A guerra do clima já começou

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Um dos melhores livros que lí este ano foi American War de Omar El Akkad. A ficção escrita por este jornalista egípcio que vive atualmente no Canadá, imagina os Estados Unidos em 2074, depois da eclosão da segunda guerra civil. Este conflito imaginado por El Akkad descreve uma rebelião no sul dos EUA pelo direito de usar o petróleo, repetindo as linhas gerais da primeira guerra civil travada duzentos anos antes pelo direito de propriedade sobre outros seres humanos, comumente conhecida como escravidão. Interessante não? El Akkad foi cirurgicamente visionário ao antecipar na ficção uma decisão que está muito mais perto do que imaginamos. Em algum momento no futuro próximo vamos ter de proibir ou no mínimo reduzir drasticamente o uso de combustíveis fósseis. No livro o norte dos EUA impõe medidas restritivas ao uso dos derivados de petróleo, ao que um sul inundado pela subida do nível do mar responde com uma rebelião armada. O uso do petróleo com todos os seus malefícios é defendido pelos sulistas como uma questão de “estilo de vida” e sobrevivência econômica contra forças “externas”, exatamente como defendiam a escravidão no século XIX. Interessante perceber que, no mundo real, a França acaba de banir motores a gasolina e diesel a partir de 2040, forçando a indústria automobilística a abraçar de verdade energias renováveis, gerando um efeito cascata importante pelo mundo todo. Outros países industrializados não tardarão ao fazer o mesmo, deixando os EUA, a Rússia e os reinos Árabes com bilhões de barris de óleo e gás encalhados. Mais uma vez a ficção traz a melhor explicação para a realidade, como Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley ou 1984 de George Orwell. A guerra do clima, já teorizada por Naomi Klein nos imperdíveis Shock Doctrine e This Changes Everything já começou e já nos ajuda a entender vários dos acontecimentos dos últimos 2 anos. A eleição de Donald Trump, com financiamento da industria do petróleo e apoio Russo, mostra o quanto estes dois atores estão dispostos a pagar para adiar a mudança tecnológica que vai fazer o petróleo ser em breve lembrado como o motor do século XX, assim como a escravidão foi o motor dos séculos XVIII e XIX.  Claro que isto não significa a proibição total do uso do petróleo como na ficção de El Akkad mas certamente implica a perda de poder econômico e político de toda a cadeia de exploração de combustíveis fósseis. Neste momento Alemanha, Japão e França saem na frente na mudança de matriz energética, com a China jogando dos dois lados e os EUA e a Russia se posicionando como perdedores no curto prazo. Digo curto prazo porque os EUA investiram pesadamente em processos de fracionamento de rochas e recuperaram um grau alto de independência energética, mas ainda colocaram a potência de seu mercado de investimentos a serviço da mudança energética. Há quem diga que esta mudança virá mais cedo ou mais tarde porque a pesquisa básica e os instrumentos financeiros mais cedo ou mais tarde ganharão escala, principalmente com a liderança da California. No entanto a eleição de Trump mostra que a indústria do petróleo, juntamente com o complexo militar que ganha bilhões para sustentar as intervenções no Oriente Médio estão dispostos a tudo para resistir. Por isso a ficção de El Akkad se aproxima da realidade a cada dia. Grupos econômicos alinhados aos combustíveis fósseis sabem que sua única chance de sobrevivência é através da força bruta que ainda detêm. Países com muitos investimento combustíveis fósseis como EUA, Russia e Oriente Médio farão de tudo para barrar o avanço das energias limpas nos países de alta tecnologia e seu efeito disseminador por todo o planeta. A ironia triste da questão é que como imaginou El Akkad, teremos um conflito cada vez mais acirrado ricos impondo sua agenda de renováveis como necessidade moral e pobres dependentes do petróleo quando a verdadeira transformação deveria incluir sustentabilidade social junto com sustentabilidade ambiental. E o Brasil? Com uma matriz energética com alta participação de renováveis (caso das hidroelétricas e do etanol) e uma reserva enorme no pre-sal, tinha tudo para não apenas se tornar independente mas ser um líder regional em energias renováveis a serviço da justiça social. Mas isso foi antes do golpe, antes da destruição da engenharia nacional, antes do corte brutal nos recursos para pesquisa. Ao invés de termos transporte público de qualidade com combustível renovável teremos um exército de Ubers precarizados queimando petróleo nas nossas cidades saturadas de asfalto – o lixo do refino derramado nas ruas. Bem vindos à guerra do clima. Ela já é realidade pertinho de você.