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Enquanto se desenrolavam as tragédias de Paris na semana passada eu terminava de ler um livro que tem tudo para se tornar um clássico: Covert Capital (University of Califormia Press, 2014), escrito por um jovem professor, Andrew Friedman.
Não escrevi aqui o subtítulo do livro para não estragar a surpresa, tratarei disto alguns parágrafos abaixo. Por ora, urge voltar aos eventos de Paris, do Iêmen e da Nigéria na semana passada com o fundamentalismo religioso matando milhares de pessoas inclusive cartunistas de renome. Ou voltar um pouquinho mais no tempo até os atentados da Al Qaeda em Madri ou o uso de drones pelo governo Obama para eliminar suspeitos pelo mundo afora, ou ao ataque criminoso à população da Faixa de Gaza no ano passado. É evidente que todos estes eventos estão conectados. É óbvio que o uso de violência, seja ela extrajudicial, no caso dos drones; usando uma bandeira nacional, no caso de Israel; uma bandeira imaginária no caso do ISIS ou a bandeira do governador do dia no caso das polícias militares, gera mais ódio e mais violência. É óbvio que a saída para todos estes conflitos é o estabelecimento de leis supranacionais que levem o ideal de justiça para todos os cantos do mundo.
Mas o que ninguém ainda discutiu muito é que existe uma enorme indústria de armamentos ganhando trilhões de dólares com este estado de guerra e de terrorismo constante. Que tipo de paz teremos enquanto o orçamento das Nações Unidas (que deveria, ainda que em tese, promover a paz ) for 300 vezes menor que o faturamento anual da indústria bélica? O presidente francês François Hollande, por exemplo, esteve na Arábia Saudita no final de setembro e sorridente anunciava a venda de três bilhões de euros em armas para a casa real de Saud, por sua vez a maior fonte de financiamento das madrassas que espalham o radicalismo islâmico. Fecha-se assim um ciclo que enriquece os vendedores de armas e seus lobistas “consultores de segurança”, financia campanhas, lava dinheiro, mobiliza milícias particulares e mata milhares de inocentes todo ano. E não venha me dizer que os chargistas “provocaram” o ataque porque este tipo bárbaro de linchamento a là direita raivosa não cabe no mundo civilizado. Je Suis Charlie Hebdo ao mesmo tempo em que je sui 83 negros brasileiros mortos por dia e je sui milhares de nigerianos assassinados só na semana passada.
E aqui volto ao livro de Andrew Friedman. Covert Capital:Landscapes of Denial and the Making of U.S. Empire in the Suburbs of Northern Virginia, o subtítulo já diz tudo. Vizinho de Washington DC, os subúrbios do norte do estado da Virgínia se tornaram, segundo Friedman, a verdadeira capital dos EUA e seu império. Uma capital disfarçada. O livro de Friedman analisa o desenvolvimento urbano de uma faixa de 50 km entre o aeroporto de Dulles e as margens do rio Potomac que corre atrás da Casa Branca e do Congresso. É nesta faixa que foram construídos o Pentágono e a CIA, é aí que moram e trabalham milhares de “consultores”, ex-militares e ex-espiões que movimentam as encomendas de armas pelo mundo a fora. O que Friedman mostra muito bem ao longo do livro é que neste corredor está o verdadeiro centro do poder norte-americano, responsável ao mesmo tempo pela enorme indústria bélica e por parte significativa da política externa norte-americana.
E não se engane de achar que só os EUA operam desta forma. A Rússia ultrapassou os EUA na venda de armas ano passado, uma reedição macabra da Guerra Fria. Logo atrás dos dois gigantescos produtores de armas vêm a Alemanha, a França, O Reino Unido e Israel. Qualquer semelhança com os líderes formando a linha da hipocrisia no domingo passado em Paris não é mera coincidência.
A grande pergunta que fica no ar é a seguinte: como desmontar esta indústria da guerra? Como aconselhava o próprio Dwight Eisenhower, no seu discurso de despedida da presidência dos EUA em 1961, a relação entre o complexo militar e o governo democrático precisa ser constantemente monitorada para evitar abusos e desvios de função. Ike sabia do que estava falando, antes de ser presidente ele fora comandante da invasão da Normandia em 1944 e primeiro supremo comandante da Otan.