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O frei florentino Girolamo Savonarola via na mudança dos tempos um prenúncio do fim do mundo, permeado com corrupção, despotismo e exploração. Nenhum destes três males era exclusividade de Florença no século XV, e nenhum destes três males diminuiu um milímetro depois que Savonarola tomou o poder e mandou queimar livros, pinturas e outras obras de arte.
Semana passada muito se falou no Brasil sobre o frei florentino Girolamo Savonarola. Nascido em 1452, Savonarola viveu no tempo em que o dogma católico ia aos poucos sendo desmontado pelos avanços da ciência e da arte. Religioso fervoroso, Savonarola via na mudança dos tempos um prenúncio do fim do mundo, permeado com corrupção, despotismo e exploração. Nenhum destes três males era exclusividade de Florença no século XV, e nenhum destes três males diminuiu um milímetro depois que Savonarola tomou o poder em 1495 e mandou queimar livros, pinturas e outras obras de arte. A corrupção, o despotismo e a exploração serviram (como servem até hoje) de desculpa para Savonarola tentar reinstituir uma ordem teocrática que vinha ruindo rapidamente na segunda metade do século XV. Hoje Savonarola é um ilustre desconhecido perdido na história, enquanto seus contemporâneos Alberti, Leonardo e Boticelli (que teve alguns quadros queimados) são celebrados como pilares da cultura ocidental.
Menos celebrado por esta mesma cultura ocidental é a relação entre o desespero de Savonarola e os relatos dos viajantes liderados por Colombo que contavam ter descoberto um novo mundo para além do poente. Amarrados a uma cosmovisão onde os três continentes conhecidos eram rodeados pelo mar oceano, os europeus foram forçados a repensar toda a sua ontologia naqueles últimos anos do século XV. Nas palavras do historiador mexicano Edmundo O’Gorman, o encontro com as Américas foi para um europeu de 1493 tão impactante como se alguma destas sondas espaciais encontrasse, amanhã, vida em outro planeta. Nada mais perigoso e ameaçador para alguém que desconfia do poder libertador do conhecimento e luta de todas as formas voltar a um mundo organizado por princípios religiosos.
E o que isso tem a ver com Donald Trump? Qual mudança de paradigma explicaria as fogueiras de 2016: Golpe no Brasil, Brexit, No a la a paz em Colômbia, Donald Trump? Me arrisco a dizer que muito da turbulência atual se explica por duas grandes mudanças: 1) o ocaso da televisão como meio hegemônico de disseminação de notícias; e 2) a conscientização crescente sobre as desigualdades de gênero.
Vejamos o caso Norte Americano que eu conheço mais de perto. O partido republicano nos Estados Unidos construiu nos últimos 30 anos um discurso de valores culturalmente reacionários (anti-aborto, anti-LGBT, anti-minorias) que servia para energizar sua base e mascarar os verdadeiros objetivos que sempre foram a diminuição do estado de bem-estar social e o desmonte de todo e qualquer tipo de regulamentação e controle do capital. Este discurso foi se radicalizando durante a presidência de Barack Obama e criou uma corrente dentro do partido republicano, o Tea Party, que se notabilizou pela ferocidade com que pretendeu (e muitas vezes conseguiu) obstruir qualquer iniciativa de cunho socializante da administração Obama. Notar que quando é para gastar pilhas de dinheiro com militarização e espionagem nenhum dos partidos arqui-inimigos tem nenhuma objeção. Este discurso foi montado com uma combinação de trash-talk-radio (programas de radio com linguagem xula e agressiva) e canais de televisão como a Fox News que davam um verniz “sofisticado” para causas reacionárias.
Nos últimos anos a perda de audiência da televisão foi aos poucos tirando o verniz de isenção que o jornalismo sério emprestava às TVs. O fenômeno, chamado pelo meu colega Joseph Straubhaar de “fidelização”, mostra as tanto TVs quanto os jornais impressos buscando entregar aos seus assinantes e telespectadores fiéis, mais daquilo que que eles parecem estar buscando. A grande mídia implementou, nos últimos anos, um algoritmo de facebook ao contrário. Ao invés de você clicar em algo que gosta e alimentar o software, esta decisão é feita por executivos e gerentes. Ambos geram radicalização e polarização mas em um a escolha (confortável e burra) é sua enquanto no outro você está sendo explicitamente manipulado.
Outro movimento importante nas placas tectônicas que suportam a sociedade contemporânea é a consciência crescente sobre a desigualdade de gênero em suas várias formas: assédio sexual, sobrecarga de trabalho doméstico, salários mais baixos, mansplaining, etc... Nos EUA a campanha começou com foco nos “outros”: mexicanos, muçulmanos, Black Lives Matter. Enquanto os alvos do discurso de ódio foram as minorias raciais e étnicas Donald Trump conseguiu vender seu discurso de “Make America Great Again” para uma enorme parte da população que tem saudades do tempo em que as minorias “sabiam do seu lugar” ou traduzindo para o vernáculo brasileiro “sabiam com quem estavam falando”.
Aqui entra a estratégia de Hillary Clinton. Uma candidata completamente comprometida com o establishment, ligada tanto aos comandantes de Wall Street quanto aos do pentágono, que soube desviar o discurso que girava em torno das minorias em um discurso contra as mulheres, maioria do eleitorado. Como o voto não é obrigatório o que conta é o número de eleitores com o registro atualizado que dá o direito a voto e mostra a intenção de votar já que o ato de atualizar o registro é responsabilidade do eleitor. Em 2014 eram 66 milhões de homens e 76 milhões de mulheres registradas, uma diferença muito significativa. Hillary soube trazer a questão de gênero para dentro da campanha e Trump caiu como um patinho amarelo da FIESP.
Donald Trump é o exemplo perfeito das duas tradições que se desmancham bem na frente de nossos olhos. Um charlatão acostumado com as câmeras e treinado no papel de bully e macho alfa, Trump caiu em todas as armadilhas semânticas preparadas pela campanha de Hillary Clinton. Caiu na armadilha da postura nos debates, caiu na armadilha dos pais do soldado muçulmano morto em combate, caiu na armadilha da miss-universo humilhada por não seguir o padrão de beleza e comportamento das Marcelas (desculpem minhas queridas Marcelas mas não são só as Patrícias que vão ver seu nome virar adjetivo daqui pra frente).
Com a campanha em frangalhos, sua saída perece ser a construção de um canal ou rede de televisão para continuar energizando esta base de 40 milhões de norte-americanos, homens, brancos e quase pobres que compram cegamente sua narrativa porque foram treinados a odiar com fórmulas simples (a culpa é das feministas, dos mexicanos, dos gays) e a nunca questionar as políticas econômicas que vem atreladas aos códigos reacionários. O país era melhor antes quando “cada um sabia o seu lugar”.
Qualquer semelhança com o discurso de ódio no Brasil não é mera coincidência. Os que bateram panelas no ano passado agora perdem direitos trabalhistas, perdem vagas na universidade pública, perdem acesso ilimitado a internet, perdem recursos do pré-sal para educação e saúde, perdem aumento dos investimentos sociais nos próximos 20 anos. Mas continuam comprando o discurso de ódio de que a esquerda, as mulheres, os gays e os intelectuais são os culpados. A diferença é que Dilma não soube usar a questão de gênero como deveria. Ou alguém acredita que o processo seria o mesmo se tivéssemos um Ciro, um Pimentel ou até mesmo um José Dirceu na presidência? O golpe de 2016 teve um enorme componente de gênero que ainda não foi devidamente denunciado. Mesmo porque a esquerda brasileira ainda é muito mais machista do que gosta de se imaginar.
Os articulistas da grande mídia brasileira mostram-se horrorizados com o discurso de Donald Trump mas estão fazendo exatamente o mesmo jogo. Como um animal selvagem pressionado contra a parede, recebem uma carga de adrenalina e se jogam desesperadamente para cima de quem estiver na frente. Foi isso que fez Savonarola em 1495, é isso que os republicanos estão fazendo este ano com Trump e é isso que faz a grande mídia brasileira contra as causas da esquerda.
A ver quais os danos futuros desta estratégia. No caso da igreja católica na virada do século XVI, as décadas seguintes trouxeram mais perdas (com a reforma protestante) e mais repressão (com a inquisição). Passados 200 dias do golpe de 2016, este perece ser o caminho do Brasil nos próximos anos também: perdas e repressão.
Nos EUA, as chances de Trump são hoje mínimas, mas o estrago está feito. Na melhor tradição yankee, Trump ainda tem a chance de ganhar bilhões monetarizando seu discurso de ódio que incendeia uma população já normalizou a violência e o desprezo pela racionalidade.
Quem souber qual fio cortar para desmontar esta bomba-relógio ganha o Nobel que Obama deveria ter recusado como Bob Dylan.
Imagem de Capa produzida pelo site Five Thirty Eight