitura não avançasse com as desapropriações, iria perder o financiamento do Minha Casa Minha Vida. Segundo ele, só seria possível reassentar os moradores na região, como propunha o “Chave por Chave”, se o governo federal flexibilizasse os prazos. Pelo cronograma oficial, as desapropriações estavam programadas para terminar em dezembro de 2012.
Com isso, relatam os moradores, aumentaram as pressões da Prefeitura para que as famílias abrissem mão de suas casas e aceitassem uma das três alternativas da administração municipal. Em outubro, a Prefeitura de Porto Alegre comemorou a entrega do centésimo bônus moradia aos moradores da Avenida Tronco. No mês seguinte, uma resolução do GECOPA (Grupo Executivo da Copa do Mundo de 2014) alterou o prazo de término das desapropriações para julho de 2013.
O adiamento deu novo fôlego à campanha “Chave por Chave”. Em janeiro deste ano, o Comitê Popular de Porto Alegre firmou parceria com a Witness, organização internacional de Direitos Humanos, para realizar oficinas de vídeo nas comunidades atingidas com a intenção de capacitar os moradores para documentar violações de direitos.
A ideia é utilizar os videos para sensibilizar setores do governo como a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Secretaria de Controle Interno do Gabinete da Presidência da República e o Ministério Público Estadual, e mobilizar um número maior de moradores e movimentos sociais. O “Chave por Chave” continua de pé.
O QUE DIZ A PREFEITURA DE PORTO ALEGRE?
A assessoria de imprensa do DEMHAB foi procurada pela Pública na última sexta-feira para responder a oito questões relativas à situação dos moradores do entorno da Avenida Tronco. Até a publicação dessa matéria não recebemos respostas.