Políticas de viés proibicionista e repressivo estão sendo colocadas em xeque em diversos países do mundo e evidenciam a necessidade de se discutir as drogas de forma racional
Por Glauco Faria
Esta matéria faz parte da edição 126 da revista Fórum. Compre aqui.Um negócio bilionário, estimado em 320 bilhões de dólares. A mais lucrativa atividade ilegal do planeta, o comércio de drogas, fatura dez vezes mais que o tráfico de pessoas, o segundo negócio ilícito mais rentável, de acordo com dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). Em alguns locais, o tráfico molda relações sociais, trabalhistas, tem conexões com o mundo político institucional e com outros ramos do poder público, a despeito de haver uma “guerra às drogas” que se manifesta de forma distinta na maioria dos países que contam com legislações proibicionistas. Um combate insólito que já custou, somente nos Estados Unidos, 1 trilhão de dólares nos últimos 40 anos, ao se propor a idealizar um mundo no qual substâncias deixariam de ser consumidas apenas por serem ilícitas. E, na prática, resultando em um empoderamento de redes ilegais, que conseguem lucros estratosféricos em parte devido a essa proibição, configurando um cenário global no qual as drogas circulam muito mais livremente do que as próprias informações sobre elas.
A discussão sobre políticas de drogas no Brasil e em outras partes do mundo tem tido avanços consideráveis nos últimos anos, conseguindo mobilizar pessoas que veem como a repressão não funcionou para tratar a questão. Em novembro de 2012, nas últimas eleições realizadas nos Estados Unidos, parte da população deixou evidente seu descontentamento. No Colorado, foi aprovada a Emenda 64 com 55% de votos favoráveis, proporção similar à votação em que o estado de Washington aprovou a iniciativa número 202. Ambos se tornaram as primeiras unidades federativas no mundo a adotarem a regulamentação, a taxação e o controle da maconha de forma semelhante ao que acontece com as bebidas alcoólicas.
[caption id="attachment_32703" align="alignleft" width="307"] (Luciano Tasso)[/caption]As legislações dos dois estados legalizam a posse de até uma onça (28,34 gramas) de maconha para maiores de 21 anos, sendo que a norma do Colorado permite outorgar licenças para cultivo e produção de derivados da planta. No mesmo processo eleitoral, Massachusetts se tornou o 18º estado do país, além do distrito de Columbia, a habilitar a maconha para uso medicinal. Mesmo em regiões mais conservadoras politicamente, como o Arkansas, em que emenda semelhante foi rejeitada, a margem foi estreita: 48% dos eleitores no estado se mostraram favoráveis à norma. E isso parece ser uma tendência no país, já que, de acordo com pesquisa do instituto Gallup feita em março, 49% dos norte-americanos aprovam a legalização da maconha, um número que é quase o dobro do apoio dado em 1995 (25%).
Tais vitórias por si só seriam relevantes para aqueles que lutam contra o proibicionismo, mas o caráter simbólico que representam, por terem acontecido no país que mais empunhou nas últimas décadas a bandeira das políticas repressivas, as torna ainda maiores. A mobilização social também proporciona mudanças de outra ordem. Em agosto, o procurador-geral dos Estados Unidos, Eric Holder, passou a orientar os promotores para que, ao registrarem as acusações de porte de substâncias ilegais, não façam menção à quantidade em posse do acusado, evitando assim que seja acionada automaticamente a sentença mínima obrigatória de prisão. O objetivo é fazer com que pessoas detidas que tenham comportamento não violento e não possuam ligações com gangues ou cartéis recebam penas alternativas, como prestação de serviços comunitários e cumprimento de programas de reabilitação.
“Ronald Reagan construiu seu caminho para a Presidência com a promessa de combater as drogas e endurecer a guerra contra elas. Sua esposa, Nancy Reagan, fez a campanha Just Say No, e naquela época isso foi um grande sucesso. Ser linha dura contra as drogas era interessante para a classe política”, lembra Tarso Araújo, jornalista e autor do livro Almanaque das Drogas. “Já nas ultimas eleições, várias vezes jornalistas perguntaram para o Obama e para o Mitt Romney a respeito de plebiscitos como os do Colorado e de Washington, e os dois ficaram quietos, não deram declarações mais contundentes. Há 20 anos, se perguntassem ao cara, ele diria ‘isso é um absurdo’, pois teria certeza que a maioria iria votar contra a legalização. Mas o silêncio deles mostra que os políticos não sabem se é melhor ser linha dura ou liberal contra as drogas, por isso ficaram em cima do muro, o que demonstra uma mudança.”
E no Brasil? Aqui, além de diversas Marchas da Maconha e encontros antiproibicionistas terem sido realizados, crescendo em número e importância ano a ano, o tema passou a ter um destaque maior, mesmo por parte da mídia tradicional, a partir da repercussão de filmes como Cortina de fumaça, de Rodrigo Mac Niven, lançado em 2010, e Quebrando o tabu, de 2011, dirigido por Fernando Grostein Andrade. Mesmo assim, a política de drogas ainda é um tema cuja discussão é carregada de poderosos (pré) conceitos morais que dificultam uma discussão racional, tal como pedem movimentos e ONGs.“Algo que a mídia ainda faz muito é moralizar totalmente a questão das drogas entre bem e mal, associando, por exemplo, a ideia de que se você enrola um baseado numa faculdade está armando um garoto no narcotráfico”, argumenta Andrea Rangel Ribeiro, professora de Antropologia do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest-UFF). “O fato de a opinião pública ter desenvolvido, nos últimos anos, uma sensibilidade maior a questões relacionadas à justiça social não se reverteu em algo parecido na questão das drogas, porque ela vem amarrada à imagem do narcotráfico. Pode se trabalhar políticas educacionais para criar uma consciência maior, mas sem essa carga moral; é preciso que as pessoas tenham clareza que o problema das drogas é como outros tantos. Enquanto o tráfico de drogas não for visto como um comércio ilegal como outro qualquer, aquela visão do filme Tropa de elite, moralista, vai prevalecer. Temos de lidar com os dados de maneira objetiva, racional, e isso não foi feito em nenhum lugar do mundo ainda”, explica Andrea.
Muito do moralismo que cerca o tema das drogas está ligado à ideia de que alterar seu próprio estado de consciência é errado, um conceito arraigado no imaginário de muitas pessoas. “Ethan Nadelmann costuma dizer que a cada dia surgem novas drogas psicoativas e sempre vão surgir. Não adianta a lei correr atrás da próxima droga, é preciso mudar a maneira de lidar com essa questão. Parte dos adultos tem a tendência de querer experimentar estados de alteração da consciência, e aceitar isso é a primeira maneira de remover a névoa de moralismo sobre o tema”, sustenta Renato Malcher-Lopes, mestre em Biologia Molecular pela Universidade de Brasília e PhD em Neurociências pela Universidade Tulane. “Por mais que existam leis contra cada substância nova que surge, sempre vai existir uma grande quantidade de pessoas que não vai aceitar dividir sua autonomia, a soberania do seu próprio corpo com aqueles que elaboraram as leis.” Confira também:
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Para desfazer a névoa de desinformação que cerca a questão da política de drogas, é importante trabalhar com o significado do termo. No livro Almanaque das Drogas, Tarso Araújo lembra que a definição mais ampla para “droga” é considerá-la como “qualquer substância capaz de alterar o funcionamento normal de um organismo”, algo similar à forma adotada pelos gregos, que utilizavam a palavra phármakon tanto para remédio como para veneno. Já a Organização Mundial de Saúde, em seu “Glossário de Álcool e Drogas”, diz que se trata de substâncias “que afetam a mente e os processos mentais”. Os tratados da ONU de 1961 e 1971 fortaleceram o estigma da droga como substância proibida, mas Araújo utiliza o termo como sinônimo de droga psicoativa, ou seja, aquela capaz de causar alterações de comportamento e/ou percepção, sendo ou não lícitas, o que inclui nesse rol substâncias largamente consumidas – inclusive por menores de idade, às vezes incentivados por adultos – como álcool, tabaco e cafeína.
Tendo em vista esse conceito, por que algumas se tornaram proibidas em boa parte do mundo enquanto outras, por vezes mais danosas que algumas ilícitas, são permitidas? Em tese, os textos das convenções internacionais justificam a classificação jurídica das drogas com base em dados científicos a respeito do potencial que cada uma teria para causar dependência e danos à saúde. Mas o que fica evidente para muitos especialistas da área é que os critérios de classificação são muito mais políticos e econômicos do que científicos.
De acordo com dados do Unodc, o controle internacional sobre narcóticos e substâncias psicotrópicas tem início no século XX, em função do alto índice de consumo de ópio à época, o que resultou na reunião de diversos países para discutir a questão na Comissão do Ópio de Xangai, em 1909. No artigo “Uma história política da criminalização das drogas no Brasil; a construção de uma política nacional”, o historiador Jonatas Carlos de Carvalho descreve o contexto e os resultados do encontro. “Os países signatários se comprometeram em coibir o uso de opiáceos e de cocaína em seus territórios, caso tais usos não obedecessem a recomendações médicas. É bom observar que o proibicionismo é resultado de alguns fatores socioculturais, que contribuíram para haver condições de possibilidade de intervenção estatal em relação à alteração da consciência”, conta. [caption id="attachment_32580" align="alignleft" width="300"] Papoula, flor da família das Papaveraceae, de onde se extrai o ópio (Gerhard Taatgen Jr. - Stock.xchng)[/caption]
Àquela altura, já era possível notar os interesses de setores da economia na restrição ao uso de determinadas substâncias. “O aspecto econômico parece prevalecer no que tange à constituição da política proibicionista; primeiro, porque interessava à indústria farmacêutica o monopólio da manipulação e comércio do ópio e da cocaína, assim como seus derivados. Por outro lado, a ascensão da classe médica que assumia a ordem do discurso procurava rechaçar tudo que pudesse ser tratado como xamanismo ou curandeirismo”, sustenta Carvalho. “Pode-se citar, finalmente, a participação de setores mais conservadores da sociedade, que referendaram as políticas proibicionistas valendo-se da ideologia de pureza moral; cabe lembrar que tais setores tinham força política junto aos legisladores. Entre eles, podemos destacar as Ligas anti-saloon e o Partido Proibicionista.”
Sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU), foi realizada em 1961 a Convenção Única de Narcóticos, que até hoje orienta a política internacional e muitas leis regionais sobre drogas no mundo, tendo como objetivo o controle da oferta e a repressão. Posteriormente, em 1971, estabeleceu-se a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, que abarcava formas de controle sobre drogas sintéticas e, em 1988, a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, que instituía métodos contra a lavagem de dinheiro e o fortalecimento do controle de percussores químicos.
“As convenções têm um duplo viés. De um lado, são produto de intenções, de ações diplomáticas, existindo uma certa prevalência da iniciativa dos EUA, embora sua posição nunca tenha sido solitária. Desde os momentos iniciais, eles sempre foram acompanhados por muitos países, inclusive pelo Brasil. Por outro lado, as convenções respondem aos interesses dos países signatários de acionar dispositivos domésticos de proibição e repressão, e acabam reforçando políticas que são sobretudo locais”, explica Thiago Moreira Rodrigues, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da UFF e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. “Os países já vão aos encontros internacionais com proposições proibicionistas, em busca de um guarda-chuva legal internacional, e se consolida uma via de mão dupla que garante a construção de um regime internacional desse tipo.”
Rodrigues destaca que as últimas revisões feitas dos tratados internacionais sobre o tema foram basicamente de manutenção da linha estabelecida nos anos 1960. “De dez em dez anos há uma revisão dos tratados, e o da Convenção de Viena, em 2008, foi de ratificação da tônica proibicionista. Naquele ano, no Brasil, já havia diferença nas politicas domésticas, estava em vigor a lei de 2006 e o governo Lula havia incorporado a redução de danos como um dos itens da pauta do Ministério da Saúde, mas a diplomacia brasileira que foi a Viena não tocou no assunto, a delegação não fez da política doméstica uma bandeira e a redução de danos continuou excluída”, conta, ironizando o relativo consenso em torno das diretrizes internacionais sobre o tema. “Existem pouquíssimos casos em que a política dos EUA e do Irã estão de acordo, e isso acontece nos encontros sobre drogas.”
Assim, o proibicionismo gera dois tipos diferentes de mercado de drogas. Enquanto o ilegal movimenta bilhões, o “legal”, que envolve indústrias produtoras de bebidas alcoólicas, de tabaco e de café, entre outras, fatura 1 trilhão de dólares anuais, segundo o Almanaque das Drogas. Entre as vantagens óbvias deste último se encontram legislações tolerantes em termos de regulação de propaganda, por exemplo, o que possibilita garantir um mercado consumidor entre crianças e jovens, muitas vezes alvos de peças publicitárias que, no caso das bebidas alcoólicas, por exemplo, podem ser vistas à tarde por pessoas de qualquer idade, em jogos de futebol transmitidos na televisão e em outros programas. [caption id="" align="alignleft" width="352"] Entre jovens, álcool é consumido livremente, mas preocupação principal dos pais é com drogas ilícitas (Ph_micchei - Flickr)[/caption]
Sobre o consumo de álcool por adolescentes, o 1º Levantamento Nacional sobre o Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre Universitários, feito pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em parceria com o Programa do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Grea-FMUSP), mostra não só que se trata da substância mais utilizada pelos entrevistados, com um índice de 90% de uso, como também que 79% dos jovens com idade abaixo de 18 anos disseram ter consumido bebidas alcoólicas. Metade dos jovens, 54%, experimentou alguma bebida antes dos 16 anos, sendo que, destes, 20% o fizeram antes dos 14 e 34%, antes dos 15 anos.
“A venda de álcool deveria ser mais regulamentada, seria necessário haver campanhas de educação para os pais evitarem o uso de álcool por jovens até determinada idade”, defende Renato Malcher-Lopes. “Mexer no seu estado de consciência é algo pecaminoso, fugir da realidade é uma luxúria... Isso é um conceito que vem da Inquisição, e só não atinge o álcool porque ele foi absolvido pela elite dominante. Engraçado o impacto que isso tem, mesmo para os mais esclarecidos: você anda à noite nas ruas e são centenas de pessoas sentadas na mesa do bar se drogando, com álcool, e elas não fazem essa conexão.” [caption id="attachment_32729" align="alignleft" width="300"] Atualmente, muitas pessoas consomem medicamentos que deveriam ser regulados com mais rigor (Josué Goge - Flickr)[/caption]
Nem todas as substâncias que alteram a consciência ou o comportamento sofrem com o preconceito em geral ou com campanhas massivas para proibir seu uso. “Nunca se consumiu tanto remédio tarja preta no mundo, há crianças tomando calmantes, é um fenômeno. E essa mesma sociedade que consome esse
tipo de medicamento é contra a liberalização das drogas”, diz Andrea Rangel Ribeiro. “Nem falo a respeito do álcool, porque vem o argumento de que é uma substância legal, mas o medicamento tarja preta é legalizado sob certas circunstâncias, e o que observamos é ele ser utilizado para qualquer coisa, receitam com facilidade antidepressivos e ansiolíticos, o que vai contra a própria definição do medicamento controlado.”
Mitos da pedagogia do terror
A comparação com o álcool costuma ser muito utilizada por defensores da legalização da maconha para evidenciar a falta de argumentos científicos que justifiquem a proibição da cannabis. “A minha visão é que o nível de rigor com a maconha deveria ser reduzido e o do álcool ampliado, para que ficassem num patamar próximo. Com a regulação, poderia se impedir que pessoas menores de 18 anos usassem, a maconha seria vendida em estabelecimentos credenciados, e se aconselharia a não utilização em áreas públicas, por exemplo”, sustenta Malcher.
Diversos mitos acerca da maconha têm sido desconstruídos não somente por ativistas antiproibicionistas, mas também pela própria ciência. Porém, isso não impede que continuem sendo divulgados por setores interessados na manutenção do proibicionismo e, às vezes, pela mídia. “O que vemos hoje é o pouco compromisso com evidências científicas e o desconhecimento, de alguns parlamentares e porta-vozes da posição mais conservadora, de todo o conhecimento adquirido nos últimos anos e das experiências internacionais bem-sucedidas no campo da descriminalização, redução de danos e tratamento que deram certo”, analisa Ilona Szabó de Carvalho, cofundadora da Rede Pense Livre – Por uma política de drogas que funcione. “O debate ainda está sendo feito de forma ideológica e com bastante preconceito. Precisamos vencer esta etapa e discutir soluções embasadas em dados e boas práticas”, acredita.
Um dos principais argumentos utilizados por aqueles que condenam a legalização da maconha diz respeito ao seu uso como “porta de entrada” para o consumo de substâncias perigosas que seriam mais prejudiciais à saúde. “O traficante é a porta de entrada, não a maconha. Se considerar dessa forma, sem relação de causa e feito, a porta de entrada seria o álcool, que as pessoas começam a usar antes porque é a droga mais acessível”, afirma Tarso Araújo. “Não há estudo que comprove essa relação biológica, tanto que há pessoas que usam maconha e não utilizam drogas pesadas.”
Outro ponto bastante abordado é a relação entre o uso da erva e a esquizofrenia, que também representaria uma distorção. “A ideia de que a maconha causa esquizofrenia é vendida com muito pouco escrúpulo por alguns. O que se sabe é que existem evidências de que, em pessoas de um determinado grupo de risco, jovens, que já têm propensão à doença, existe um pequeno aumento do risco. Contudo, muitos dizem que qualquer um pode se tornar esquizofrênico utilizando maconha”, diz Sidarta Ribeiro, neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
No artigo “Cannabis pode realmente causar esquizofrenia?”, Dartiu Xavier, diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proada), questiona tal tese. “A própria quantificação da suposta possibilidade de redução da incidência de esquizofrenia através da supressão do uso de maconha não passa de uma inferência baseada na inversão de um cálculo matemático simples. Nos últimos 30 anos, o uso de cannabis aumentou substancialmente entre populações jovens. Se a relação entre cannabis e esquizofrenia fosse realmente de causalidade, deveríamos ter constatado, igualmente, um aumento da incidência de esquizofrenia entre 1970 e os dias de hoje. Entretanto, estudos populacionais sugerem que a incidência de esquizofrenia vem se mantendo estável ou até mesmo apresentando discreta diminuição no referido período (Macleod et al, 2004). Assim sendo, tais afirmações dos referidos autores não deveriam ser tomadas com constatações científicas, mas apenas, na melhor das hipóteses, como algo a ser investigado, com base em outros estudos a serem ainda desenvolvidos.”
“A maior parte dos mitos exagera os efeitos das drogas, porque o objetivo é fundamentar uma opinião conservadora. Eles são criados ou porque não há informação suficiente, ou porque a informação científica a respeito dos possíveis efeitos de determinada substância não existe, ou é um pouco assustadora”, acredita Tarso Araújo. As “informações assustadoras” fazem parte de uma estratégia antiga, inclusive adotada pelo poder público, de mostrar os males reais e imaginários de substâncias ilícitas para que as pessoas, em especial os jovens, tenham medo de consumi-las. “O próprio Ministério da Saúde lançou uma campanha, uma vez, dizendo que crack viciava na primeira tragada, uma campanha oficial... Na verdade, as pesquisas mostram que a maioria das pessoas que usa crack não se torna dependente, de 30% a 40% se viciam, o que é um índice alto comparado a outras drogas, mas não é a informação que a campanha estava passando. A fábrica de criação de mitos está em todo lugar, até nas pessoas que deveriam estar amparadas pela ciência”, analisa Araújo. [caption id="attachment_32731" align="alignleft" width="600"] Fonte: Martin Jelsma (Transnational Institute), Inovações Legislativas em Política de Drogas, 2009. Elaboração: Ilona Szabó de Carvalho[/caption]
“Esse tipo de orientação causa um problema que é o inverso da moeda, falar da maconha, por exemplo, não é ser contra ou a favor, é dizer que, quando existe abuso, ela causa determinado tipo de problema, que não pode ser usada por adolescentes porque prejudica o aprendizado, pode causar ansiedade no futuro, mas pode ser utilizada em determinado contexto por adultos. Quando vai direto para o emocional, os jovens que veem o discurso assustador, dizendo que a maconha causa loucura, percebem que estão tentando enganá-los e querem saber a realidade”, analisa Malcher. “Quem tem a postura mais equilibrada vai dizer que a maconha pode gerar um tipo de dependência para um certo número de pessoas, mas a maioria experimenta, usa, e não tem maiores problemas. Os jovens devem evitar porque o cérebro está em formação e isso pode prejudicar, mas quando dizem que quem usa maconha vai acabar consumindo cocaína, o adolescente vê esse discurso fora de prumo e fica descrente. Nunca foi honesto educar as pessoas com base no medo. Hoje, o jovem tem internet e vê colegas que usam maconha na faculdade e não estão largando seus cursos por conta disso, nem ficando loucos”, completa.
O problema desse tipo de campanha está relacionado à própria estrutura que sustenta o proibicionismo: a sua eficácia é questionável e não tem funcionado para fazer com que o consumo de drogas ilícitas diminua. “Essa estratégia é furada, você conta uma mentira, alguém acredita, conta outra e outra e, num belo momento, a pessoa descobre a verdade e passa a duvidar de todas as coisas que você falou. É preciso acabar com a pedagogia do terror e dar informação às pessoas, fazer com que elas possam entender com o que estão lidando”, pontua Araújo. Nesse aspecto, algo fundamental seria melhorar o nível de informação que os adolescentes têm sobre o tema. “Nas escolas, a única fonte informativa sobre drogas que existe é a Polícia Militar, que vai à sala de aula uma vez por ano para fazer um discurso terrorista e preconceituoso”, complementa.
Para Renato Malcher, parte da mídia também contribui para que o tema seja tratado por um viés equivocado. “Às vezes, a imprensa escuta uma pessoa que julga especialista, mas que tem uma atividade política e faz uma interpretação enviesada de uma informação publicada num jornal científico. Quando alguém discorda, acabam confundindo a população porque parece que a ciência é um eterno Fla-Flu. Já neguei entrevistas porque me falaram ‘estou fazendo uma matéria sobre a maconha e escolhemos uma pessoa a favor e outra contra...’ Essa busca pela neutralidade artificial que a imprensa faz parte do pressuposto de que tem sempre que se ouvir os dois lados, a favor e contra. Então, vamos ouvir alguém que é favor e outro que é contra a lei da gravidade, e as pessoas ficam achando que é meramente uma questão de opinião”, questiona. “O que está acontecendo é que muitos estão tendo acesso à informação por veículos paralelos, pela internet, assistindo a vídeos no YouTube, por exemplo, e vendo que, na Califórnia, em lojas organizadas, famílias, mães, velhinhos compram e usam maconha, com aconselhamento médico. São mundos paralelos, a grande mídia com esse equilíbrio artificial, puxando para o conservadorismo, e as pessoas que buscam informações por meios independentes”, aponta.
O uso medicinal interditado
No mundo, algumas experiências têm sido feitas sob uma ótica não proibicionista e obtido resultados mais eficientes em termos de saúde pública. Um exemplo, já clássico, é o da Holanda, um modelo pragmático baseado na redução de danos com base em uma lógica que compreende ser preferível o uso de substâncias menos nocivas à saúde – como maconha e haxixe – à utilização de drogas consideradas de alto risco, como cocaína, heroína, anfetaminas, LSD e álcool – este, aliás, tem uma regulação maior que a feita no Brasil, por exemplo. [caption id="attachment_32586" align="alignleft" width="300"] Políticas proibicionistas impedem que os benefícios medicinais da maconha sejam utilizados (Mjpresson - commons.wikimedia)[/caption]
A concepção que troca a repressão pelo controle e redução de danos surge em decorrência de uma legislação que entra em vigor em 1976. “Com a guerra do Vietnã, criaram-se vários corredores de exportação de heroína, principalmente pela Tailândia, Laos e Miammar, o chamado Triângulo de Ouro, porque ali estavam concentradas as principais plantações de ópio do mundo. Isso causou uma explosão do consumo de heroína e, nos EUA, o presidente Richard Nixon fundou a guerra às drogas”, explica Tarso Araújo. “Na Europa, cada país adotou políticas diferentes; na Holanda, foram encomendados estudos, e a conclusão foi que os jovens estavam usando predominantemente maconha e heroína. Enquanto aquela não causava tantos problemas de saúde, com o consumo da outra eram transmitidas doenças como hepatite, além da ocorrência de mortes por overdose, ocasionando um problema sério de saúde pública.”
No entanto, assim como tudo que cerca a temática de política de drogas, muitos têm uma impressão errada do modelo holandês. “Quem nunca foi à Holanda acha que é um paraíso do uso de drogas, mas, quando vai, percebe que não é bem assim”, adverte Thiago Rodrigues. “É preciso lembrar que o país também não legalizou droga alguma, a entrada de substâncias ilícitas está enquadrada como tráfico internacional. Existe a redução de danos, uma política mais liberal ou mesmo mais realista.” No país, quem porta até cinco gramas de cannabis não é punido (ver quadro na pág. 10). Nos bares e cafés (coffee shops) que vendem até cinco gramas de maconha ou haxixe, o consumo é permitido, mas tais estabelecimentos não possuem licença para vender álcool e as substâncias não podem ser usadas em locais públicos. Em relação ao tráfico em geral, as penas para o crime podem chegar a 12 anos de reclusão, com multas de até 45 mil euros. [caption id="attachment_32733" align="alignleft" width="314"] Em Amsterdam, na Holanda, sinalização sobre o consumo de álcool e de maconha (Erik Joling / Wikimedia Commons)[/caption]
O resultado de tal política é que o percentual de usuários de drogas injetáveis é o menor entre os 15 países da União Europeia. Um relatório do Programa Global de Políticas de Drogas Open Society, intitulado Coffee Shops and Compromise – Separated Illicit Drug Markets in the Netherlands (Coffee Shops e Solução Conciliatória – Separando o Mercado de Drogas Ilegais na Holanda, em tradução livre) e divulgado em agosto, mostra que apenas 14% dos usuários de maconha na Holanda conseguem outras drogas com seus fornecedores, enquanto na Suécia, que possui uma legislação muito mais restritiva, esse número chega a 52%.
Além da expectativa em relação aos modelos em fase de implantação ou aprovação, como os citados anteriormente dos estados americanos do Colorado e Washington e do Uruguai, outros países têm adotado posturas mais flexíveis em relação ao consumo de substâncias. “Em julho de 2001, Portugal se transformou no primeiro país europeu a descriminalizar o uso e a posse de todas as drogas ilícitas. Muitos observadores criticaram essa política, acreditando que conduziria ao aumento do uso de drogas. Mas não foi o que aconteceu”, lembra Ilona Szabó. “Na Espanha, a posse de drogas para consumo pessoal não é considerada crime e se encontra sujeita apenas a sanções administrativas, como multas, quando o consumo for feito em lugar público. Porém, a multa pode ser suspensa se o indivíduo aceita submeter-se a um tratamento.”
A cofundadora da Rede Pense Livre também destaca uma iniciativa inovadora que vem ganhando corpo na Espanha. Os usuários de cannabis criaram uma espécie de cooperativa na tentativa de organizar o abastecimento para uso recreativo e medicinal da planta, sem ter de recorrer ao mercado ilegal. São os chamados Clubes Sociais de Cannabis (CSC). “As sementes da cannabis são compradas no mercado legal – porque seu comércio não está proibido na Espanha – com dinheiro proveniente dos associados, que ‘financiam’ o clube na proporção que consomem. Assim, por meio dos clubes, os associados conhecem exatamente a origem e qualidade da substância que estão consumindo, valorizando sua autonomia como usuários”, conta.
Ilona observa que, embora não exista uma legislação que regulamente a atuação desses clubes e nem mesmo uma padronização relativa às suas regras de funcionamento, para ser sócio é preciso ser maior de idade, consumidor habitual de maconha e contribuir com uma determinada quantia para poder consumir sua cota mensal. “A principal intenção desses clubes é romper a relação dos usuários com os traficantes, criando uma alternativa de fornecimento legal para quem já usa maconha e inibindo, simultaneamente, o crescimento do mercado ilegal. Outra intenção foi a de criar espaços privados para o consumo de cannabis em grupo, já que o consumo em lugares públicos se encontra proibido”, explica.
No Brasil, o antropólogo e ex-membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas Sergio Vidal ressalta que a regulamentação da produção pode ser um problema mesmo em países que adotam posições mais abertas em políticas de drogas, e destaca também a importância de se regularizar o cultivo. “A Holanda regulamentou o uso da cannabis da porta pra frente, e não da porta pra trás. Em relação ao cultivo, existe o modelo californiano, que funciona muito bem, limitado pelo fato de ser destinado para uso medicinal, mas lá foi tudo regulamentado, do começo da produção até o final. E tem o do Uruguai, que é o estatizado, o que preocupa um pouco porque não acredito que vá resolver. Querendo ou não, se colocar o preço de quatro reais para um grama, não será possível alcançar a qualidade medicinal, porque é um valor baixo em função do investimento que é feito.”
Autor do livro Cannabis Medicinal – Introdução ao cultivo Indoor, Vidal lembra que a legislação proibitiva em relação à maconha acaba dificultando ou até mesmo impedindo pesquisas sobre o seu uso medicinal. Na prática, os danos à saúde pública seriam duplos: além de não se aproveitar o potencial benéfico da cannabis em relação a diversas doenças, os usuários ficam expostos a produtos que não são cultivados, armazenados ou transportados de forma adequada, sendo consumidos muitas vezes já em estado de apodrecimento. “A maconha, antes de qualquer coisa, é um remédio que, além de curar e tratar, também faz algumas pessoas sentirem prazer, e por conta desse efeito colateral, muitas pessoas usam de forma recreativa e lúdica. Ao longo da história, a maioria usava como remédio, e uma parcela menor a utilizava por conta dos efeitos colaterais”, argumenta. “Hoje, damos mais atenção aos efeitos colaterais, sendo que pesquisas apontam que ela pode diminuir alguns tipos de câncer, tratar os efeitos colaterais da quimioterapia e radioterapia, diminui convulsões, trata epilepsia, esclerose múltipla, e também tem sido usada para tratar doenças como autismo e transtorno de déficit de atenção.”
O uso medicinal da cannabis pode ser um dos pontos que justificaria o interesse de alguns setores, como o farmacêutico, na manutenção das políticas proibicionistas. “A cannabis diminuiria o consumo de outras drogas como analgésicos, Rivotril e álcool, por exemplo. As farmacêuticas querem até ter o princípio ativo, para poder cobrar caro e vender algo que extraiu, mas os princípios ativos puros podem ser perigosos. Na planta, eles estão em equilíbrio; o THC, por exemplo, sozinho tem um efeito estimulante. O princípio ativo não é seguro, a combinação deles é que é benéfica”, afirma Sidarta Ribeiro. Sergio Vidal destaca que, além do THC, um dos cem princípios ativos da planta, vários benefícios são causados por outras substâncias e isso pode variar de acordo com cada linhagem da cannabis. “Cada cepa, cada variedade tem uma configuração própria de canabinoides, e estamos sendo proibidos de pesquisar por conta dos efeitos colaterais. Enquanto isso, circulam remédios que têm efeitos colaterais que podem até matar.”
Em vista de todos os males que as políticas proibicionistas causam e ainda vão causar, superando em muito os malefícios do próprio uso de substâncias proibidas, já passou da hora de se discutir o problema, observando e elaborando modelos que possam ser alternativas a uma guerra fracassada, na qual os perdedores são sempre os mesmos e os “vitoriosos” têm interesses por vezes nada republicanos. E entender que opções como a descriminalização do usuário, a legalização e outros modelos não equivalem ao estímulo para que todos usem drogas. Será que o “liberou geral” que muitos temem com a mudança da legislação já não existe hoje, já que todos podem ter acesso a substâncias – lícitas e ilícitas – de procedência duvidosa e independentemente da idade? F