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Viagem antropológica ao mundo guarani-kaiowa: por que suicídios são protesto, ritual e porformance de cultura que sobrevive por um fio
Reportagem de Fabiane Borges e Verenilde Santos para o Outras Palavras
Quando um grupo de guaranis-kaiowas anunciou, há semanas, que prefere a morte a ter de abandonar suas terras ancestrais reconquistadas, uma onda de alarme se espalhou entre parte da opinião pública. Para que ela não se dissipe, vale conhecer o drama e a cultura destes índios, que se suicidam diante do esvaziamento de seu mundo.
As escritoras Fabiane Borges e Verenilde Santos visitaram por meses os territórios guaranis-kaiowas no Mato Grosso do Sul em 2008. Um dos resultados de sua presença foi uma reportagem antropológica publicada no então “Caderno Brasil” do “Le Monde Diplomatique” — uma iniciativa de mídia livre que foi procursor de “Outras Palavras”. Tanto a relevância quanto a atualidade do texto são maiores que nunca. Por isso, ele está republicado a seguir (Antonio Martins).
Performance ritual:
O dia amanhece com um índio guarani-kaiowa enforcado. Cadarço de tênis esticado da árvore. Banho tomado, perfumado, de joelhos.
A aldeia bororo sabe do que se trata: do jejuvy. Isso não é conforto, é ritual de morte. A palavra jejuvy na língua dos Guarani [1] tem uma carga semântica que significa aperto na garganta, voz aniquilada, impossibilidade de dizer, palavra sufocada, alma presa. É através do ritual do jejuvy que os kaiowas praticam o suicídio, por enforcamento ou ingestão de veneno. Apesar de ser reconhecido como prática ritual ancestral, nos últimos anos o jejuvy alastra-se pelas aldeias em escala epidêmica. São cerca de 50 suicídios por ano, envolvendo jovens de 9 a 14 anos de idade [2].
Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o número de suicídios começou a aumentar nos anos 80, dobrou na década de 90 e bateu o recorde na virada do século 21, chegando aos mais de 50 por ano. Não são temas deste artigo as mortes por desnutrição, os homicídios entre os próprios indígenas ou as guerras incessantes entre indígenas e fazendeiros, fatos igualmente chocantes. [3]
Os suicídios (jejuvy) são efetuados basicamente por enforcamento (método antigo) e ingestão de venenos das monoculturas (método novo). Rejeita-se a “poluição” como derramamento de sangue ou cortes físicos, para que não se perca a palavra. Muitos guaranis consideram o suicídio uma doença produzida pela prisão da palavra (alma). É pela boca que a palavra se liberta. Se não há lugar para a palavra, não há vida. Por isso, na hora de morrer, não deve ser utilizado o corte contra si mesmo, pois a palavra se dispersaria. Sufocando-a, ela permaneceria como um aglomerado de energia e poderia voltar a vingar em algum outro momento.
Conforme narrativas dos próprios kaiowa sobre índios que cometeram suicídio, eles unificam elos que vão desde o ato individual inerente à condição humana e solitária de cada um, até o sentido político de coletividade, um “estar entre os outros”, produzindo simbologias-limites: os enforcamentos, os envenenamentos. Atos que condensam e apontam para o resgate, talvez impossível de uma “forma de ser”, como os kaiowas costumam falar. E se para eles a linguagem é uma das mais importantes formas de fazer o ser se manifestar, ao impedi-la, impede-se também os sujeitos de existirem. O suicídio epidêmico seria a resposta coletiva à impossibilidade de expressar a singularidade desse povo.
Se até cerca de 40 anos atrás, os kaiowa e nhandeva moravam em casas grandes denominadas ogajekutu-ogaguasu, reunindo até cem pessoas de uma mesma família, hoje vivem em casas minúsculas, muitas ainda feitas de barro, sem a proteção da floresta, abrigando apenas a família nuclear. A estrutura da família extensa, cuja chefia baseia-se no prestígio e religiosidade, desorganizou-se, visto que os indígenas não conseguiram substituir seu prestígio cultural pelo poder dos brancos. Com a dizimação de suas terras, sem os ritos do plantio, da colheita, das sagas coletivas de caça e pesca, eles não têm razões para continuar com seus ritos, e conforme perdem as práticas com a terra perdem também sua cultura. Mesmo que ainda subsista, de forma curiosa, a língua guarani, que é o maior foco de insistência e resistência dessa coletividade.
Muitos grupos indígenas, inclusive guarani kaiowa, vivem em acampamentos precários dentro das fazendas dos latifundiários, que em nome do expansionismo ou de mais alguma razão macha e injustificável, tomaram à força suas terras — e ainda tomam, com armas desiguais. Isso é um dos motivos mais apontados por indígenas, indigenistas e antropólogos para a causa da epidemia de suicídios entre os guaranis kaiowa: a perda da terra, da tekoha, o lugar onde “realizam seu modo de ser”.
Se por um lado os suicídios por enforcamento ou pela ingestão de veneno podem significar o sufocamento, também podem significar o desejo da libertação — e é nesse ponto que o suicídio ritual funciona como performance ética, estética e interventiva. Gestos de enunciação. O trágico funcionando como dispositivo de reversão sígnica sobre a questão indígena. Desde que a “epidemia suicida” começou a se alastrar nas aldeias, ativistas, estudantes, pesquisadores, pessoas ligadas à mídia independente passaram a olhar com mais atenção a essa situação, fazer alianças e se tornar cooperadores na luta pela terra guarani, de forma a amplificar esses sinais, até então emitidos em total invisibilidade. Há alguns grupos indígenas, principalmente professores indígenas ligados à universidade e lideranças locais, que dedicam sua vida a essa causa, sendo que o número de líderes mortos nessa empreitada supera nossa imaginação.
Apesar de muitos dos suicídios serem praticados em locais mais resguardados, existe um grande número de casos que ocorrem em lugares de perambulação, os lugares “públicos” da aldeia, como estradas, roças, áreas onde o corpo suicida pode ser visto sem muita dificuldade. São nuances que ajudam a esclarecer e também interrogar sobre essa forma de morrer. Não compactuar com a dizimação, com o genocídio, com o etnocídio. Não se acovardar diante do destino, ter o ato bravo e último como forma de amplificar os sinais da miserabilidade que foram submetidos. As árvores, os arbustos, as roças, qualquer lugar que tenha sido utilizado para o suicídio torna-se marco da aldeia e fica cravado no imaginário, na linguagem cotidiana e na sua luta contra o confinamento. Os mortos continuam falando especialmente para os corações sensíveis, ainda conectados em crenças de espíritos da natureza e nas emissões dos seus sinais.
Os ritos, as danças, os cantos as lutas sobrevivem por pura insistência. A sensação que tivemos ao estarmos na aldeia bororó é que essa cultura sobrevive por um fio muito tênue e belo. Como uma voz que se força a falar, mas já não soa como costumava. Mesmo afônica, agônica, gaga, insiste em se manifestar. Ritual de rememoração. Resíduo. Resistência de certos cantos e gestos. As danças de luta dos guaranis kaiowas lembram as lutas marciais, lutas de espadas. São feitas de pedaços de paus, facas, pedras assemelhando-se a lutas ninjas.
Dona Tereza Guarani é uma das últimas velhas da aldeia. Conduz os ritos na aldeia bororó com o rosto enrugado e concentrado, mãos fortes que movimentam o maracá, passos contundentes que provocam o som retumbante no chão de barro. No êxtase, provocado pelos cantos, que sentimos, nos perguntamos como é possível que ainda cantem e dancem e lutem dessa forma. Em nome de qual força? Dona Tereza faz um esforço explícito para que essa cultura kaiowa se mantenha, pois a grande maioria do seu povo não vê motivo para continuar os ritos. Muitos já não sabem mais como eram as danças e as batidas. A velha índia Tereza, a rezadeira, curandeira, a mulher compromissada com os rituais culturais da aldeia, toma para si o encargo de dar suporte de memória e sentido aos ritos dos antepassados. Coloca os filhos e netos e amigos para aprender os cantos e as danças, antes de morrer. Essa é a função para a qual dedica sua vida. Mesmo seu poder de xamã não a impediu de presenciar muitos suicídios em sua própria família.
Apego à vida é um imperativo da dominacão, do exercício de poder – e da inclusão. Quando há coisa mais intensa que o apego a vida, há mídia tática, há resistência, há potência de protesto. Porém o que é que os kaiowás amam mais do que a sobrevivência? É isto que grita de maneira abafada ainda pelo espaço público da aldeia, que é favela que é cidade que é campo. Tem alguma coisa que estes indígenas desejam mais do que serem incluídos na pasmaceira da biopolítica globalizada, na miserabilidade imposta pela política neoliberal. É uma forma de vida que não se contenta com a sobrevivência miserável do branco ou do índio. Nesse caso pensamos que não se trata de inclusão indígena na sociedade nacional, mas da mobilização da sociedade para a retomada das terras indígenas para colaborar no processo desse outro índio que o próprio índio não sabe e tem que devir.
As lutas de movimentos agrários no Brasil se intensificaram ao longo desses últimos 30 anos e cada vez ganham maior visibilidade mundial em função da sua extrema importância. A luta indígena é mais uma das lutas agrárias do pais, a mais antiga, a mais usurpada e dizimada. Os processos de homologação e assentamentos estão longe do seu fim e é com muito esforço, tensão e mortes que se efetivam suas realizações.
Nosso desafio em gerar uma rede de colaboração capaz de mudar a percepção social sobre pontos enredados da sociedade é urgente e de grande relevância. Mais do que mudança perceptiva, é necessário a ampliação do próprio espectro relacional dos movimentos sociais, para que ganhem possibilidades de ação diversas. O papel que a mídia tática, Greenpeace e CMI (centro de mídia independente) têm exercido nesses contextos é uma abertura para ajudar a pensar em como grupos autônomos, organizados ou não, podem atuar junto aos movimentos e às lutas sociais (nosso grande espaço público). Ainda são precárias suas atuações, mas sinalizam possibilidades. Para além da denúncia e do apoio, é preciso criar meios que se tornem mais incisivos na efetivação de certos projetos políticos dos movimentos da sociedade civil, como é o caso da campanha pró-guarani foi lançada em setembro de 2007 e que recém começa a aparecer para a sociedade geral [4].
Essa campanha mídica, ativista, feita na sua maioria por lideranças indígenas guaranis e apoiada pelo CIMI, reclama o reconhecimento das 32 terras indígenas do povo guarani, reclama o desaceleramento do mercado agropecuário na região do Mato Grosso do Sul, o reflorestamento das áreas dizimadas, o respeito e reconhecimento de um tempo que não precisa ser igual para todo mundo. Mas também reivindicam o acesso ao que há de relevante na sociedade (inter)nacional, levando em conta as conquistas da ciência e da tecnologia, etc.
Há muito o que pensar na intervenção desses suicídios no imaginário social branco, indígena, mestiço. Mas uma coisa é certa: essas mortes têm evidenciado o impasse que esses indíos vivem, e chegam até nós como sinalizadores dessa condição insuportável, indígna, vergonhosa que os ideais de civilização, de desenvolvimento e de crescimento econômico provocam. É preciso agir antes que toda diferença morra
Outras fontes de pesquisa:
http://www.campanhaguarani.org.br
http://www.midiatatica.info
http://www.rizoma.net
http://hemi.nyu.edu
http://www.midiaindependente.org
[1] Os índios guarani estão divididos em três grupos: guarani-nhendeva, guarani-kaiowá e guarani-mbyá. À época da chegada dos europeus, esses indígenas somavam cerca de quatro milhões de pessoas. Atualmente existem cerca de quarenta mil, espalhadas pelas regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil. No Mato Grosso, calcula-se que existam cerca de 27.500, pessoas espalhadas em 22 pequena áreas. Sendo que a aldeia bororó, apresentada nesse texto, abriga 12 mil índios guaranis- kaiowas, comprimidos em 3.600 hectares de terra improdutiva e sem mata. Aí existem mais de 90 igrejas entre católicas, evangélicas e espíritas, que disputam os indígenas entre si conforme suas crenças e métodos de conversão.
O território dos índios guarani estendia-se ao Norte, até os rios Apa e dourados e ao Sul até a Serra de Maracaju e os afluentes do rio Jejuí, chegando a uma extensão Leste-Oeste de aproximadamente 100 quilômetros, em ambos os lados da serra de Amambai abrangendo uma extensão de terra de aproximadamente 40 mil km2, dividida pela fronteira Brasil-Paraguai.
[2] Este número cresceu após a reportagem. Entre 2003 e 2010 foram, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 555 suicídios, ou mais de um a cada cinco dias.
[2] Ver mais em Ambiente em Foco
[3] http://www.campanhaguarani.org.br