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Até quando o Estado de Direito será seletivo entre nós?
Por Pablo Holmes
[caption id="attachment_21523" align="alignleft" width="480"] Apesar de reconhecer direito à moradia, Justiça determina reintegração de posse ((Foto: UN Special Rapporteur on Adequate Housing / Flickr)[/caption]
Em recente decisão da 2a. Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, foi decidida a reintegração de posse do proprietário de imenso imóvel localizado em Taguatinga, às margens do Pistão Sul. O imóvel foi ocupado por 280 famílias em 4 de janeiro, que permanecem no local, atentos aos próximos passos da Polícia Militar do Distrito Federal, subordinada ao Governador do Distrito Federal.
O imóvel, localizado numa das áreas com maior valorização imobiliária no Distrito Federal, foi abandonado há décadas. Nele, encontra-se apenas uma velha estrutura, batizada de “esqueleto” pelos moradores da região. Curiosamente, o proprietário do imóvel, que também é dono de rede de postos de gasolina e de vultosos empreendimentos no DF, parece ter esquecido de sua existência, sem dar a ele qualquer destinação, mesmo diante da visível e crescente especulação imobiliária entre as localidades de Taguatinga e Águas Claras.
Em sua decisão, o judiciário reconheceu a importância do direito à moradia. Albergado por nossa constituição e apoiado pela figura da função social da propriedade, esse direito, como todos sabemos, é condição mínima de existência em qualquer sociedade moderna. Qualquer sociedade "civilizada" sabe, que é impossível participar, com o mínimo de condições, da vida social, sem que se tenha acesso básico à moradia.
Porém, mais uma vez, o mesmo judiciário parece ter sucumbido ao precário argumento de que esse direito não pode se sobrepor ao direito de propriedade.
Mais uma vez, o direito de um único indivíduo deter 100 mil metros quadrados, o qual de modo algum vai ser atingido nas condições mais básicas de sua existência por essa decisão, parece se sobrepor ao direito, também apoiado constitucionalmente, de milhares de indivíduos terem o mínimo necessário para poder viver em sociedade.
Não se trata de uma bandeira política. Trata-se aqui de ignorar o direito como ele já está positivado entre nós. Trata-se de fazer valer a lei e o Estado de Direito na sua forma mais básica. Ignora-se, por exemplo, o fato notório de que a propriedade não teve nenhum uso por vários anos. Ignora-se também o fato de ali habitam várias famílias, há vários anos, em diferentes períodos de tempo.
Se um único indivíduo não pode ser penalizado por nossas mais tradicionais formas de concentração de renda e poder e de exclusão social, diz-se então: que se responsabilize o Estado. Mas após vários dias de ocupação, o Governo do Distrito Federal não se dispôs a apresentar qualquer proposta que possa ser uma alternativa a mais uma tragédia.
Contudo, além da ordem de reintegração de posse, a juíza responsável pelo feito entendeu ser desnecessária até mesmo qualquer audiência de conciliação entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que coordena a ocupação, e os órgãos governamentais competentes, pois, nos termos de sua decisão, "não há nenhuma proposta dos órgãos governamentais quanto à retirada das famílias que ocupam o imóvel, para que sejam transferidas para outro local".
Para o judiciário, aparentemente, não há quem responsabilizar. Nem o proprietário, nem o poder público. Por meio de sua decisão, o Estado assume, mais uma vez, que seu direito não vale para todos, que ele é seletivo, tem endereço e destinatários bem próprios.
O "Programa Morar Bem" do Governo do Distrito Federal, baseado no sistema de crédito habitacional, não atinge às faixas de renda a que pertencem as famílias que ali se encontram. Mais uma vez se beneficiam indivíduos como o proprietário do referido imóvel, por meio de financiamentos que apenas estimulam a espiral especulativa imobiliária que apenas reforça mecanismos de exclusão social.
No Distrito Federal, nem o conhecido programa "Minha Casa, Minha Vida", baseado na modalidade de entidades, parece interessar àqueles que transformam o direito em um mero instrumento em benefício próprio.
Deixaremos então que se repitam, em plena capital federal, as cenas trágicas vistas em São José dos Campos, no começo do ano passado? O Governador Agnelo Queiroz deixará que o Distrito Federal seja testemunha de um novo Pinheirinho? Alguns dirão que a ele nada mais resta fazer que cumprir a ordem judicial. Mas, numa democracia, todos são guardiões do direito. Em 2009, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu, na Ação de Intervenção Federal n. 92 – MT, que seria possível a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana pelo executor da lei, pois em todas as espécies de atos dos poderes constituídos deve-se observar o princípio da proporcionalidade.
Cabe a todos nós ficar atentos. Não podemos admitir que, ainda hoje, sejam-nos negadas as condições mais básicas de cumprimento do Estado de Direito. Não podemos mais conviver com a tragédia da seletividade dos direitos diante da confortável sensação de que não seremos atingidos pelo risco de sermos os próximos a tê-los negados. Afinal, a cada decisão como essa, esse risco se renova.
Pablo Holmes
Professor de Teoria Política da Universidade de Brasília; bacharel e mestre em direito pela UFPE, doutor em sociologia pela Universidade de Flensburg.