A criação de peixes e o cultivo de forragens resolvem o problema dos resíduos deixados pela dessalinização da água em uma comunidade do sedento nordeste brasileiro.
Por Adalberto Wodianer Marcondes
A Caatinga retratada por Graciliano Ramos em “Vidas Secas”, onde o sertanejo é derrotado pela natureza dura, expulso da terra pela impossibilidade de um futuro, não é mais a realidade em um pequeno pedaço do Sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte. Caatinga Grande, um assentamento da reforma agrária feito em 1989, perto do pequeno município de São José do Seridó, a quase 300 km de Natal, é um modelo de desenvolvimento que vai servir como vitrine para tecnologias inovadoras, e ao mesmo tempo simples, de desenvolvimento social e econômico, o Programa Água Doce.
Na vila modesta, com a igreja dedicada a Santa Rita ao fundo, as casas são a prova de que a miséria foi espantada da região. Sem luxo e com dignidade, a comunidade de Caatinga Grande foi escolhida para testar uma tecnologia inovadora. Dona de um dos milhares de poços de água salobra cavados pelo sertão nordestino, a comunidade tem um dessalinizador que produz dez litros de água potável por dia para cada um de seus 355 habitantes. Isto é o suficiente para o consumo e para cozinhar. Água para outros fins não precisa ser potável. No entanto, a tecnologia de dessalinização gera um resíduo muito inconveniente: “Para cada litro de água potável temos um litro de água saturada em sais”, explica Odilon Juvino de Araújo, técnico da Embrapa que atua na comunidade. Essa água salinizada, quando descartada no solo contamina a terra e mata as plantas, conta o sertanejo Deda, batizado José Anselmo Filho.
Jogar fora a água salgada sempre foi para a comunidade um grande problema e já estava causando conflito com a vizinhança. O desafio sobre o que fazer com este resíduo foi levado à Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuária), que em Petrolina, em Pernambuco, já desenvolvia pesquisas nesta direção. “Viemos para resolver um problema ambiental”, explica Odilon, e acabamos criando um círculo virtuoso a partir do dessalinizador.
A menos de trezentos metros fora da vila se avistam três “piscinas”. Elas são parte da solução encontrada pela Embrapa e recebida, em princípio, com uma certa desconfiança pela população. “Já prometeram muita coisa, a gente aprende a desconfiar”, diz Netinha, sertaneja orgulhosa da vida que construiu no assentamento de Caatinga Grande. “Agora é diferente, já tem resultado”, diz ela apontando os peixes que saltam no tanque cheio de água salobra.
O sistema é simples, a água potável do dessalinizador vai para uma caixa d´água que abastece a comunidade, e a água residual vai para dois tanques onde é feita a criação de tilápia rosa, variedade híbrida do gênero Oreochromis, um peixe resistente e que gosta de águas com alto conteúdo mineral. Ao lado destes tanques tem um terceiro, para onde vai a água já servida pelos peixes, rica em minerais e em matéria orgânica. Esta água, com grande potencial de poluição, é usada para irrigar uma área plantada com erva sal (Atriplex nummularia), um arbusto forrageiro de origem australiana, que gosta de sal e serve como complemento alimentar para ovelhas e cabras criadas na região.
Cícero Martins da Costa, mais conhecido como “Pai dos Peixes”, é um dos responsáveis pelo cuidado cotidiano da criação de peixes. “Demorou para acreditar nesta história, mas agora os peixes estão gordos e vai dar uma boa pesca”, conta. A expectativa é de 800 quilos de tilápia rosa, que poderão ser vendidos ou consumidos pela comunidade. “É renda que não existia”, diz ele. O tesoureiro Miguelinho, responsável pela arrecadação e divisão dos resultados do projeto, conta que os dois tanques de peixes não são povoados simultaneamente. “Existe uma brecha de três meses entre cada um, os peixes estão prontos para pescar em seis meses. Com os dois tanques a gente consegue tirar peixe a cada três meses”. Desta forma a comunidade tem peixe quatro vezes por ano e não apenas duas, o que distribui melhor os resultados do projeto.
No final de março a comunidade de Caatinga Grande entrou em dias de festa. Autoridades e técnicos foram até lá para conhecer as instalações e ver como uma tecnologia simples, barata e de fácil replicação pode ajudar a resolver os problemas do semi-árido e dar um grande impulso ao desenvolvimento local. Iberê Ferreira de Souza, vice-governador do Rio Grande do Norte, que também acumula a Secretaria de Meio Ambiente, vê no Programa Água Doce a redenção para centenas de comunidades do semi-árido. “Temos mais de 400 dessalinizadores espalhados por este sertão, e mais da metade parados por falta de manutenção”, diz.
Caatinga Grande recebeu com satisfação gente importante do governo do Estado e do Governo Federal. Tudo para mostrar que desta vez o dinheiro foi bem gasto. Não sumiu pelo ralo da “indústria da seca” que há séculos sangra os cofres públicos sem dar água a ninguém. João Bosco Senra, secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, acredita que em pouco tempo esta tecnologia poderá ser utilizada em muitos dos dois mil poços já existentes no semi-árido, região que vai do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, passando pelos estados da Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte e Ceará. “Estamos desenvolvendo novos materiais para os dessalinizadores, para tornar mais fácil e barata a manutenção”, explica.
Senra acredita que apenas com a comunidade assumindo a responsabilidade pela implantação e manutenção dos equipamentos será possível mantê-los sempre operacionais. “Não tem sentido precisar de técnicos que vêm da capital para consertar bombas e trocar filtros”, ressalta.
E esta capacitação da população local para operar todas as fases do projeto teve sucesso em Caatinga Grande, graças ao suporte da Embrapa Semi-Árido, que desenvolveu a tecnologia de criação dos peixes e uso da erva sal em uma instalação piloto em Petrolina, Pernambuco. Odilon Juvino explica que o desafio era “o que fazer com a água salobra que sai do dessalinizador”. Deste desafio surgiu uma solução integrada que dá água potável, peixes e ração para cabras e ovelhas. Um modelo de desenvolvimento social que aponta para um horizonte de sustentablidade.
Uma conta nada salgada Ao contrário da água salgada que sobra dos dessalinizadores, a conta paga pela Fundação Banco de Brasil (FBB) para a implantação do Projeto Água Doce no semi-árido nordestino tem um sabor de qualidade de vida. Cada uma das instalações - que inclui conserto e modernização dos dessalinizadores, construção dos tanques de criação de tilápias, bombas para a movimentação da água, plantio de erva sal e assistência técnica da Embrapa e do Ministério do Meio Ambiente - custa para a FBB cerca de R$ 70 mil. “Este é um dinheiro muito bem gasto”, diz o presidente da Fundação, Jacques de Oliveira Pena. “São cerca de R$ 0,50 por pessoa por dia, para garantir água potável de qualidade, saneamento ambiental, alimento, renda e estímulo à produção pecuária caprina”, resume Pena. Isto apenas no primeiro ano, porque depois as contas da FBB mostram que o projeto torna-se auto-suficiente apenas com a renda que poderá ser obtida com os peixes.
O desenvolvimento local e as tecnologias sociais são focos prioritários de investimento da Fundação Banco do Brasil, uma organização criada em 1985 para direcionar recursos para o desenvolvimento social de áreas de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Jacques Pena, que está em seu segundo mandato à frente da organização, explica que, no início, a FBB apoiava projetos em diversas áreas, como construção de praças e atividades diversas. “Hoje temos mais foco, atuamos na área social com tecnologias que promovam o desenvolvimento humano e apoiamos algumas ações na área cultural”, explica.
Para ele, o Projeto Água Doce é exatamente o foco de atuação da Fundação. Contribui para várias metas de desenvolvimento, como água potável, segurança alimentar e geração de renda. A FBB vai aplicar ao todo R$ 2,8 milhões na recuperação de poços e dessalinizadores em todo o semi-árido, além da construção dos tanques de peixes e áreas para a plantação da erva sal. Estas áreas são cercadas com lonas plásticas de contenção para que a água salgada não escape para o lençol freático.
Jacques Pena, com a experiência de quem visita centenas de projetos sociais em todo o Brasil, vê em Caatinga Grande uma experiência que pode ser replicada com sucesso. “O importante é ter o que mostrar para o sertanejo”, diz ele. “Este projeto vai servir de modelo e referência, outras comunidades poderão mandar representantes para conhecer e ver como funciona”, explica o executivo. Desta forma, o modelo “São Tomé” vai ajudar a melhorar a qualidade de vida, todo mundo vai poder ver para crer.
(*) O autor é diretor da Agência Envolverde.