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A morte de uma criança em uma ação policial no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, foi o ponto de partida para que a pesquisadora e líder comunitária Eliana Sousa Silva estudasse a relação entre moradores da favela e a polícia
Por Thalita Pires
Esta matéria faz parte da edição 125 da revista Fórum.
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Na noite do dia 24 de junho, uma manifestação sem causa definida aconteceu no bairro de Bonsucesso, vizinho do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro.
O trânsito parado na Avenida Brasil foi a deixa para que grupos de assaltantes começassem a abordar os carros presos no local. O que poderia ter sido uma ocorrência policial de menor vulto acabou como uma tragédia: dez pessoas morreram na ação empreendida pela polícia na caça dos assaltantes em fuga dentro da Maré. Os policiais entraram em conflito com os traficantes e, na troca de tiros, um agente do Batalhão de Operações Especiais (Bope) foi baleado e morto. Naquilo que aparentava ser uma retaliação, nove pessoas foram mortas na operação, três das quais não tinham qualquer ligação com o crime. Depois do incidente, apesar dos protestos da comunidade, o governo estadual sequer pediu desculpas pela forma como a polícia agiu.
Esse fato ocorreu sete anos depois de outro bastante semelhante. No dia do primeiro turno das eleições de 2006, carros de polícia invadiram a mesma Maré atirando a esmo, sem qualquer motivo que justificasse a violência. Uma das balas acertou o abdômen de um menino de três anos, Renan, que estava de mãos dadas com a avó. A polícia chegou a levá-lo para o hospital, mas ele morreu em seguida.
Pouco mudou na relação da comunidade com a polícia nesse tempo. Uma das testemunhas da morte de Renan foi a líder comunitária Eliana Sousa Silva, que usou o episódio como estímulo para estudar como a comunidade vê a polícia e vice-versa. Sua pesquisa valeu-lhe um doutorado e está registrada no livro Testemunhos da Maré (Aeroplano Editora), contribuindo para a tentativa de diminuir a distância entre esses dois atores. Eliana também faz parte da Redes da Maré, organização que atua na promoção de ações de direitos dos cidadãos do local. Na entrevista a seguir, a pesquisadora fala sobre as incursões policiais na comunidade, segurança pública, Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), treinamento da PM e desmilitarização da polícia.
[caption id="attachment_32878" align="alignleft" width="360"] Movimentos sociais pedem a desmilitarização da polícia durante protesto
no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro (Tomaz Silva / ABr)[/caption] Fórum – É possível fazer um paralelo entre a história que abre seu livro (de Renan, 3 anos, morto pela polícia em uma incursão na Maré em 2006) e a ação policial que deixou dez mortos em junho desde ano? Há alguma diferença no tratamento da polícia de hoje e de então? Eliana Sousa Silva – Do ponto de vista da ação direta da polícia, nada mudou. Ela ainda entra na comunidade de maneira muito violenta, muitas vezes atingindo pessoas que não têm nada a ver com crime. Isso acontecia no passado, e continua acontecendo. O que está diferente é que, desde 2009, a gente vem tentando construir algum espaço de interlocução sobre o direito à segurança pública na Maré. A Redes da Maré tem um projeto chamado “Legítima Defesa: Diálogos sobre Segurança Pública na Maré”, que é uma tentativa de romper com esse medo do morador. Esse assunto é tabu, as pessoas têm medo de falar. Estamos tentando criar na Maré essa ideia de segurança pública como direito, partindo desse estudo. Em 2009, a Redes da Maré organizou uma conferência livre sobre segurança pública, que tinha a ver com a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, algo muito recente. A sociedade civil participa há pouco tempo desse processo de entender o que é a militarização. Outra campanha foi a “Somos da Maré, temos direitos”. O programa consiste em colar um adesivo em cada casa dizendo “Não entre nessa casa sem saber da legalidade dessa ação” e um panfleto sobre abordagem policial. Tudo isso com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade do cidadão se implicar nesse assunto. A gente vem conseguindo ter um diálogo com a cúpula. Tivemos várias reuniões com o comando do Batalhão da Maré e com a cúpula da polícia. Isso não quer dizer que eles acham que o que a gente faz é correto. Apesar de não haver essa percepção deles, a gente entende que existe uma abertura, coisa que não existia em 1995. Isso não vem se materializando em ação prática, mas acreditamos que é uma questão de tempo. Fórum – A ação que deixou dez mortos em junho foi uma tragédia anunciada ou uma surpresa para a comunidade? Eliana – Acho que foi uma surpresa. A Maré estava cercada pela PM e pela Força Nacional por conta da Copa das Confederações, não havia nenhuma ação da polícia entrando na comunidade na época. Desde o anúncio da UPP, em fevereiro, a polícia tem realizado operações para efetuar prisões de maneira bem complicada, mas não era o caso. Aliás, um mês antes já havia ocorrido uma ação bastante complicada, com invasão de casas, chave mestra, revistas ilegais [nessa ação, o equipamento do fotógrafo Bira Carvalho foi destruído]. Aquele evento específico, no entanto, não estava no planejamento. Dentro do contexto de uma manifestação próxima, alguns grupos começaram a roubar na Avenida Brasil, o que gerou a ação da polícia. Os grupos criminosos armados responderam e o sargento do Bope foi morto. Aí a polícia foi para cima. Eles não estavam cumprindo alguma ordem, foi o contexto que levou a isso, mas mostra o despreparo para lidar com situações como essa. Fórum – Qual a sua opinião sobre a política de Segurança Pública como um todo no estado? Eliana – Acho que tem muitos problemas. A política, de uma maneira geral, muitas vezes não é para quem precisa. É voltada para impactar em questões mais visíveis para fora. São medidas que consideram muito pouco a demanda real dos moradores. A política mais importante, a UPP, não se configura como política. E existem muitos questionamentos, porque há uma corrupção muito pulverizada por todos os níveis, e há pouca mudança nessa estrutura, considerando o conjunto dos cidadãos que mora no estado. A segurança é sempre para os mesmos. Fórum – Qual é a história do livro Testemunhos da Maré e qual a sua motivação para pesquisar o tema da violência policial? Eliana – O livro é o resultado da pesquisa de doutorado sobre a ação da Polícia Militar em favelas. Escolhi a Maré para ser meu campo de estudos por conta da minha trajetória. Cheguei com 7 anos à Maré e cresci lá. Minha questão era entender por que a ação da polícia, de uma forma sistemática e histórica, era tão violenta, tão complicada em relação aos moradores dali. Tentei compreender como a polícia agia da maneira que eu testemunhava ao longo do tempo e a representação do policial sobre a própria ação, saber como a população via a ação da polícia e como os grupos criminosos armados viam essa ação. O morador da favela, de uma maneira geral, entende o conceito de segurança pública como mais um direito ao qual ele tem acesso, como tem claramente em relação à saúde? Coloquei a segurança pública no campo do direito. Para mim, era importante saber se o morador tinha claro que os agentes do Estado deveriam ter uma ação diferente da que tinham, deveriam preservar a vida e garantir o direito de quem mora ali. Era uma questão básica saber se o morador considerava segurança pública como direito. Fórum – Tendo como base as suas conclusões, o que você pode falar sobre as Unidades de Polícia Pacificadora , as UPPs, no Rio? Elas atendem às necessidades das comunidades? Eliana – O estado do Rio de Janeiro vem implantando as UPPs tentando dar uma resposta a essa configuração do crime que a gente tem, com grupos armados controlando os territórios de favelas e de periferia. Tenho dúvidas se de fato essa linha é pensada com base naquestão do reconhecimento da necessidade de uma política pública que garanta aos moradores da favela o direito à segurança. Na verdade, é uma ação que pode ter como consequência o acesso em alguma medida a esse direito, como um efeito colateral. Quando você tira as armas, garante em alguma medida o ir e vir dos moradores, já que não há mais grupos armados que os acuem. De alguma maneira o efeito é que os moradores se sentem mais livres para circular. No entanto, isso não é garantia do direito à segurança. Ainda não dá para chamar a UPP de política pública. Ainda tem muito pouco tempo para avaliação. E ela foi implementada com base em alguns pressupostos equivocados sobre essa população. É um projeto muito focado numa ação bélica e considera muito pouco as dinâmicas locais. É como se a favela fosse um espaço homogêneo e todos os moradores estivessem envolvidos em atividades criminosas, só que isso não tem base na realidade. Quando a polícia vem com essas representações, vem também numa lógica muito autoritária. O objetivo de tirar as armas acaba justificando uma ação sob o paradigma bélico. Pelo fato de esses grupos criminosos atuarem historicamente, com as pessoas na favela se sentindo acuadas, o Estado se sente no direito de chegar com muito pouco entendimento sobre o papel que a população civil pode ter. Para esse programa se tornar uma política pública, deveria ser repensado e avaliado nesses termos. Ainda não há uma avaliação das possibilidades de mudança que as UPPs podem trazer. A gente não tem ainda claro se de fato esse programa se configura no reconhecimento de um direito, garantindo à cidade outra configuração do ponto de vista da segurança, não apenas em algumas áreas privilegiadas. Sem deixar de considerar a necessidade do Estado, as forças de segurança deveriam tentar criar alguma política, porque hoje a população de favela do Rio de Janeiro não tem acesso a determinados direitos com a justificativa de que grupos criminosos atuam no local, é como se o direito não pudesse chegar ali. Isso tem que ter uma resposta. A UPP pode ser uma resposta num primeiro momento, mas está muito longe de se configurar, de fato, num direito à segurança. É mais uma coisa de controle do que uma política que gradativamente vai reconhecendo aquele morador como um cidadão. Fórum – Há um discurso do Estado de que a UPP é um programa de posiciamento comunitário, justamente para aproximar a polícia do morador. Isso vem ocorrendo? Eliana – Existe a intenção de ter uma polícia de proximidade, comunitária, com outros valores e lidando com o cidadão com base em outra visão. Só que há uma distância entre a intenção de construir uma política pública de polícia comunitária e a implantação de um programa que tem uma agenda de funcionamento e pressão para que aconteça. O que percebo é que a formação dos policiais selecionados para ir para a UPP é muito básica e superficial, pouco consistente. Esse policial não vai ter um tempo de estudo e de vivência no campo da segurança que proporcione, quando for para uma área de favela, outra postura. Pela própria estrutura que esse programa tem e pela pressão que ele sofre, dificilmente você dá conta de mostrar para a população que a polícia está diferente. Tive recentemente uma reunião com líderes comunitários da Maré com representantes do Alemão, que já recebeu a UPP e a entrada do exército anteriormente, para saber o que funcionou e o que não funcionou e como as pessoas da Maré poderiam se preparar para receber a intervenção. O que esses líderes do Alemão falaram dessa relação com a polícia? O morador tem medo da polícia, não interage com ela. Pelo contrário, estamos tendo vários problemas, como na Rocinha. A polícia não incorporou uma lógica de proximidade, na qual o morador é reconhecido como cidadão. Volto sempre a esse ponto porque o grande problema é que o policial acha que está lá para salvar a pátria, e acaba interferindo em outras questões, dizendo que não pode ter baile funk, por exemplo. Ele abre mão de uma discussão que deveria ser mais focada no acesso à Justiça e ao direito à segurança para ordenar o espaço em outros campos que outros órgãos deveriam fazer. A polícia entra, ocupa os territórios de maneira bélica e, a partir daí, começa a se relacionar com base em demandas que são de ordem social. Em médio prazo isso não se sustenta. Fórum – Existe algum cronograma para a instalação da UPP na Maré? Eliana – Têm acontecido reuniões com os comandos e isso deve ser feito o mais rápido possível. Acreditamos que tenha a ver com essa agenda da Copa. Quando se pensa em locais como Rocinha, Alemão, Maré, maiores que 80% dos municípios, como se instala, numa área como a Maré, onde tem três comandos que rivalizam (Comando Vermelho, Terceiro Comando e a milícia), além do Batalhão da PM? É uma área muito mais complexa que o Alemão, que só tinha um comando. Isso acaba gerando uma conformação do ponto de vista da violência muito diferente da Maré em relação às outras do Rio. É a área mais complexa da cidade nesse sentido. Fórum – Voltando ao seu estudo, você pesquisou como os policiais enxergam os moradores da favela. Como se dá essa relação? Eliana – Eles trabalham com juízos construídos historicamente sobre essas populações. São populações que vivem muitas vezes de uma maneira acuada, como se dentro do território onde moram não pudessem exercer direitos mínimos, como ir e vir, por exemplo. Então se construíram estereótipos e representações sobre as populações de favela nos quais muitas vezes elas são criminalizadas e representam um perigo social. Sem dúvida, isso vai configurar políticas públicas pensadas a partir desses pressupostos, e não do reconhecimento daquele cidadão como outro qualquer, com direito à educação, à saúde, à segurança, à cultura. A polícia trabalha com esses juízos. Quando o policial vê o morador da favela, é como se visse alguém que faz parte de uma rede ilícita, que sabe o que acontece aqui e acolá. É óbvio que isso gera uma relação de distanciamento, de preconceito e uma visão estereotipada sobre quem é aquela pessoa. Fórum – Mas uma boa parte dos policiais tem como origem as favelas. Como se dá esse distanciamento da realidade pessoal depois que ele se torna policial? Eliana – Tem a questão da formação. Quando ele chega na polícia, há uma visão muito distante sobre o que de fato acontece, das práticas dessas comunidades. Acaba incorporando esse juízo que deveria combater e acreditando que de fato é muito difícil uma pessoa de favela não se envolver, não ter alguma implicação com as redes criminosas. Ele, de alguma maneira, adquire a mesma consciência de quem não mora, abrindo mão da sua experiência prática. Há questões subjetivas, culturais, sociais. Há algumas demandas no campo social que impedem que essas populações consigam exercer plenamente esses direitos. Fórum – Existe um desejo de diferenciação desse policial em relação à própria favela? Eliana – Ele se sente alguém que se esforçou individualmente, que tem uma outra história. Sentem-se excepcionais em relação a seus pares. Uma parte deles nega as suas origens. É como ver o negro agindo com racismo. São valores e questões que não são abordadas na formação. A formação do policial não dá conta, a ação policial é feita com base em representações. O favelado tem um biótipo, uma conduta, uma maneira de se expressar, se vestir. Eles não refletem sobre as questões que estão em torno desse contexto. Fórum – Mas a formação não dá conta disso ou deliberadamente incita essa estereotipação? Eliana – Não é incitar no sentido de querer colocar a questão num campo de batalha, mas são juízos cristalizados nas pessoas que formam esses profissionais. Não é à toa que eles são formados para combate, são convencidos de que existe uma guerra, que o tráfico é responsável por toda essa violência que acontece, sem considerar que na verdade os crimes são escolhidos do ponto de vista político para serem investigados. Em torno da questão das drogas, há todo um conjunto de interesses que leva a escolher esse tipo de crime como o crime a ser investigado. Na verdade, a pessoa que entra na academia para se tornar um profissional da segurança tem muito pouco contato com uma reflexão mais isenta dessa população, em que considere como pressupostos princípios de direitos humanos, de igualdade. Acho que é um processo muito mais profundo, no sentido de que os pobres sempre foram estigmatizados e colocados numa categoria de cidadãos de segunda classe. Se você pensa na segurança de quem mora no Leblon e na de quem mora na Maré, vai encontrar parâmetros completamente distintos, não haverá a compreensão de que quem mora no Leblon e na Maré têm o mesmo direito. Portanto, vamos construir uma política que dê conta desses direitos. Fórum – Está ocorrendo agora um clamor pela desmilitarização das polícias. A senhora concorda com essa reivindicação? Eliana – Na gestão federal anterior, fiz parte do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), representando o Rio de Janeiro e as favelas. Na realidade, esse debate é interessante, complexo e, óbvio, sou a favor da desmilitarização. A Polícia Militar foi pensada dentro de um determinado contexto. Ela já mudou muito nesse processo, em relação aos princípios militares. Por exemplo, até relativamente pouco tempo, não havia comando da PM que não fosse quadro do exército. Hoje, existem civis à frente da PM. O que não quer dizer que, do ponto de vista da estrutura da polícia, isso tenha significado mudança nas suas práticas. Não se modificou o estatuto que rege o seu funcionamento. O que acontece é que vai havendo mais pessoas que comandam dentro de uma lógica que, apesar de ser da PM, é mais aberta. Acho que esse debate é importante porque tem a ver com a formação. Quando se tem uma formação em que o foco é a militarização para enfrentar a violência e todo esse contexto de crimes, é óbvio que vai deixar de se considerar outros elementos que poderiam ser parte desse enfrentamento, não apenas o enfrentamento bélico. Você deixa de trazer outras questões e, com isso, acaba caracterizando a polícia apenas de um jeito. Na missão da PM, está prevista a prevenção do crime, só que a gente não vê a polícia agindo na prevenção, mas enfrentando situações muitas vezes de forma violenta, como a gente teve na Maré, situações que mereceriam abordagem e conduta completamente diferentes do profissional de segurança. Essa resposta também tem a ver com a lógica militar que rege essa polícia. O soldado tem determinados princípios a cumprir, independentemente se ele concorda ou não. São ordens, e ordens têm de ser cumpridas. No caso da PM, que tem de lidar com esse conjunto complexo de questões, a formação deveria abordar condutas diferentes dessa, que é apenas bélica. Fórum – As manifestações de junho colocaram a violência policial na pauta política do País. É frustrante perceber que isso só aconteceu porque as vítimas dessa violência foram a parcela mais privilegiada da população, na frente das câmeras, no centro da cidade? Eliana – É frustrante. Tem morador que diz: “A gente é considerado lixo, só dão importância para isso porque estão batendo na classe média”. Isso cria descrédito e imobilismo, ninguém sabe o que fazer. E acabam internalizando essa imagem. F
no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro (Tomaz Silva / ABr)[/caption] Fórum – É possível fazer um paralelo entre a história que abre seu livro (de Renan, 3 anos, morto pela polícia em uma incursão na Maré em 2006) e a ação policial que deixou dez mortos em junho desde ano? Há alguma diferença no tratamento da polícia de hoje e de então? Eliana Sousa Silva – Do ponto de vista da ação direta da polícia, nada mudou. Ela ainda entra na comunidade de maneira muito violenta, muitas vezes atingindo pessoas que não têm nada a ver com crime. Isso acontecia no passado, e continua acontecendo. O que está diferente é que, desde 2009, a gente vem tentando construir algum espaço de interlocução sobre o direito à segurança pública na Maré. A Redes da Maré tem um projeto chamado “Legítima Defesa: Diálogos sobre Segurança Pública na Maré”, que é uma tentativa de romper com esse medo do morador. Esse assunto é tabu, as pessoas têm medo de falar. Estamos tentando criar na Maré essa ideia de segurança pública como direito, partindo desse estudo. Em 2009, a Redes da Maré organizou uma conferência livre sobre segurança pública, que tinha a ver com a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, algo muito recente. A sociedade civil participa há pouco tempo desse processo de entender o que é a militarização. Outra campanha foi a “Somos da Maré, temos direitos”. O programa consiste em colar um adesivo em cada casa dizendo “Não entre nessa casa sem saber da legalidade dessa ação” e um panfleto sobre abordagem policial. Tudo isso com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade do cidadão se implicar nesse assunto. A gente vem conseguindo ter um diálogo com a cúpula. Tivemos várias reuniões com o comando do Batalhão da Maré e com a cúpula da polícia. Isso não quer dizer que eles acham que o que a gente faz é correto. Apesar de não haver essa percepção deles, a gente entende que existe uma abertura, coisa que não existia em 1995. Isso não vem se materializando em ação prática, mas acreditamos que é uma questão de tempo. Fórum – A ação que deixou dez mortos em junho foi uma tragédia anunciada ou uma surpresa para a comunidade? Eliana – Acho que foi uma surpresa. A Maré estava cercada pela PM e pela Força Nacional por conta da Copa das Confederações, não havia nenhuma ação da polícia entrando na comunidade na época. Desde o anúncio da UPP, em fevereiro, a polícia tem realizado operações para efetuar prisões de maneira bem complicada, mas não era o caso. Aliás, um mês antes já havia ocorrido uma ação bastante complicada, com invasão de casas, chave mestra, revistas ilegais [nessa ação, o equipamento do fotógrafo Bira Carvalho foi destruído]. Aquele evento específico, no entanto, não estava no planejamento. Dentro do contexto de uma manifestação próxima, alguns grupos começaram a roubar na Avenida Brasil, o que gerou a ação da polícia. Os grupos criminosos armados responderam e o sargento do Bope foi morto. Aí a polícia foi para cima. Eles não estavam cumprindo alguma ordem, foi o contexto que levou a isso, mas mostra o despreparo para lidar com situações como essa. Fórum – Qual a sua opinião sobre a política de Segurança Pública como um todo no estado? Eliana – Acho que tem muitos problemas. A política, de uma maneira geral, muitas vezes não é para quem precisa. É voltada para impactar em questões mais visíveis para fora. São medidas que consideram muito pouco a demanda real dos moradores. A política mais importante, a UPP, não se configura como política. E existem muitos questionamentos, porque há uma corrupção muito pulverizada por todos os níveis, e há pouca mudança nessa estrutura, considerando o conjunto dos cidadãos que mora no estado. A segurança é sempre para os mesmos. Fórum – Qual é a história do livro Testemunhos da Maré e qual a sua motivação para pesquisar o tema da violência policial? Eliana – O livro é o resultado da pesquisa de doutorado sobre a ação da Polícia Militar em favelas. Escolhi a Maré para ser meu campo de estudos por conta da minha trajetória. Cheguei com 7 anos à Maré e cresci lá. Minha questão era entender por que a ação da polícia, de uma forma sistemática e histórica, era tão violenta, tão complicada em relação aos moradores dali. Tentei compreender como a polícia agia da maneira que eu testemunhava ao longo do tempo e a representação do policial sobre a própria ação, saber como a população via a ação da polícia e como os grupos criminosos armados viam essa ação. O morador da favela, de uma maneira geral, entende o conceito de segurança pública como mais um direito ao qual ele tem acesso, como tem claramente em relação à saúde? Coloquei a segurança pública no campo do direito. Para mim, era importante saber se o morador tinha claro que os agentes do Estado deveriam ter uma ação diferente da que tinham, deveriam preservar a vida e garantir o direito de quem mora ali. Era uma questão básica saber se o morador considerava segurança pública como direito. Fórum – Tendo como base as suas conclusões, o que você pode falar sobre as Unidades de Polícia Pacificadora , as UPPs, no Rio? Elas atendem às necessidades das comunidades? Eliana – O estado do Rio de Janeiro vem implantando as UPPs tentando dar uma resposta a essa configuração do crime que a gente tem, com grupos armados controlando os territórios de favelas e de periferia. Tenho dúvidas se de fato essa linha é pensada com base naquestão do reconhecimento da necessidade de uma política pública que garanta aos moradores da favela o direito à segurança. Na verdade, é uma ação que pode ter como consequência o acesso em alguma medida a esse direito, como um efeito colateral. Quando você tira as armas, garante em alguma medida o ir e vir dos moradores, já que não há mais grupos armados que os acuem. De alguma maneira o efeito é que os moradores se sentem mais livres para circular. No entanto, isso não é garantia do direito à segurança. Ainda não dá para chamar a UPP de política pública. Ainda tem muito pouco tempo para avaliação. E ela foi implementada com base em alguns pressupostos equivocados sobre essa população. É um projeto muito focado numa ação bélica e considera muito pouco as dinâmicas locais. É como se a favela fosse um espaço homogêneo e todos os moradores estivessem envolvidos em atividades criminosas, só que isso não tem base na realidade. Quando a polícia vem com essas representações, vem também numa lógica muito autoritária. O objetivo de tirar as armas acaba justificando uma ação sob o paradigma bélico. Pelo fato de esses grupos criminosos atuarem historicamente, com as pessoas na favela se sentindo acuadas, o Estado se sente no direito de chegar com muito pouco entendimento sobre o papel que a população civil pode ter. Para esse programa se tornar uma política pública, deveria ser repensado e avaliado nesses termos. Ainda não há uma avaliação das possibilidades de mudança que as UPPs podem trazer. A gente não tem ainda claro se de fato esse programa se configura no reconhecimento de um direito, garantindo à cidade outra configuração do ponto de vista da segurança, não apenas em algumas áreas privilegiadas. Sem deixar de considerar a necessidade do Estado, as forças de segurança deveriam tentar criar alguma política, porque hoje a população de favela do Rio de Janeiro não tem acesso a determinados direitos com a justificativa de que grupos criminosos atuam no local, é como se o direito não pudesse chegar ali. Isso tem que ter uma resposta. A UPP pode ser uma resposta num primeiro momento, mas está muito longe de se configurar, de fato, num direito à segurança. É mais uma coisa de controle do que uma política que gradativamente vai reconhecendo aquele morador como um cidadão. Fórum – Há um discurso do Estado de que a UPP é um programa de posiciamento comunitário, justamente para aproximar a polícia do morador. Isso vem ocorrendo? Eliana – Existe a intenção de ter uma polícia de proximidade, comunitária, com outros valores e lidando com o cidadão com base em outra visão. Só que há uma distância entre a intenção de construir uma política pública de polícia comunitária e a implantação de um programa que tem uma agenda de funcionamento e pressão para que aconteça. O que percebo é que a formação dos policiais selecionados para ir para a UPP é muito básica e superficial, pouco consistente. Esse policial não vai ter um tempo de estudo e de vivência no campo da segurança que proporcione, quando for para uma área de favela, outra postura. Pela própria estrutura que esse programa tem e pela pressão que ele sofre, dificilmente você dá conta de mostrar para a população que a polícia está diferente. Tive recentemente uma reunião com líderes comunitários da Maré com representantes do Alemão, que já recebeu a UPP e a entrada do exército anteriormente, para saber o que funcionou e o que não funcionou e como as pessoas da Maré poderiam se preparar para receber a intervenção. O que esses líderes do Alemão falaram dessa relação com a polícia? O morador tem medo da polícia, não interage com ela. Pelo contrário, estamos tendo vários problemas, como na Rocinha. A polícia não incorporou uma lógica de proximidade, na qual o morador é reconhecido como cidadão. Volto sempre a esse ponto porque o grande problema é que o policial acha que está lá para salvar a pátria, e acaba interferindo em outras questões, dizendo que não pode ter baile funk, por exemplo. Ele abre mão de uma discussão que deveria ser mais focada no acesso à Justiça e ao direito à segurança para ordenar o espaço em outros campos que outros órgãos deveriam fazer. A polícia entra, ocupa os territórios de maneira bélica e, a partir daí, começa a se relacionar com base em demandas que são de ordem social. Em médio prazo isso não se sustenta. Fórum – Existe algum cronograma para a instalação da UPP na Maré? Eliana – Têm acontecido reuniões com os comandos e isso deve ser feito o mais rápido possível. Acreditamos que tenha a ver com essa agenda da Copa. Quando se pensa em locais como Rocinha, Alemão, Maré, maiores que 80% dos municípios, como se instala, numa área como a Maré, onde tem três comandos que rivalizam (Comando Vermelho, Terceiro Comando e a milícia), além do Batalhão da PM? É uma área muito mais complexa que o Alemão, que só tinha um comando. Isso acaba gerando uma conformação do ponto de vista da violência muito diferente da Maré em relação às outras do Rio. É a área mais complexa da cidade nesse sentido. Fórum – Voltando ao seu estudo, você pesquisou como os policiais enxergam os moradores da favela. Como se dá essa relação? Eliana – Eles trabalham com juízos construídos historicamente sobre essas populações. São populações que vivem muitas vezes de uma maneira acuada, como se dentro do território onde moram não pudessem exercer direitos mínimos, como ir e vir, por exemplo. Então se construíram estereótipos e representações sobre as populações de favela nos quais muitas vezes elas são criminalizadas e representam um perigo social. Sem dúvida, isso vai configurar políticas públicas pensadas a partir desses pressupostos, e não do reconhecimento daquele cidadão como outro qualquer, com direito à educação, à saúde, à segurança, à cultura. A polícia trabalha com esses juízos. Quando o policial vê o morador da favela, é como se visse alguém que faz parte de uma rede ilícita, que sabe o que acontece aqui e acolá. É óbvio que isso gera uma relação de distanciamento, de preconceito e uma visão estereotipada sobre quem é aquela pessoa. Fórum – Mas uma boa parte dos policiais tem como origem as favelas. Como se dá esse distanciamento da realidade pessoal depois que ele se torna policial? Eliana – Tem a questão da formação. Quando ele chega na polícia, há uma visão muito distante sobre o que de fato acontece, das práticas dessas comunidades. Acaba incorporando esse juízo que deveria combater e acreditando que de fato é muito difícil uma pessoa de favela não se envolver, não ter alguma implicação com as redes criminosas. Ele, de alguma maneira, adquire a mesma consciência de quem não mora, abrindo mão da sua experiência prática. Há questões subjetivas, culturais, sociais. Há algumas demandas no campo social que impedem que essas populações consigam exercer plenamente esses direitos. Fórum – Existe um desejo de diferenciação desse policial em relação à própria favela? Eliana – Ele se sente alguém que se esforçou individualmente, que tem uma outra história. Sentem-se excepcionais em relação a seus pares. Uma parte deles nega as suas origens. É como ver o negro agindo com racismo. São valores e questões que não são abordadas na formação. A formação do policial não dá conta, a ação policial é feita com base em representações. O favelado tem um biótipo, uma conduta, uma maneira de se expressar, se vestir. Eles não refletem sobre as questões que estão em torno desse contexto. Fórum – Mas a formação não dá conta disso ou deliberadamente incita essa estereotipação? Eliana – Não é incitar no sentido de querer colocar a questão num campo de batalha, mas são juízos cristalizados nas pessoas que formam esses profissionais. Não é à toa que eles são formados para combate, são convencidos de que existe uma guerra, que o tráfico é responsável por toda essa violência que acontece, sem considerar que na verdade os crimes são escolhidos do ponto de vista político para serem investigados. Em torno da questão das drogas, há todo um conjunto de interesses que leva a escolher esse tipo de crime como o crime a ser investigado. Na verdade, a pessoa que entra na academia para se tornar um profissional da segurança tem muito pouco contato com uma reflexão mais isenta dessa população, em que considere como pressupostos princípios de direitos humanos, de igualdade. Acho que é um processo muito mais profundo, no sentido de que os pobres sempre foram estigmatizados e colocados numa categoria de cidadãos de segunda classe. Se você pensa na segurança de quem mora no Leblon e na de quem mora na Maré, vai encontrar parâmetros completamente distintos, não haverá a compreensão de que quem mora no Leblon e na Maré têm o mesmo direito. Portanto, vamos construir uma política que dê conta desses direitos. Fórum – Está ocorrendo agora um clamor pela desmilitarização das polícias. A senhora concorda com essa reivindicação? Eliana – Na gestão federal anterior, fiz parte do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), representando o Rio de Janeiro e as favelas. Na realidade, esse debate é interessante, complexo e, óbvio, sou a favor da desmilitarização. A Polícia Militar foi pensada dentro de um determinado contexto. Ela já mudou muito nesse processo, em relação aos princípios militares. Por exemplo, até relativamente pouco tempo, não havia comando da PM que não fosse quadro do exército. Hoje, existem civis à frente da PM. O que não quer dizer que, do ponto de vista da estrutura da polícia, isso tenha significado mudança nas suas práticas. Não se modificou o estatuto que rege o seu funcionamento. O que acontece é que vai havendo mais pessoas que comandam dentro de uma lógica que, apesar de ser da PM, é mais aberta. Acho que esse debate é importante porque tem a ver com a formação. Quando se tem uma formação em que o foco é a militarização para enfrentar a violência e todo esse contexto de crimes, é óbvio que vai deixar de se considerar outros elementos que poderiam ser parte desse enfrentamento, não apenas o enfrentamento bélico. Você deixa de trazer outras questões e, com isso, acaba caracterizando a polícia apenas de um jeito. Na missão da PM, está prevista a prevenção do crime, só que a gente não vê a polícia agindo na prevenção, mas enfrentando situações muitas vezes de forma violenta, como a gente teve na Maré, situações que mereceriam abordagem e conduta completamente diferentes do profissional de segurança. Essa resposta também tem a ver com a lógica militar que rege essa polícia. O soldado tem determinados princípios a cumprir, independentemente se ele concorda ou não. São ordens, e ordens têm de ser cumpridas. No caso da PM, que tem de lidar com esse conjunto complexo de questões, a formação deveria abordar condutas diferentes dessa, que é apenas bélica. Fórum – As manifestações de junho colocaram a violência policial na pauta política do País. É frustrante perceber que isso só aconteceu porque as vítimas dessa violência foram a parcela mais privilegiada da população, na frente das câmeras, no centro da cidade? Eliana – É frustrante. Tem morador que diz: “A gente é considerado lixo, só dão importância para isso porque estão batendo na classe média”. Isso cria descrédito e imobilismo, ninguém sabe o que fazer. E acabam internalizando essa imagem. F